Trabalhadores que escondem doenças crônicas para conseguir emprego

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‘Se contar, ninguém te contrata’: os trabalhadores que escondem doenças crônicas para conseguir emprego

Quando ia ao consultório médico, Natasha fazia um pedido: “pode colocar outro CID?”.

CID é a sigla para Classificação Internacional de Doenças, e é onde o médico informa, com a autorização do paciente, sua doença, sintoma ou queixa no atestado médico.

Natasha Kaminski, uma administradora de empresas de 30 anos, é uma entre milhares de brasileiros com doenças crônicas não transmissíveis. Mas, até pouco tempo atrás, ela fazia parte de um grupo que teme sofrer preconceito ou perder o emprego caso sua doença seja descoberta pelo empregador ou colegas. Dessa forma, tenta escondê-la.

“Tenho esclerose múltipla e por muito tempo pedi pra colocar CID de virose quando precisei pegar atestado”, conta ela.

Cerca de 40% da população brasileira, ou 57,4 milhões de pessoas, possui pelo menos uma doença crônica não transmissível, segundo dados da última Pesquisa Nacional de Saúde feita pelo Ministério da Saúde e o IBGE, de 2013. Hipertensão arterial, diabetes, doença crônica da coluna, colesterol e depressão são as doenças de maior prevalência no Brasil.

Legislação

O trabalhador não precisa informar ao empregador que tem uma doença crônica. É sua prerrogativa — o direito à intimidade e privacidade está garantido na Constituição Federal.

A intimidade do trabalhador deve sempre ser preservada, diz Sandra Lia Simon, subprocuradora geral do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho.

“Tanto para que ele não seja discriminado, quanto para que seja resguardado. Ninguém precisa saber quando você está doente”, diz. O atestado, afirma, serve para o prontuário da pessoa para efeito da análise de risco da empresa, com o objetivo de verificar se a doença está relacionada com o trabalho.

Não há lei específica sobre a dispensa de pessoas com doenças crônicas no trabalho, mas há uma construção jurisprudencial com base em normas internacionais que protegem o trabalhador se a motivação tiver sido discriminatória. Caso consiga provar na Justiça que sua demissão ocorreu em razão da enfermidade, o trabalhador pode conseguir sua reintegração no trabalho e indenização.

O Brasil ratificou a Convenção 111, da Organização Internacional do Trabalho, que elenca as hipóteses em que ocorre discriminação no emprego. Também há proteção na Convenção Interamericana Contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância. Há também uma Súmula do Tribunal Superior do Trabalho, a 443, que considera discriminatório despedir empregado portador de “HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito”.

O que acontece com frequência, diz Simon, do Ministério Público do Trabalho, é que funcionários sofram assédio moral no emprego depois que a empresa descobre que estão doentes.

Natasha Kaminski
Em dois empregos, Natasha Kaminski ‘escondeu’ doença de colegas e chefes; hoje, ela já se sente confortável para falar que tem esclerose múltipla @arquivo pessoal  

“Começam a não passar trabalho para ela, tirar projetos, escanteá-la. Há diversas coisas que deixam a pessoa em situação desconfortável porque além da doença, ela ainda é tratada dessa forma pelo empregador”, diz.

Para ela, a discriminação por causa de doenças no trabalho pode piorar depois pandemia, já que muitas doenças crônicas colocaram o trabalhador no grupo de risco para a covid-19 — o que pode fazer com que empregadores não queiram funcionários que tenham de ficar afastados ou trabalhar de casa por causa dos riscos.

“Achamos que isso pode causar futuramente discriminação, inclusive no período pré-contratual”, diz ela. “Sempre houve discriminação com a idade. Agora, pode haver um novo tipo de discriminação por conta da pandemia.”

CID modificado

Natasha não está só: é comum que, com medo que o empregador descubra sua doença, funcionários peçam que o CID seja modificado no atestado médico, diz à reportagem um médico reumatologista que não quis ser identificado, lembrando uma paciente que descobriu recentemente que tinha lúpus, uma doença inflamatória e autoimune, e lhe pediu exatamente isso.

