A queda de braço entre o presidente Jair Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Doria, sobre a suposta obrigatoriedade da vacinação contra o coronavírus é “inoportuna” e “contraproducente”.
Quem afirma são cientistas ouvidos pela BBC News Brasil no Brasil e no exterior. Eles lembram que, há anos, brasileiros e cidadãos em todo o mundo já convivem de forma tranquila com regras que colocam a vacinação em dia como condição para determinadas atividades — e isso passa longe de imposições violentas, disputas políticas ou teorias de conspiração.
“Quando se fala que vai vacinação obrigatória, a maioria das pessoas imagina uma cena com um agente de saúde entrando na sua casa com uma seringa na mão e vacinando você à força, contra a sua vontade”, diz a pesquisadora Natalia Pasternak, PhD em microbiologia e integrante da Equipe Halo, uma iniciativa da ONU que reúne cientistas do mundo todo para aumentar o alcance da ciência.
“Isso não existe e não vai acontecer. Não é assim que as vacinas são tratadas em países democráticos.”
Enquanto países como o Reino Unido e os EUA já deram início a seus programas de vacinação em massa, o tema se mantém como um dos principais eixos de discórdia entre o governador paulista e o presidente nas últimas semanas. O primeiro já defendeu publicamente a obrigatoriedade da imunização; o segundo insiste que esta é uma decisão individual.
Doria e Bolsonaro são possíveis rivais nas eleições presidenciais de 2022.
“A vacina nunca é obrigatória no sentido de que ninguém é vacinado contra a sua vontade, mas existem restrições da vida civil que você pode sofrer se não puder apresentar um atestado de vacinação”, explica Pasternak.
“Essas restrições da vida civil estão condicionadas a um atestado de que você está contribuindo com medidas de saúde coletiva, caso da vacina.”
Veja mais sobre como restrições do tipo já acontecem na prática no Brasil a seguir.
Teorias de conspiração
O consenso entre cientistas é de que, mais do que se falar em obrigatoriedade ou não, o momento pede campanhas claras de informação pautadas principalmente pela transparência para que as pessoas entendam a importância da vacinação como instrumento mais importante para se mudar a trajetória destrutiva do coronavírus – que já matou mais de 1,6 milhão de pessoas em todo o mundo.
Depois de Estados Unidos e Índia, o Brasil é o terceiro país com mais mortes no planeta – 181 mil, até segunda-feira (14).
Para o químico americano Derek Lowe, especialista no desenvolvimento de medicamentos e autor de um blog na revista Science, a ideia de uma “imposição do tipo ‘você tem que tomar a dose'” poderia enterrar a possibilidade de conscientização para que a população se vacine.
“Temo que uma ordem de ‘vacinar, queira você ou não’ convenceria muitas pessoas de que as teorias da conspiração que elas podem ter ouvido falar sejam realmente verdadeiras”, diz Lowe a BBC News Brasil.
“Mas se as pessoas aderirem voluntariamente, receberem a vacina e não desenvolverem efeitos negativos, como serem rastreadas por satélites secretos de controle mental de Bill Gates e George Soros, ou seja lá o que for, as dúvidas serão superadas”, ironiza.
O químico resume seu ponto: “Se a abordagem for impositiva, haverá chance zero de persuasão”.
As ideias de que o Sars-CoV-2 foi deliberadamente criado em um laboratório pela indústria farmacêutica de olho no lucro com a venda de uma vacina, ou que foi espalhado pelos governos da China ou dos Estados Unidos, ou que tem reação com bilionários famosos, ou que é disseminado por meio do sinal 5G, são aceitas por um número significativo de pessoas em todo o mundo, segundo revelou uma pesquisa global feita recentemente.
Nenhuma delas tem relação com a realidade – e é a falta de informação o principal caminho para que as teses se espalhem.
A perspectiva dos entrevistados pela BBC News Brasil é defendida pela Organização Mundial da Saúde.
À reportagem, a organização defendeu o diálogo e a informação para que a população abrace voluntariamente vacinação.
“Para se alcançar uma alta adesão as vacinas contra a Covid-19, os países devem priorizar comunicação transparente e o envolvimento da comunidade para construir confiança e aumentar a aceitação pública. Os países também devem garantir que a vacina seja gratuita e facilmente acessível, fornecida por meio de serviços de qualidade. Com esses e outros esforços, é possível que a adoção voluntária da vacina seja adequada para começar a controlar a pandemia.”
