‘Antes, aplaudiam’: os profissionais da linha de frente da covid-19 que enfrentam atraso de salário

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Na linha de frente da batalha contra a covid-19, eles foram aplaudidos no mundo todo. Agora, centenas de profissionais de saúde pelo Brasil estão com seus salários atrasados.

“Até dois dias atrás, os profissionais de saúde era o que tinha de mais valioso, os heróis. Antes, as pessoas aplaudiam, saíam na janela para bater palma. Mas o que ninguém sabe é o que tem por trás de tudo aquilo. Empresas que não cumprem o que tem nas nossas leis trabalhistas, que não respeitam o funcionário”, desabafa a enfermeira Thalita Santos.

Seu último salário por ter trabalhado na triagem do aeroporto de São Luís, diz ela, ainda não foi depositado. “Colocamos nossa vida e a vida da nossa família em risco, e é dessa forma que somos pagos.”

Há relatos de falta de pagamento a profissionais de saúde do Rio de Janeiro em três hospitais, no Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) e em três UPAs. No Estado, o sindicato dos médicos estima que cerca de 1,8 mil profissionais tenham sido afetados. No Pará, são cinco hospitais onde há atrasos nos salários. A crise é tamanha que, em junho, familiares de pacientes internados em um hospital fizeram uma manifestação em solidariedade aos médicos sem salários. Entre os hospitais onde há salários atrasados no Rio e no Pará, estão os de campanha abertos para atender pacientes emergencialmente. No Maranhão, há o caso de Santos e de outros colegas que trabalharam com ela.

Em resposta à BBC News Brasil, a Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro disse que os salários estão sendo providenciados, a Secretaria de Saúde do Pará disse que os pagamentos seriam feitos até sexta (31) e a Secretaria de Saúde do Maranhão afirmou que não há atrasos, e que a única pendência é relativa a multas rescisórias (Leia as respostas completas no final da reportagem)

Santos, de 24 anos, conta que, em março, foi procurada por uma amiga com uma oportunidade de emprego: trabalhar nas barreiras sanitárias implementadas no aeroporto e na rodoviária da capital do Estado, em São Luís, implementadas pelo governo de Flávio Dino (PCdoB).

Profissionais de saúde trabalharam nas barreiras fazendo triagem dos passageiros, verificando sintomas, sua temperatura, de onde estavam chegando e por que locais haviam passado. Santos era parte da equipe que fez isso no aeroporto de São Luís.

Foi contratada por uma empresa “quarteirizada”, ou seja, que presta serviços para outra empresa privada, esta sim terceirizada pelo governo do Estado.

Médica usando máscara de proteção
Entre os locais com salário atrasado, estão hospitais de campanha abertos para atender pacientes emergencialmente. Direito de imagem AGÊNCIA BRASIL

No dia 26 de junho, as barreiras sanitárias em São Luís foram finalizadas. Mas até hoje, mais de um mês depois de terem sido dispensados, os funcionários não receberam o salário do mês de junho, não receberam os valores da rescisão e não tiveram baixa na carteira de trabalho, diz Santos.

“As contas continuam chegando, estávamos nos arriscando na linha de frente contra a covid-19, e nada disso é reconhecido”, lamenta. “As pessoas acham que estamos sendo muito bem pagos, mas não é nada disso.”

No Pará, governado por Hélder Barbalho (MDB), a médica infectologista Eduarda Prestes, 29, diz que está “indo trabalhar sem receber” no hospital de campanha de Santarém. “Não recebemos nada este mês. Não sabemos quando vamos receber e se a gente vai receber. Ninguém dá uma posição para a gente. É um desrespeito com o profissional, que está se expondo, querendo ou não”, desabafa ela, ressaltando que, no hospital, todos os funcionários contratados por uma organização social — não só médicos — estão na mesma situação.

Ela lamenta também as notícias falsas que circulam nas redes sociais sobre médicos que estariam recebendo dinheiro para colocar “covid-19” em declarações de óbito. “Não adianta nada recebermos aplausos na janela se a população não colaborar, pois já temos um governo federal extremamente irresponsável e negacionista.”

De acordo com o presidente do sindicato dos médicos do Estado do Pará, Waldir Cardoso, além dos funcionários do hospital de campanha de Santarém, médicos do hospital de campanha do Hangar e do hospital Abelardo Santos, em Belém, também estão com salários atrasados.

Também há atrasos nos municípios de Tucuruí (Hospital Regional de Tucuruí), Barcarena e Capanema (Hospital Regional dos Caetés).

No Rio, há casos de falta de salário em diversos centros de saúde, e o governo Wilson Witzel (PSC) tem sido alvo de críticas por isso.

