Mas fora suas últimas obras — PostCapitalism: A Guide to Our Future (“Pós-capitalismo: Um guia para o nosso futuro“, editado pela Cia das Letras) e Clear Bright Future: A Radical Defence of the Human Being (ainda sem edição no Brasil) — que o tornaram um nome conhecido internacionalmente, envolvido em vários debates sobre o estado atual do capitalismo e seu futuro.
A BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, conversou com Paul Mason em Londres, onde ele vive.
BBC – Em um artigo recente, o senhor traça um interessante paralelo entre o que acontece hoje e o que aconteceu depois da epidemia de peste negra, no século 14, que marcou a transição do feudalismo para o capitalismo.
Paul Mason – Um dos temas do meu trabalho é que, como o feudalismo, o capitalismo tem um começo, um meio e um fim.
Em meu último livro (Clear Bright Future: A Radical Defence of the Human Being), digo que o fim de um modo de produção de um sistema econômico é com frequência uma mistura de suas fraquezas internas com o que chamamos de “choques externos” ou exógenos.
Então, para nós, a mudança climática se manifesta como um choque exógeno, porque o único capitalismo industrial que conhecemos está baseado na extração de carvão e na destruição da biosfera.
É possível que, em um universo paralelo, o capitalismo tivesse se desenvolvido a partir da energia limpa e em harmonia com a natureza, mas não foi assim.
Há ainda a questão do envelhecimento populacional, que possivelmente levaria à falência 60% dos países até meados deste século porque não haverá gente o suficiente para sustentar uma população envelhecida.
O coronavírus é outro fator que parece ser um choque externo.
Mas meu argumento é que, ainda que todos pareçam choques externos, na realidades são produzidos pelo próprio capitalismo.
Esse é o problema: o tipo de capitalismo que temos destrói as florestas tropicais e cria condições para que milhões de pessoas vivam em situação vulnerável.
E no mundo desenvolvido — provavelmente não tão óbvio para alguns leitores na América Latina — ele tem criado “doenças da pobreza”. Há muita gente morrendo de obesidade em Londres, com diabetes tipo B ou enfermidades nos pulmões porque fumou a vida inteira.
O paralelo que faço com a peste negra é limitado, mas vale a pena ser explorado, porque a epidemia foi responsável por duas coisas: primeiro, interrompeu o modelo econômico do feudalismo porque não havia componeses para cultivar a terra.
E nas cidades não havia pessoas o suficiente que soubessem trabalhar com o que era a principal matéria-prima da época, a lã. Nas revoltas que eclodiram depois da peste negra, sempre houve participação dos trabalhadores que manufaturavam a lã.
O outro impacto — e maior — foi a quebra da ideologia. Porque fez com que as pessoas dissessem: “Isso (o modelo) não está funcionando.”
Entre aqueles que estudaram aquele período há um livro brilhante que se chama Lust for Liberty (“Desejo de liberdade”, em tradução livre), de Samuel K. Cohn. O título já diz tudo: ao final da epidemia, as pessoas se deram conta de que o sistema não as estava protegendo.
Se pensa no feudalismo — e acredito que na América Latina a imagem seja desses grandes senhores de terras, pois as revoltas coloniais também foram contra os grandes senhores de terras —, e a cultura entre esses donos de terra era o paternalismo. O proprietário está ali para explorar, mas também para proteger.
E o que aconteceu no século 14 foi que as pessoas disseram: “Espera aí, isso não está nos protegendo”. E a palavra liberdade começou a ser usada e disseminada.
Nós pensamos na palavra “liberdade” no contexto da Revolução Francesa, mas desde 1360 observamos o uso da palavra “libertas“, em latim, pelos revolucionários.
BBC – Algo que me chama atenção nesta comparação é que a peste negra marcou a transição do feudalismo para o capitalismo, o que, de alguma maneira, permitiu o Renascimento e o que conhecemos como Idade Moderna. Há mais ou menos 40 anos se fala do fim dessa Idade Moderna e do que, por falta de uma expressão melhor, se chama “pós-modernismo”. Como se novamente uma epidemia estivesse marcando a transição para um período distinto…
Mason – É interessante, mas não vejo as coisas assim. Há muita coisa em jogo. Minha posição é a de que temos em nível global um sistema econômico que não funciona. E é um sistema que depende que um mundo rico bombeie recursos para um mais pobre e, por sua vez, que este mundo pobre bombeie lucro de volta ao rico.
É uma simplificação extrema, mas é assim que funciona.
