A criação do juiz de garantias prevê a divisão entre dois magistrados da análise de processos criminais. O modelo foi aprovado no ano passado pelo Congresso, junto com o pacote anticrime, e sancionado em 25 de dezembro pelo presidente Jair Bolsonaro, mas sua aplicação foi suspensa por Fux, em janeiro. O ministro entendeu que a medida tinha sido feita sob medida para depreciar o juiz da causa. Na sua avaliação, mudanças na estrutura do Judiciário somente devem ser feitas pelo próprio Poder.
Advogados dizem agora que a liminar de Fux é irregular e pedem habeas corpus em favor de todas as pessoas submetidas a investigações e processos criminais e de todos os presos em flagrante, cuja audiência de custódia não tenha sido realizada em 24 horas. Nos bastidores, a ofensiva dos advogados é atribuída a um movimento do ministro do STF Gilmar Mendes, que tenta dar o troco em Fux por ele ter votado contra a reeleição dos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). Gilmar era o relator da ação.
Na prática, o habeas corpus do Instituto de Garantias Penais (IGP) – que reúne os advogados autores da medida judicial – foi visto por interlocutores de Fux como uma manobra de criminalistas para anular ações penais de políticos atingidos pela Lava Jato. Segundo o Estadãoapurou, um dos temores do presidente do STF é o de que a eventual concessão de liminar tenha efeito retroativo, beneficiando condenados a partir de 23 de janeiro deste ano, quando a medida estava prevista para entrar em vigor.
Ao contestar duramente a liminar de Fux, o habeas corpus também impediu a atuação dele no caso. Até a conclusão desta edição, o sistema eletrônico do Supremo ainda não havia definido o relator do processo, que pode parar nas mãos da vice-presidente da Corte, Rosa Weber, durante o plantão do Judiciário. No calendário de julgamentos do STF para 2021, Fux deixou de fora as ações sobre o juiz de garantias.
O criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, um dos nomes do IGP que assinam o habeas corpus coletivo, negou que o pedido vá colocar criminosos na rua. “Isso é um desconhecimento impressionante sobre o que se trata. Apenas o Estado vai implementar uma forma de agir, que existe em quase todo o mundo. Não vai ninguém ser solto. Ninguém vai ser beneficiado”, disse Kakay.
Para Davi Tangerino, professor de Direito Penal na FGV Direito São Paulo, a apresentação do habeas corpus serve como instrumento para pressionar Fux a levar para análise do plenário as ações sobre o juiz de garantias. “Em princípio, não cabe habeas corpus contra liminar de ministro do Supremo. Logo, esse processo tem mais esse obstáculo a ser superado. Independentemente da decisão, a impetração em si é uma pressão para que seja pautado no plenário o juiz de garantias. Isso está super claro”, afirmou Tangerino. “Se for dada a liminar suspendendo a decisão de Fux, a soltura (de presos) poderia ser uma das consequências.”
Presidente da Associação dos Juízes Federais (Ajufe), Eduardo André Brandão concorda que não cabe habeas corpus em liminar de ação declaratória de inconstitucionalidade. “Seria preciso uma construção nova, jurisprudencial, para permitir esse habeas corpus e eu tenho certeza de que os advogados sabem disso. É um ato político que está sendo feito. Agora, qual a razão desse ato político, não sabemos”, disse.
Brandão observou que o habeas corpus pode ter efeito semelhante ao caso do traficante André Oliveira Macedo, o André do Rap. Acusado de comandar esquema internacional de tráfico de droga, ele foi solto após obter um habeas corpus concedido pelo ministro Marco Aurélio Mello, em outubro. No mesmo dia, Fux suspendeu a liminar, mas o criminoso já havia fugido. “Até assusta que se pregue esse tipo de atitude novamente”, disse o presidente da Ajufe.
A decisão de Marco Aurélio, porém, foi tomada com base em outro artigo do pacote anticrime aprovado no Congresso, que incluiu no Código Penal uma regra limitando a prisão preventiva a 90 dias, “podendo ser renovada sob pena de se mostrar ilegal”.
Para criminalista, nome do cargo gera rejeição
Apesar de polêmica, a apresentação do habeas corpus coletivo pedindo o cancelamento dos atos processuais que não passaram pelo juiz de garantias teve apoio de parte da classe. Para o advogado criminalista Augusto de Arruda Botelho, um dos fundadores do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), a função é uma das “inovações mais importantes” do processo penal brasileiro.
“Do ponto de vista processual, é muito mais produtivo que um novo juiz, que não conhece a causa e não esteja eventualmente contaminado pela produção de provas, venha a julgar o processo em questão. As pessoas criticam esta inovação em razão do nome. Entendem que o juiz de garantias vai protelar o andamento do processo, contribuindo para a defesa do acusado. Isso não faz o menor sentido”, disse Botelho. “É prudente que o juiz que julgue a causa seja diferente do que ajudou a produzir prova.”
Professora de direito penal da Faculdade de Direito da USP, Ana Elisa Bechara destaca que a figura do juiz de garantias é importante para garantir o processo democrático dos atos penais. “Existem exemplos mundo afora, como França, Chile, Itália e Espanha, que possuem regras expressas para definir essa separação de quem vai denunciar de quem vai julgar. Essa experiência em países estrangeiros é muito positiva e mostra que ela é fundamental para garantir direitos constitucionais, principalmente na esfera penal, que é tão drástica.”
Uma das polêmicas abordadas na discussão é a possibilidade de soltura de presos em processos realizados após a suspensão da função no processo criminal, realizada em janeiro. Maíra Zapáter, professora de direito da Unifesp, ressalta a necessidade de discutir a adequação do habeas corpus.
“Uma coisa é discutir se a lei é constitucional. Outra questão é se esse pedido de habeas corpus é a melhor maneira de discutir o que está sendo pedido, que na verdade é a reversão da decisão de um processo que está sendo demorado”, afirmou.
Ações penais teriam 2 juízes
A legislação sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em dezembro de 2019 dentro do pacote anticrime prevê que cada processo penal seja acompanhado por dois juízes: o juiz de garantias, que atua apenas na fase da investigação criminal, ao passo que o prosseguimento da apuração e a sentença ficam a cargo de outro magistrado.
Pela legislação, o juiz de garantias seria responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais. Seria sua competência decidir sobre prisão provisória, a quebra ou não dos sigilos fiscal, bancário, de dados e telefônico e sobre procedimentos de busca e apreensão.
Quem se opõe à proposta argumenta que a medida seria de difícil implementação e resultaria em custo extra para o Judiciário. Defensores do dispositivo destacam seu potencial de preservar o equilíbrio nas ações penais e garantir a segurança do direito.
A separação jurisdicional de investigação e julgamento existe em países como Itália, Portugal, Chile e Colômbia.
Crédito: Jussara Soares e Rafael Moraes Moura com a colaboração de Rodrigo Sampaio, O Estado de S.Paulo – @internet 18/12/2020