Foram três meses trabalhando no Samu, “removendo muitos pacientes com suspeita de coronavírus para hospitais e fazendo muitos óbitos em casa”, diz Dyego Waldek, 31 anos. O Samu faz o resgate e transporte de pacientes.

Ele trabalhou no serviço carioca em abril, maio e junho, mas ainda não recebeu o salário pelos dois últimos meses, segundo conta.

Trabalhando como PJ (pessoa jurídica), e recebendo por plantões, deixou de ganhar por três turnos de 24 horas em maio (“não dei quatro porque fiquei afastado por conta da covid-19 por 14 dias”, explica) e por quatro plantões de 24 horas em junho.

“Tenho inúmeros colegas sem receber no Samu. Nós éramos os heróis, agora somos os vilões, brigando pelo nosso salário”, diz ele. “Acham que temos que trabalhar sem receber, sendo que temos familiares para sustentar.”

Segundo Alexandre Telles, presidente do Sindicato dos Médicos no Rio, no Estado há atrasos no Samu, no Hospital da Campanha no Maracanã (médicos ainda não receberam os salários de maio e junho), no Hospital Adão Pereira Nunes (médicos estão há dois meses sem receber), no Hospital de Anchieta (médicos não receberam as verbas devidas por 45 dias trabalhados entre março e abril) e nas UPAs de Botafogo, Copacabana e de Jacarepaguá (médicos ainda não foram pagos pelo mês de março).

No caso do Samu, a empresa que não pagou os salários para os funcionários, a Ozz Saúde Eireli, afirmou na semana passada na Comissão de Saúde da Assembleia Legislativa do Rio, que não teria mais condições de pagar os funcionários (a folha de pagamento custaria R$ 12 milhões, segundo um dos advogados da empresa) e manter a operação. Isso porque o repasse de recursos do governo à empresa foi interrompido por causa de uma decisão judicial. A liminar foi concedida por causa de irregularidades apontadas no contrato com o Estado, firmado em março, apontadas pelo Ministério Público estadual.

Outro lado

A Secretaria de Estado da Saúde, no Maranhão, disse que “possui dezenas de milhares de prestadores de serviço, sob a forma de pessoas jurídicas, servidores estatutários e celetistas” e que “todos que atualmente estão trabalhando foram pagos no prazo legal, não havendo atrasos”.

As barreiras sanitárias em aeroporto e rodoviária foram desativadas, e o governo “informa que a única pendência é relativa a multas rescisórias, cujos processos de pagamento estão em tramitação para pagamento, por meio da Empresa Maranhense de Serviços Hospitalares (EMSERH), responsável pela contratação”.

Em resposta à BBC Brasil, a Secretaria de Saúde do Estado do Pará informou que, desde o início de julho, “está realizando análise contratual junto à Procuradoria Geral do Estado e seu Departamento Jurídico a fim de digitalizar dados em sistema antes não praticado e que deixará as informações ainda mais transparentes”. Disse ainda que “os pagamentos pendentes serão realizados até a próxima sexta-feira (31)”.

A Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro comentou cada caso enviado pela reportagem. Em relação ao Samu, mencionou “duas decisões judiciais em sentido contrário”. “Por decisão da Justiça comum, a Secretaria de Estado de Saúde está impedida de fazer o repasse à OZZ-SAÚDE. Neste momento, o contrato está sendo auditado pela SES por sobrepreço. Na Justiça do Trabalho, há uma decisão recente determinando o depósito dos salários dos funcionários. A Procuradoria Geral de Justiça está analisando a questão. A SES já manifestou a intenção de fazer o depósito dos salários, mas a decisão é da PGE.”

O salário de junho dos funcionários dos hospitais de campanha do Maracanã e de São Gonçalo “será pago diretamente na conta corrente deles, sem passar pela organização social Iabas (Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde)”. “Ao todo, R$ 6 milhões já foram repassados ao Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania, do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, que depositará os valores na conta de cada trabalhador.”

Hospital de campanha no Maracanã
Hospital de campanha sendo construído ao lado do estádio do Maracanã, onde agora há relatos de atraso no salário. Direito de imagem GOVERJ

No hospital Adão Pereira Nunes, a secretaria diz estar “impossibilitada de pagar os salários em atraso diretamente na conta dos funcionários da unidade” porque o contrato está encerrado desde 22 de maio. De acordo com a pasta, estão tentando uma autorização do Tribunal Regional do Trabalho para que o pagamento seja feito diretamente aos trabalhadores.

Ainda segundo a pasta, os pagamentos às UPAs Botafogo, Copacabana e Jacarepaguá estão em dia. “O mês de junho foi depositado na conta da organização social entre os dias 3 e 6/7. Cabe à OS pagar seus funcionários.”

Por fim, “a Fundação Saúde, responsável pela administração do Hospital Anchieta, afirma estar em dia com as suas obrigações trabalhistas”.

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