Isso gerou grande desenvolvimento no hemisfério sul do planeta — algo bom para a região —, mas, ao mesmo tempo, cria pobreza e desigualdade, inclusive no mundo desenvolvido, tanto ao ponto de mostrar que o sistema não é sustentável.
Em 2008, dissemos: “Há muita dívida”. E a razão foi que os bancos centrais imprimiram muita moeda e as pessoas usaram isso para especular. E a solução foi US$ 75 bilhões extras em dívida e mais dinheiro por parte dos bancos centrais.
Estamos tentando curar a doença… com mais doença. E a doença é o capitalismo financeiro.
E qual a cura que se está oferecendo para a crise de covid-19? Mais dinheiro por parte dos bancos centrais, mais dívida.
Então, antes de falar de Modernidade, devemos falar de algo muito mais recente: o modelo econômico neoliberal, que está baseado em uma profunda desigualdade, especulação financeira extrema e baixos salários. Um modelo que em algum momento funcionou, mas que não funciona mais.
Deixemos de lado a questão da dívida. Se você pensa em uma franquia da Starbucks, ela trabalha com uma margem de lucro bem pequena, porque está em constante pressão para reduzir preços.
Se a Starbucks decide aumentar o preço do café, o McDonald’s reduz imediatamente. Então estamos diante de algo que há sido chamado de “capitalismo just in time“, onde praticamente não há estoque.
É o que temos no serviço de saúde britânico: deixamos que ele opere em sua capacidade máxima, assim não há camas ou respiradores sobressalentes. E isso não pode continuar assim. O que se necessita é de capacidade.
No futuro fará sentido que a Starbucks tenha várias lojas com cafés de cada país. Fará sentido que elas tenham empregados adicionais, porque essa situação deve continuar e eles devem em algum momento ter algo como 10% da força de trabalho doente a todo momento.
E, logicamente, o serviço de saúde britânico deveria ter mais camas, mais médicos, mais enfermeiros.
Mas, se tudo isso acontecer, todo o modelo neoliberar vai ruir. Então esse é meu ponto. Estamos diante de um modelo que já se esgotou e acredito que a tarefa para aqueles envolvidos na política é pensar em uma solução.
BBC – Porque a resposta não pode ser a mesma que a maioria dos países deu em 2008, certo? Austeridade, cortes em áreas como a saúde… Isso parece estar no centro de tudo o que está errado neste momento.
Mason – Exatamente. Temos que rechaçar a austeridade, não só porque ela afeta mais aqueles que têm menos, mas porque se você a combina com a maior disponibilidade de recursos por parte dos bancos centrais…
Pense em termos da quantidade de dinheiro circulando: se um governo coloca mais dinheiro para circular, mas ao mesmo tempo está cortando gastos, o único lugar para onde esses recursos podem fluir é para os mais ricos.
Então, essa combinação de imprimir mais moeda enquanto se reduz o Estado só vai produzir mais desigualdade.
E digo o seguinte a seus leitores: qualquer governo da América Latina que se proponha a fazer essas duas coisas ao mesmo tempo está conscientemente enchendo o bolso das casses mais altas.
BBC – O que você acha que vai acontecer? Porque estamos diante de mudanças que nunca se pensou que ocorreriam com tanta rapidez: países aprovando uma renda básica universal ou a nacionalização de alguns setores da economia… Isso deve continuar?
Mason – Não. Veja, é possível pensar na nossa cabeça que o livre mercado funciona perfeitamente bem e que vai corrigir tudo em circunstâncias normais, mas o que precisamos agora é de forte intervenção estatal.
O que estamos vendo com Trump ou com os conservadores no Reino Unido que estão tomando as medidas corretas, ainda que com lentidão: fechar a economia e a reconversão de algumas companhias às mãos do Estado.
Mas o que vai acontecer quando as pessoas se derem conta de que a normalidade não vai retornar? Acredito que precisamos de três coisas.
Primeiro, que o governo tenha uma participação em todos os negócios estratégicos. Isso não é o mesmo que resgatá-los financeiramente. Pode-se dar-lhes algum dinheiro, mas com algumas condições, como que mantenham toda a força de trabalho que possam — no caso das empresas do setor aéreo e as petroleiras, pode-se pedir que comecem a fazer uma transição para a tecnologia verde. E que o Estado seja dono de parte da empresa.
Você mencionou a renda básica. A longo prazo, a melhor maneira para que isto funcione é através de algo chamado de serviços básicos universais.
Quer dizer, usar o dinheiro dos contribuintes para garantir renda para todo mundo, mas também para prover serviços básicos gratuitos: saúde, educação universitária, moradia acessível e transporte barato ou gratuito nas cidades.