Sobre a ideia de vacinação obrigatória, a OMS disse à reportagem que “em situações em que a adesão voluntária da vacina for inadequada e as taxas de transmissão de Covid-19 permanecem inaceitavelmente altas, é possível que alguns países considerem a introdução de programas obrigatórios no interesse de salvar vidas”.
“Extremo cuidado deve ser tomado com a implementação de tais mandatos ou requisitos, incluindo o uso de quaisquer penalidades ou multas, porque elas podem reforçar desigualdades sociais e de saúde.”
Na prática, vacinas no Brasil já são ‘obrigatórias‘
A cientista Natalia Pasternak lembra, no entanto, que a obrigatoriedade ou não da vacinação não foi objeto de questionamento na história recente do Brasil – onde vacinas são aplicadas de maneira ampla, gratuita e coordenada desde a implantação do Plano Nacional de Vacinação, nos anos 1970.
“As pessoas se vacinam porque a vacina é um direito delas, porque é de graça no posto de saúde e para proteger suas família”, diz a cientista.
“O brasileiro sempre encarou a vacinação como um direito e não para para pensar se era ou não obrigatório. Isso nunca foi relevante.”
Para Pasternak, esta discussão “só aumenta a desconfiança que as pessoas já tem estão em relação a vacina do covid, porque é um processo que elas nunca acompanharam antes”
“Se for discutir obrigatoriedade, tem que discutir esclarecendo que obrigatoriedade são restrições civis, e no máximo restrições civis, não é vacinação a força nem coagir ninguém”, diz.
“Quando se fala em obrigatoriedade, quem está acostumado com legislação de vacinas está pensando nisso. E a população, que está desacostumada, quando escuta obrigatoriedade, pensa ‘vão me vacinar à força’.”
Mas o que são as “restrições civis” a que especialistas como a brasileira se referem?
Independentemente do que venha a acontecer com a vacina contra o coronavírus, nós, brasileiros, já convivemos com elas há décadas em pelo menos cinco situações. Confira a seguir.
Escolas
Em diversos Estados e cidades brasileiras, quem quiser matricular filhos em colégios públicos precisa mostrar cadernetas de vacinação em dia.
A obrigatoriedade é determinada por leis estaduais em locais como Paraná, Mato Grosso do Sul, Goiás, Pernambuco, Paraíba, Roraima e Acre. As regras variam conforme a região.
Mais recentemente, em julho de 2020, o Estado de São Paulo aprovou uma lei que impõe a necessidade de vacinação em dia para alunos matriculados em educação infantil, ensino fundamental e ensino médio da rede pública estadual.
A medida é uma tentativa de reverter o quadro de queda nas taxas de vacinação – que despencam de forma mais acelerada no Brasil em comparação com o resto do mundo.
Concursos públicos
A necessidade de apresentação de caderneta de vacinação também é velha conhecida dos concurseiros.
Ela é mais um exemplo de restrição social imposta pelas vacinas – ou obrigatoriedade – no caso daqueles que quiserem disputar cargos públicos no Brasil.
As regras sobre documentação para concursos também variam de estado para a estado. Na grande maioria dos Estados brasileiros, certificados que comprovem que candidatos tomaram vacinas como a antitetânica e contra a hepatite B são requisitos necessários para a admissão.
O mesmo vale para concursos públicos federais, como para o Ministério Público ou a Polícia Federal.
Em muitos casos, os concursos também exigem comprovantes de vacinação dos filhos dos candidatos com até 5 anos.
Os concursos são mais um exemplo de como a obrigatoriedade das vacinas funciona na prática no Brasil. Ninguém é obrigado a tomar compulsoriamente estas vacinas – mas a falta delas, neste caso, veta que a pessoa possa assumir um cargo após concurso.
Bolsa Família
Segundo a secretaria especial do desenvolvimento social, do Ministério da Cidadania, responsável por programas de distribuição de renda como o Bolsa Família, a vacinação em dia é “condição necessária” para que as pessoas que se encaixam nos critérios de seleção possam receber o benefício.
“Para cumprir corretamente a condicionalidade de saúde do Bolsa Família, os responsáveis devem levar as crianças menores de sete anos para receber as doses recomendadas pelas equipes de saúde e para pesar, medir e fazer o acompanhamento do crescimento e do desenvolvimento”, diz a pasta, em seu site.
