O mosaico de sexo, violência e magia de ‘As Mil e uma Noites’, o livro que todos conhecem e poucos leem

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As Mil e Uma Noites é uma obra maravilhosa… embora isso não deva ser dito sem reflexão.

Mas, se nos ativermos ao fato de que “maravilha” vem de palavras latinas que significam admirar algo que surpreende por ser pouco comum e ao mesmo tempo belo, a coleção de histórias que se originou na Índia e na Pérsia e foi enriquecida pelo calor das fogueiras dos nômades em suas viagens pelo norte da África e Oriente Médio provavelmente merece o adjetivo.

Você próprio pode julgar — mesmo que não tenha lido as mil e uma páginas do livro, já que várias histórias transcenderam a publicação para nos transportar para seus mundos de fantasia.

Aladim e a lâmpada maravilhosa te diz algo? Alguma vez te contaram sobre As viagens de Simbad, o marujo? Você é daqueles que têm a expressão “Abre-te sésamo” gravada na memória? Ou lembra que essa era a senha para entrar na caverna do tesouro em Ali Babá e os 40 Ladrões?

Essas histórias fabulosas — muitas repletas de magia, gênios, espíritos malignos e heróis icônicos — fascinam o Oriente e o Ocidente há séculos.

Mas As Mil e Uma Noites é muito mais do que uma coleção de histórias.

É uma homenagem a uma das forças naturais mais poderosas: a curiosidade.

A arte da sedução

Tudo começa “no decorrer dos tempos mais antigos, e em uma época remota”, depois que um dos filhos de “um rei sassânida que dominava as ilhas da Índia e da China” descobriu que sua esposa era infiel.

Cena das 'Mil e uma Noites'
Com origem indiana e persa, as histórias chegaram à Europa no século 18, quando um francês chamado Antoine Galland ficou fascinado com a obra e a traduziu @Getty Images 

Ele se chamava Sahriyar e havia herdado o trono. Enfurecido, ordenou que cortassem a cabeça da rainha e, amargurado, decidiu que todo dia se casaria com uma nova jovem, tiraria sua virgindade e a mataria no dia seguinte.

Três anos depois, quando não havia mais mulheres jovens na cidade, o vizir, encarregado de conseguir as vítimas, contou à sua filha mais velha, Sherazade, o que estava acontecendo.

Ela implora então ao pai que permita que se case com o rei.

Sherazade havia pensado em uma estratégia astuta para salvar as mulheres e usaria em pleno leito nupcial a atração irresistível do desfecho de uma história.

Naquela noite, quando o rei quis possuí-la, ela começa a chorar e pede a ele que traga sua irmã Duniazade.

Depois que o rei tira a virgindade de Sherazade, Duniazade pede à irmã que conte a eles uma história “para se distraírem na noite insone”.

Em cada uma das mil e uma noites, quando chegava a madrugada, Sherazade interrompia seu relato e prometia terminá-lo — e contar histórias ainda melhores — “se vivesse e se o rei a permitisse ficar”.

O soberano não tinha muita opção… como ele poderia ficar sem saber como terminou a história?

Só por isso, a obra já teria valido a pena.

Mas acontece que essa era apenas a moldura… a moldura de um livro infinito.

Infinito

O próprio título antecipa isso.

Como afirmou o escritor argentino Jorge Luis Borges, um dos vários autores renomados amantes da obra, “dizer mil noites é dizer infinitas noites, as muitas noites, as incontáveis noites. Dizer ‘mil e uma noites’ é acrescentar uma ao infinito”.

E a promessa feita no título, “um dos mais belos do mundo” para Borges, é cumprida.

Sherazade cativando o rei com suas histórias em uma ilustração de 1892
Sherazade cativando o rei com suas histórias em uma ilustração de 1892 – @Getty Images   

O aposento real em que Sherazade dá asas à imaginação do rei e desperta sua curiosidade é o cenário ideal para uma história sem fim, uma estrutura sólida para sustentar relatos que podem ser multiplicados indefinidamente em qualquer direção.

Por si só, qualquer história que Sherazade invoque é um relato dentro de seu relato, mas várias de suas histórias contêm outras histórias.

Uma delas narra o encontro de um gênio que vai decidir qual entre três homens matar. O gênio conta porque está tão revoltado com o mundo, e as vidas dos três homens dependem das histórias que vão narrar.

Assim, sob um único título, Sherazade conta 5 histórias.

E essa é a estrutura perfeita para uma obra que não nasceu escrita, mas falada, que não teve um autor, mas milhares, que foi confeccionada por gerações e se alongou e encurtou ao longo do tempo.

Uma obra que é um mosaico de sexo, violência, magia, aventura e crueldade, que está muito além das histórias infantis que conhecemos, mas que as admite, porque não se trata de ser fiel a algo escrito em pedra, mas de se deleitar com o prazer de mergulhar em outra realidade.

Uma obra que, nas palavras de Borges, é uma “espécie de eternidade”.

Crédito: Dalia Ventura da BBC News Mundo – @internet 26/12/2020.

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