O problema nesta crise é que nada disso vai ajudar, porque o que as pessoas precisam neste momento é dinheiro. Assim, no curto prazo precisamos que cada país tenha um esquema de salário básico universal.
Finalmente, a terceira coisa que creio que precisamos é que os bancos centrais comprem a dívida do governo, se necessário, de maneira indireta.
Isso é um anátema para a economia de livre mercado porque basicamente é o governo decretando o fim da independência dos bancos centrais — algo que era uma ficção, de qualquer maneira. É o governo emprestando a si mesmo.
Para muitos isso não faz sentido, mas teríamos que pensar da seguinte maneira: estaríamos concedendo um “empréstimo ponte” (modalidade que algumas instituições financeiras condecedem quando seus clientes necessitam de liquidez imediata) ao futuro.
A conta seria paga por aqueles que estivesse vivos daqui 50 ou 100 anos. Porque, se pagássemos os custos agora, as pessoas não morreriam apenas pela doença. A própria democracia poderia morrer.
E em um momento em que ela já está frágil — veja Trump e Bolsonaro —, se permitirmos uma depressão na escala de 1929 creio que em muitos países a democracia evaporaria.
BBC – Algo que o senhor analisava quase cinco anos atrás em “Postcapitalism“, seu livro anterior, é que o capitalismo havia perdido sua capacidade de se adaptar, em especial o neoliberalismo. O que pensa sobre esse tema hoje?
Mason – O capitalismo pode se adaptar a essa crise, mas assumirá uma forma bem diferente. Ficará tão diferente que muita gente nem o enxergará como capitalismo.
Agora mesmo há muitas oportunidades para o investimento privado. Na área de educação, por exemplo, ou no entretenimento.
O faturamento da Netflix está aumentando, seu problema é não conseguir produzir conteúdo novo neste momento. Mas está lá a oportunidade para que as pessoas criativas o façam. Por exemplo: acho que a animação voltará a ser bastante popular.
Não estou dizendo que essa crise vai significar o fim do capitalismo. O ponto do meu livro era diferente: que o capitalismo havia perdido sua capacidade de se adaptar a mudanças tecnológicas.
Sim, é verdade.
Em essência, em todas as revoluções tecnológicas anteriores, as novas tecnologias eliminavam formas antigas de trabalho.
Por exemplo, as pessoas que usavam cavalos ou carroças ficaram sem trabalho no início do século 20, com a criação do automóvel. Mas novos postos de trabalho foram criados nas fábricas de veículos.
E assim o capitalismo vai se adaptando. O problema é que a tecnologia da informação atualmente destrói formas de trabalho mais rapidamente do que cria — e em particular elimina empregos com alta remuneração.
Claro que ele também cria a função do desenvolvedor de software, que é bem pago, mas agora muito do processo de desenvolvimento de software está automatizado.
O clássico trabalho manual bem remunerado era o de fabricante de ferramentas para maquinário. E então havia um engenheiro talentoso que era capaz de desenhar e fundir em metal algo que era tão precioso que poderia construir aviões com ele. Agora ele faz um computador.
Essa é a ideia que trato de explicar quando falo da capacidade de adaptação do capitalismo, mas a crise causada pela covid-19 é um problema a mais.
BBC – O senhor segue acreditando que é possível ver as sementes desse pós-capitalismo no ambiente em que vivemos hoje?
Mason – A tecnologia da informação permite que o lucro venha cada vez mais fácil. Também cria a possibilidade de automatização rápida. Cria um efeito de rede que produz novos materiais.
Por exemplo: quando descobrirmos uma vacina contra o coronavírus, independentemente da decisão dos fabricantes de cobrar ou não por ela, o fato é que ela poderia estar à disposição do mundo inteiro no dia seguinte. E de forma gratuita. Hoje é muito fácil fabricar uma vacina com uso da tecnologia da informação.
Basicamente, a tecnologia da informação está dificultando que o capitalismo seja capitalista. Agora, temos modalidades diferentes de propriedade, como a Wikipedia, o movimento “open source”, plataformas de cooperação.
Em Postcapitalism eu argumento que nos levará tempo para amadurecer um sistema alternativo. E creio que o fato de que agora mesmo estejamos enfrentando uma crise de funcionalidade do modelo existente deveria fazer as pessoas pensarem nas alternativas de que dispomos.
Para mim, a alternativa para os próximos 20 anos é uma forma mais sustentável de capitalismo. Quero dizer mais verde, menos excludente, sem especulação financeira.
Continuará sendo capitalismo, mas muitos não o enxergarão como tal.