“Especialmente com médicos que lidam com doentes crônicos, e especialmente médicos que lidam com doentes crônicos jovens”, afirma. Pessoas mais velhas também relatam ter medo de perder o emprego e não conseguirem mais voltar para o mercado de trabalho, diz ele.

Mas o CID foi criado justamente para preservar a privacidade do paciente, explica o advogado trabalhista Sergio Batalha. A ideia era que, com um código representando uma doença, ele dificilmente seria identificada por pessoas leigas.

E, de qualquer forma, esclarece o advogado, o empregador não pode exigir CID no atestado médico. “Não é uma imposição legal. Nem o médico é obrigado a botar o CID”, diz ele. “Ele pode usar uma fórmula mais genérica, ou dizer simplesmente que a pessoa, por motivo de doença, não pode exercer atividade porque está sob seus cuidados.”

O médico entrevistado pela BBC News Brasil diz que é comum que os profissionais de saúde coloquem nos CIDs sintomas da doença, e não a doença em si. Uma pessoa com artrite reumatoide pode, por exemplo, apresentar um atestado com CID de dor nas costas; quem tem esclerose múltipla pode pegar um CID de cefaleia; lúpus, dermatose a esclarecer; enfisema, bronquite aguda.

“A doença deveria gerar mais empatia dos empregadores, mas o que acontece é justamente o contrário. Como têm a percepção de que pessoa pode adoecer, ficar afastada ou com um desempenho possivelmente inferior, acabam preferindo não contratá-la ou a dispensando”, diz o médico.

Medo de contar

Em grupos no Facebook de doenças crônicas, discussões sobre contar ou não contar no trabalho são comuns — a BBC News Brasil encontrou dezenas de publicações com essas questões.

No caso de Natasha foram duas empresas em que ela não contou a ninguém sobre sua doença.

A esclerose múltipla é uma doença neurológica, crônica, progressiva e autoimune. Os sintomas são diferentes — perda de visão, dor, fadiga e comprometimento da coordenação motora, e sua gravidade e duração variam de pessoa a pessoa. Acomete pessoas jovens, principalmente entre os 20 e 40 anos. Hoje, com tratamento, é possível estabilizar a doença, e portadores podem ter uma rotina ativa e com qualidade de vida.

Quando tinha 26 anos, dois anos depois do diagnóstico da doença, Natasha fez um processo seletivo para entrar em uma empresa de pesquisa e desenvolvimento.

“Por orientação do meu médico, não falei que tinha a doença no exame admissional. Ele me disse para contar depois, se eu fosse contratada e se me sentisse confortável”, conta ela.

Ela foi contratada, mas ainda não se sentia confortável para contar. Natasha conta que um dos fatores que contribuíram para seu desconforto foi ter ouvido comentários sobre uma colega com depressão — outra doença crônica — que tinha ficado 10 dias afastada por causa disso.

“Eu ouvi dizerem: ‘Nossa, trabalhar com pessoa doente desmotiva, né’. Não me fazia querer falar que eu também tinha uma doença”, diz ela. Quinze dias depois que a funcionária voltou, conta Natasha, ela foi demitida.

“A empresa tinha uma hierarquia rígida, e eu tinha medo. Por muito tempo fiz o esquema de pedir para colocar outro CID com medo de que descobrissem.”

Um ano e meio mais tarde, seu chefe acabou descobrindo que ela tinha a doença porque encontrou um texto na internet sobre um projeto que ela tinha participado sobre esclerose múltipla. A reação dele foi positiva.

“Ele entendeu a situação. Por ele, não teria problema, mas eu expliquei que, aos olhos da empresa, eu pensava que realmente me traria um empecilho, até, talvez, para conseguir uma promoção”, diz.

Dois anos depois, ela foi trabalhar na indústria automotiva. “É um ramo muito competitivo, e eu me senti acuada de contar”.

Um ano e meio depois, após familiarizar-se com os colegas e abrir sua rotina, decidiu comentar sobre essa parte da sua vida. A reação também foi positiva.

Mas, ainda assim, conta que já ouviu comentários ofensivos. “Uma vez fiz um erro no trabalho e comentaram: ‘Você está tomando seus remédios direito?'”, conta ela.

