Após Bolsonaro cogitar “furar o teto”, dezenas de economistas publicaram manifesto em defesa do mecanismo que limita gastos da União. Ao mesmo tempo, há especialistas que veem regra como mal desenhada e contraproducente.
Após 24 anos de trajetória de alta nas despesas públicas em relação ao seu PIB, o Brasil decidiu em 2016 reverter esse cenário de forma drástica: colocou na Constituição que os gastos da União seriam congelados por uma década, descontada a inflação. Agora, com o acirramento das disputas pelo orçamento e pressões políticas para aumentar despesas, o país discute modificar a regra.
Um dos objetivos do teto de gastos, aprovado no início do governo Michel Temer, era forçar a União a gastar menos e obrigar o Congresso e a sociedade a discutirem quais despesas são prioritárias e quais devem ser cortadas. Para se viabilizar, porém, ele dependeria de uma reforma da Previdência, aprovada em 2019, e de outras reformas, como a administrativa, para reduzir o custo do serviço público.
Nem tudo saiu como planejado. A reforma administrativa, prometida pelo governo Jair Bolsonaro, ainda não chegou ao Congresso. E a disputa mais clara pelo orçamento se mostrou enviesada. Categorias organizadas têm alto poder de influência sobre deputados e senadores para proteger seus benefícios, enquanto estratos desorganizados e carentes, como os mais pobres e trabalhadores informais, têm dificuldade de se fazer representar em Brasília.
A partir de 2018, projeções começaram a apontar que seria impossível o país cumprir o teto até 2026. Mesmo com a reforma, despesas com a Previdência seguem crescendo acima da inflação, e há obstáculos jurídicos e políticos para reduzir as despesas com o funcionalismo público. Como o tamanho do bolo permanece o mesmo, a fatia que sobra, composta por investimentos e o custeio de serviços públicos, fica cada vez menor, até o ponto de inviabilizar o próprio funcionamento do governo.
Em 2020, o teto de gastos foi suspenso pelo estado de calamidade devido à pandemia do novo coronavírus, mas voltará a vigorar no próximo ano. A Instituição Fiscal Independente (IFI), vinculada ao Senado, aponta que já em 2021 há risco de o teto impedir que o governo execute seus serviços essenciais. Outra estimativa, feita por um grupo de economistas que defende o teto de gastos, prevê que isso ocorra até 2023.
A dúvida sobre a aplicação do teto chegou ao governo Bolsonaro, que cogitou fazer manobras orçamentárias para driblar o mecanismo, como usar recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) para pagar o programa que deve substituir a renda básica emergencial ou aproveitar créditos extraordinários abertos para combater a pandemia em obras de infraestrutura. Iniciativas classificadas pela IFI como “contabilidade criativa”, prática que afetou a gestão Dilma Rousseff e acabou servindo de motivo para seu impeachment.
No último dia 13 de agosto, Bolsonaro, que busca a reeleição e viu sua popularidade crescer com a renda básica emergencial, disse: “A ideia de furar o teto existe, o pessoal debate, qual o problema?” O debate sobre o teto ganhou projeção neste mês pois até o final de agosto o governo deve enviar ao Congresso sua proposta orçamentária para 2021.
A avaliação do mecanismo
Economistas que defendem o teto de gastos dizem que ele é importante para obrigar o governo a limitar suas despesas nos próximos anos e controlar a trajetória da dívida pública, que está em alta. Dessa forma, quem empresta dinheiro ao país teria mais segurança de que o país será capaz de pagar a dívida, o que contribui para reduzir os juros e o gasto financeiro do governo.
Um grupo de mais de 90 economistas, como Ana Carla Abrão Costa, Otaviano Canuto e Elena Landau, publicou no último domingo (16/08) um manifesto em defesa do teto. O texto critica propostas de flexibilizar o mecanismo e afirma que o importante, neste momento, seria o governo ter mais instrumentos para reduzir seus gastos, como proibir reajustes a servidores e reduzir em até 25% a jornada e o salário dos funcionários públicos, o que depende da aprovação de uma proposta de emenda à Constituição (PEC).
Guilherme Tinoco, especialista em contas públicas e mestre em economia pela USP, afirma que, à época de sua criação, o teto “foi muito bem feito” e “comprou o tempo necessário para se encaminhar reformas”, mas acabou prejudicado pela não aprovação de reformas. “Ele tinha uma flexibilidade no curto prazo e começaria a apertar em 2020 e 2021. Acontece que a reforma da Previdência atrasou muito, e as outras reformas não foram feitas. No curto prazo, esse estresse é bom porque força a discussão sobre ajuste de despesas obrigatórias. Mas é difícil pensar que ele vá durar até 2026. Vai ficar muito apertado daqui um ou dois anos”, diz.
De outro lado, há economistas que afirmam que a regra foi mal desenhada desde o início, ao não estabelecer etapas claras para alcançar o seu objetivo, ser inexequível no longo prazo e na prática acabar com a capacidade de o governo fazer investimentos que poderiam ajudar a estimular a economia durante crises.
“O objetivo do governo era reverter o aumento dos gastos como proporção do PIB. Mas o teto de gastos parou no objetivo. Para cumpri-lo, o governo teria que ter um plano, metas intermediárias com estratégia para atingi-las e táticas de curto prazo para lidar com desvios. Não vimos nada disso, e agora estamos jogando no colo do Congresso e da sociedade decidir como a despesa pública irá caber nesse teto. Mas isso gera mudanças contraproducente no gasto público, quem tem força no Congresso são as corporações, e quem sofre são os interesses difusos”, diz Bráulio Borges, pesquisador do IBRE-FGV e economista da consultoria LCA.
