Por que há tantos grupos neonazistas em Santa Catarina?

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Levantamento indica aumento de células extremistas de direita no estado, que tem a maior concentração desses grupos no país. Pesquisadores apontam ligação com valorização de identidade branca e descendente de europeus.    

O tema neonazismo veio à tona na última semana, com a posse da governadora interina de Santa Catarina, Daniela Reinehr. Seu pai, o professor aposentado Altair Reinehr é conhecido no estado por suas posturas negacionistas em relação ao Holocausto — ele foi colaborador de uma editora que sistematicamente publicava obras negando crimes da Alemanha nazista.

Após inicialmente se esquivar de responder se compactuava ou não com pensamentos neonazistas e negacionistas do Holocausto, a governadora interina  publicou no sábado (31/10) um artigo no jornal Folha de S.Paulo intitulado Não compactuo com o nazismo. No texto, ela diz discordar das posições do pai, apesar de amá-lo como filha.

Em outro episódio famoso de Santa Catarina, em 2014, um voo da Polícia Civil sobre a cidade de Pomerode avistou a imagem de uma suástica no fundo de uma piscina particular. O assunto repercutiu nacionalmente. Neste ano, o dono da piscina, o professor Wandercy Pugliesi, tornou-se candidato a vereador pelo Partido Liberal.

Em outubro, contudo, ele acabou expulso do partido e, em seguida, renunciou à candidatura. Nos anos 1990 ele teve objetos nazistas apreendidos em sua casa e se declarou “admirador” do regime de Adolf Hitler (1889-1945).

Também em 2014, dois jovens foram presos em flagrante em Itajaí por colarem cartazes nazistas na cidade. Eles acabaram absolvidos pela Justiça no ano passado.

Mas, afinal, há uma onda neonazista em Santa Catarina? Ela é maior do que no restante do Brasil? Especialistas ouvidos pela DW Brasil acreditam que sim.

A antropóloga Adriana Dias, doutora pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora do tema, monitora há 18 anos movimentos de células extremistas de direita no país.

De acordo com ela, o estado tem atualmente 85 células neonazistas organizadas em ação. Em junho, o estudo dela indicava que eram 69 — ou seja, em quatro meses houve um crescimento de 23% na quantidade desses grupos.

Em número absolutos, Santa Catarina só tem menos células neonazistas do que São Paulo, onde estão em atividade 89 grupos. Considerando as populações, os catarinenses têm a maior concentração desses grupos em atividade. São 11,8 células neonazista por milhão de habitante no estado do Sul, contra 1,9 por milhão no do Sudeste.

Dias comenta que tem verificado um aumento na quantidade de participantes por célula. Até o ano passado, os grupos catarinenses costumavam ter entre quatro e 40 membros, conforme sua análise. Agora, muitos chegam a 100, e a média está em 40, aponta.

“Branco e herói”

“O cenário de Santa Catarina acaba se tornando propício para a emergência de grupos neonazistas porque existe a valorização de uma identidade específica e o apagamento da diferença e da diversidade. E, de forma descontextualizada e generalizada, a imigração europeia acaba permanecendo na base dessa construção identitária”, analisa a historiadora Eloisa Rosalen, pesquisadora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Ela ressalta, contudo, que não se pode simplificar a questão pelo fato de a imigração alemã ter sido preponderante no estado catarinense.

“Não compreendo como uma simples transferência temporal e espacial, da Alemanha para Santa Catarina, da ideologia nazista”, enfatiza. Para a pesquisadora, houve uma construção identitária do estado “pautada na branquitude, nas narrativas heroicas do processo migratório e na ideia de descendência europeia” que acabou servindo como base para a “invenção catarinense de supremacia branca” ou para a maior aceitação de ideias neonazistas.

Isso teria sido reforçado ao longo do tempo com festas comemorativas em alusão aos imigrantes e também pelos relatos dos memorialistas locais que, segundo Rosalen, “supervalorizam o ‘pioneirismo'”.

“O que não quer dizer que essas festas ou livros têm caráter neonazista ou nazista”, pondera. “O que se encontra nesses materiais é a valorização de uma identidade que vai ser tomada como referencial único para Santa Catarina: branca, descendente de europeus, com o seu centro no ‘pioneiro’. O erro está nessa tomada como único.”

Para ela, acabou sendo forjada a história de um estado homogêneo, com “apagamentos das violências e das diversidades”.

“Pouco se fala, na esfera pública, sobre a violência às populações indígenas durante a colonização”, exemplifica. “Muito menos se registra a presença ou a descendência dos caboclos que ocupavam muitas terras na região serrana ou no Oeste Catarinense. Nada é dito sobre os insucessos migratórios que alguns colonos tiveram.”

A historiadora Juliana Clasen lembra que o processo de colonização catarinense, no século 19, “se deu durante uma política de embranquecimento do Brasil, quando era muito desejável trazer famílias italianas e alemãs”. Como muitos colonos se estabeleceram em locais distantes, pequenas vilas e cidades foram formadas e permaneceram isoladas.

“Essa ideia de que ‘somos alemães mesmo’ acabou permanecendo”, comenta Clasen. “Quando a pessoa é criada imersa nessa cultura, se chega a conhecer o nazismo pode vir a desenvolver uma predileção. Acaba muito mais suscetível a concordar com essas ideias, porque cresceu ‘longe do diferente’ e ouvindo que ‘somos nós e eles’.”

“São cidades pequenas muito avessas ao outro, ao migrante. [Ao longo do tempo], passaram a se sentir contaminadas por qualquer relação nova”, completa a antropóloga Dias.

Desnazificação

Dias afirma, contudo, que é preciso tomar cuidado para não generalizar e acabar estigmatizando Santa Catarina.

“O povo catarinense não tem culpa”, frisa. “Eles foram expostos a uma história por gente que ofereceu a eles um produto equivocado. E as pessoas que se imbuíram desse discurso e se tornaram hitleristas podem ser desnazificadas.”

“Hoje há uma eficácia simbólica desse discurso em Santa Catarina. Enquanto não houver um governo que efetivamente discuta essas questões e faça um processo de desnazificação, não vejo saída”, comenta a antropóloga.

Como a maior parte das ações e debates neonazistas são organizados pela internet, a DW Brasil solicitou à organização não governamental SaferNet Brasil, entidade brasileira que promove e defende os direitos humanos na rede, dados atualizados de denúncias recebidas sobre o tema.

Como os registros são anônimos, não foi possível fazer um recorte por estado. Mas, neste mês de outubro, a ONG recebeu 138 notificações relacionadas a neonazismo. Em outubro do ano passado tinham sido apenas 31 denúncias.

Crédito: Deutsche Welle Brasil – disponível na internet 03/11/2020

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