“Já as gestantes devem fazer o pré-natal e ir às consultas na Unidade de Saúde.”
Alistamento militar
Quem quiser se alistar no Exército também precisa estar com a vacinação em dia, por determinação do governo federal.
Em portaria publicada em novembro, o Ministério da Defesa determinou que a vacinação deve ser obrigatória para todos os militares da ativa.
Após a incorporação, membros do Exército, Marinha e Aeronáutica tem até seis meses para comprovarem que tomaram suas vacinas.
Viagens internacionais
A vacina contra a febre amarela é o grande exemplo global de como a “obrigatoriedade” de uma vacina pode se traduzir na prática.
Para entrar em dezenas de países, viajantes de várias partes do mundo, incluindo o Brasil, precisam apresentar um certificado internacional de vacinação (CIPV) que comprove que tomaram a vacina contra a doença.
A recomendação da OMS é que viajantes tomem a vacina no mínimo 10 dias antes de embarcar.
A lista mais recente da OMS inclui 127 países que exigem vacinação contra a febre amarela – do Afeganistão ao Zimbábue.
A disputa no Brasil
Em 26 de novembro, o procurador-geral da República Augusto Aras disse emitiu um parecer ao Supremo Tribunal Federal sobre o tema.
Na avaliação do PGR, a vacinação obrigatória é amparada pela Constituição no Brasil e sua aplicação, em caso de necessidade, deve ser determinada em nível federal pelo Ministério da Saúde.
“É válida a previsão de vacinação obrigatória como medida possível a ser adotada pelo Poder Público para enfrentamento da epidemia de covid-19, caso definida como forma de melhor realizar o direito fundamental à saúde, respeitadas as limitações legais”, escreveu o PGR.
Ainda segundo ele, se houver comprovação de incapacidade ou falta de ação do governo federal sobre o tema, “poderão os estados-membros estabelecer a obrigatoriedade da imunização como forma de melhor realizar o direito fundamental à saúde”.
Comentários recentes em defesa da vacinação espontânea foram usados por apoiadores do presidente como suposto apoio do órgão às teses bolsonaristas contra a vacinação compulsória.
O próprio presidente comentou o caso disse a apoiadores na entrada do Palácio da Alvorada, na manhã do dia 8. “Até que enfim a OMS começou a acertar, né?”.
No comentário à BBC News Brasil, a OMS disse que “assume uma posição neutra na questão da imunização em geral” e que “os comentários de nossos especialistas durante a conferência de imprensa virtual referem-se especificamente às vacinas para Covid-19”.
Esperança x escassez
O órgão disse ainda à reportagem que as vacinas são “uma boa notícia” e “nos dão esperança”.
“Nas atuais circunstâncias, a maioria das pessoas está ansiosa para ter disponíveis vacinas contra a Covid-19 e prosseguir com a vacinação, de modo que obrigatoriedade não é a direção a seguir.”
Mas a OMS lembrou que inicialmente a oferta de vacinas contra a covid-19 será escassa.
“A OMS insiste em torná-las disponíveis e acessíveis às populações prioritárias e garantir que esses grupos tenham as informações de que precisam para fazer uma escolha informada.”
Uma estimativa da coalizão People’s Vaccine Alliance (Aliança da Vacina do Povo, em tradução livre, grupo que reúne organizações como Oxfam, Anistia Internacional e Global Justice Now) aponta que quase 70 países de baixa renda só conseguirão vacinar 1 em cada 10 de seus cidadãos.
O grupo prevê um déficit de vacinação nesses países, uma vez que a maior parte das doses está sendo adquirida em alto volume por países ricos.
A coalizão aponta que países de alta renda compraram doses suficientes para vacinar suas populações inteiras três vezes, caso todas as vacinas forem de fato aprovadas para uso.
Diferentes iniciativas em defesa de uma distribuição homogênea das vacinas contra a covid-19 vêm sendo anunciadas ao redor do mundo. O compromisso conhecido como Covax conseguiu garantir 700 milhões de doses de vacinas para que sejam distribuídas em 92 países signatários de baixa renda.
No entanto, aponta o grupo, pelo menos 67 países devem ter doses suficientes para apenas 10% de sua população. Todos são nações de baixa renda da Ásia e da África – nenhum país latino-americano está na lista.
Ricardo Senra da BBC News Brasil em Londres – @internet 16/12/2020