“O preconceito maior é das pessoas não saberem o que é e julgarem de forma negativa.”

Em outra ocasião, ouviu: “Ah, mas você vai promover ela. E se ela tiver alguma coisa e não conseguir trabalhar?” e “Você vai colocá-la em um cargo de gestão? E se ela tiver um ataque na frente do cliente?”

Camila Gomes
Camila Gomes tem uma doença inflamatória intestinal e, por isso, diz ela, enfrenta dificuldades para ser contratada @arquivo pessoal

“É muito do preconceito. Se a pessoa tem vontade e pesquisa sobre a doença, ela vê que não acontece esse tipo de coisa. São comentários maldosos.”

“Nós que temos doença crônica temos medo de falar, mas ao mesmo tempo queremos dizer: ‘Eu tenho uma doença, mas consigo trabalhar como vocês, consigo ser promovida’. É uma luta diária para quem eu posso falar.”

Hoje, ela trabalha em uma start-up menor, com 30 funcionários, no ramo de manutenção. “Já no primeiro dia senti que a empresa é aberta. Me senti acolhida e aberta para falar para o dono da empresa no primeiro dia de trabalho”, conta ela. “Mas mesmo assim foi um desafio falar pela primeira vez.”

Para Camila Gomes, 24, o problema não é trabalhar, é passar nas entrevistas. Aos 18 anos, ela descobriu que tinha uma doença inflamatória intestinal crônica. Ela foi diagnosticada com retocolite ulcerativa, uma doença autoimune que atinge o intestino grosso que provoca diarreias, dor abdominal e sangramento nas fezes.

“Eu me formei como técnica em enfermagem em 2018 e até hoje não consegui um emprego”, diz ela.

“Eu passo nas provas, nas entrevistas, mas quando chega na hora do exame médico, sou reprovada.”

Nas entrevistas, ela diz que conta sobre a doença. “Não tenho como esconder, já que apresento sintomas de tempos em tempos. A doença causa remissão e crises”, afirma, contando que frequentemente sente muita dor e precisa de tratamento.

“Eu faço uso de imunomoduladores, tenho imunidade baixa, três médicos diferentes, crises e dores no corpo. Tomo algumas medicações que só podem ser tomadas no hospital.”

‘Sinuca de bico’

Em um grupo de Facebook de portadores de esclerose múltipla, os membros debatem sobre contar ou não contar sobre a doença em entrevistas de emprego ou no trabalho. “Se entrar no emprego sem contar sobre a EM o que vai fazer quando tiver exames? Consultas? Surtos? Vai inventar o quê? Não tem jeito, e se contar ninguém contrata!”, diz uma integrante.

“Não conto que sou portadora de EM… Só com o tempo, quando vou a consultas periódicas que vou esclarecendo….”, diz outra.

“Se você contar que tem, você não consegue emprego, mas também não é legal não contar! É muito complicado nossa situação!”, diz um usuário. “Estamos em uma sinuca de bico.”

Ali, uma portadora de esclerose múltipla conta seu caso pessoal, e depois o detalha à BBC News Brasil, pedindo para não ser identificada. Algum tempo depois de contar no trabalho, uma empresa de seguros, que tinha a doença, ela foi demitida. Entrou na Justiça, conseguiu provar que a demissão havia sido discriminatória e teve a demissão anulada. Além disso, recebeu o pagamento dos salários durante o período em que esteve demitida e indenização por danos morais.

Isso porque provou que uma supervisora começou a tratá-la de forma diferente quando soube do diagnóstico, “me podando de projetos e impedindo que eu fizesse processos seletivos para outras áreas”. Na opinião dela, foi fundamental contar na empresa que ela tinha a doença como uma forma de proteção.

Simon, do Ministério Público de Trabalho, diz que trabalhadores que contam sobre alguma doença no trabalho devem ficar “atentos com a postura do empregador, sempre se munindo e documentando tudo, verificando se não mudou o tratamento da empresa com o funcionário depois disso”.

Crédito: Juliana Gragnani da BBC News Brasil – @internet 07/12/2020

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