Gatilhos para reduzir despesas
Neste momento, uma saída apontada pelos defensores do teto para torná-lo viável seria aplicar gatilhos que autorizem o governo a tomar medidas mais drásticas para reduzir seus gastos.
A própria emenda constitucional que criou o teto de gastos estabeleceu alguns gatilhos, como proibir o governo de dar reajustes salariais a servidores, ampliar o quadro de funcionários públicos ou conceder aumento real do salário mínimo. Porém, por erro de redação, há dúvida sobre se esses gatilhos poderiam ser acionados.
O texto estabelece que eles só poderão ser aplicados se a despesa da União ultrapassar o limite do teto, o que nunca ocorrerá na prática, porque o Orçamento não poderia ser formulado desrespeitando a regra do teto. Há, na PEC Emergencial, uma alteração para autorizar o governo a acionar os gatilhos antes de a despesa atingir o limite.
Nesta quarta-feira (19/08), a IFI divulgou um documento no qual estima que esses gatilhos, se acionados, poderiam gerar uma economia de 0,5% do PIB em dois anos, ou cerca de 40 bilhões de reais. O órgão sugere que o governo poderia, em vez de aprovar uma PEC, pedir aval do Tribunal de Contas da União e do Supremo Tribunal Federal para aplicar os gatilhos já a partir do próximo ano.
“O ideal seria que houvesse uma alteração do texto do teto, para deixar claras as condições que viabilizem o acionamento do gatilho. Mas outra possibilidade seria que houvesse um consenso de interpretação sobre o que a regra do teto quer dizer”, diz Josué Pellegrini, diretor da IFI.
A PEC Emergencial também cria outros gatilhos, que seriam válidos por dois anos após sua aprovação. Entre eles, autorizar o governo a cortar em até 25% a jornada e os salários dos servidores e fazer uma redução progressiva de subsídios, que poderiam gerar uma economia de 15 bilhões de reais no período.
Borges, do IBRE-FGV, é cético sobre o uso desses mecanismos. “Algumas pessoas dizem que, se acionar os gatilhos, o teto se sustentaria até 2021 ou 2022. Mas o teto tem que ser cumprido até 2026. Não adianta ficar defendendo acionar um gatilho aqui e acolá, não é assim que se cumpre um objetivo ousado para um período de dez anos e não será com esse tipo de estratégia que você conseguirá sustentar o teto”, diz.
Propostas de mudança
No documento divulgado na quarta-feira, a IFI afirma que “não se deve interditar a discussão sobre o teto de gastos” com o objetivo de aprimorar as regras fiscais do país. Mas alerta que promover uma flexibilização para aumentar as despesas, “por um governo incapaz de transmitir uma agenda coerente e sustentável para a política fiscal”, seria um erro.
“É preciso tomar muito cuidado agora que o teto realmente se transformou em um limitador. Não quer dizer que seja ‘imexível’, mas alterar o teto sem ter nada no lugar, nessa situação de fragilidade fiscal, não é adequado”, diz Pellegrini.
Tinoco, que defendeu a criação do teto em 2016, hoje é favorável à sua flexibilização a partir de 2023. Junto com o economista Fabio Giambiagi, ele sugere permitir um pequeno aumento real do limite de gastos e criar um subteto para os investimentos, que garantiria um piso para o governo investir, por exemplo, em obras públicas.
“Até 2026, o teto é totalmente inviável. Sabendo que uma hora vai ter que ser mexido, vamos mexer. Mas não é bom flexibilizar o teto agora, justamente na hora de enviar o orçamento porque o presidente do momento quer gastar mais”, diz.
Borges também é favorável a alterações na regra do teto e defende que a discussão seja feita agora, mas com mudanças que valeriam somente a partir do início do próximo governo. “Mudar essa regra em período eleitoral é má ideia, e há no contexto atual pressão enorme para que o governo perenize boa parte do ajuste emergencial. A prudência recomenda que a mudança valha a partir de 2023, assim não estaremos mudando a regra no meio do jogo”, diz ele, que elogiou a proposta de Tinoco e Gambiagi.
Ele defende que o país discuta também suas outras regras fiscais e a ampliação da tributação para ajudar a pagar a dívida contraída durante a pandemia, por meio, por exemplo, de uma taxa sobre o uso de carbono, que estimule uma economia mais ambientalmente sustentável. “O pior dos mundos seria tirar o teto e não colocar nada no lugar. E sabemos que ajustes fiscais bem-sucedidos são aqueles que envolvem tanto o corte de despesas como o aumento de receita”, diz.
Outra proposta de substituição do teto foi apresentada pela economista Laura Carvalho, em coluna publicada no jornal Nexo em 6 de agosto. Ela sugere que o país estabeleça uma meta para o tamanho da sua dívida em relação ao PIB, para um prazo de quatro ou cinco anos, ao lado de um limite para o crescimento real de gastos de 2% a 3% ao ano no mesmo período. Nesse esquema, o orçamento de cada ano deveria ser elaborado de forma a alcançar essas duas variáveis.
Crédito: Deutsche Welle Brasil – disponível na internet 22/08/2020