O ano de 2020 foi um marco na história do ecossistema brasileiro de startups: com o isolamento social e a necessidade de digitalização, as empresas de inovação viram seus negócios acelerarem em poucos meses o que estava previsto para anos.
Entre janeiro e novembro, as startups brasileiras levantaram US$ 2,87 bilhões em aportes, de acordo com dados da empresa Distrito, que mapeia o setor – o acumulado já supera o volume de investimentos realizados no período em 2019, que foi de US$ 2,78 bilhões.
Para especialistas ouvidos pelo Estadão, a pandemia impulsionou principalmente os setores de logística, saúde, educação e serviços financeiros. Duas empresas dessas áreas atingiram a avaliação de mais de US$ 1 bilhão em plena pandemia: a Vtex, que ajuda grandes marcas a criarem e manterem suas lojas online, e a fintech Creditas.
Por outro lado, também houve desafios. No início da pandemia no Brasil, em março, o cenário congelou. E alguns negócios que dependiam do mundo físico foram afetados ao longo de todo o ano. Abaixo, seis especialistas em inovação comentam o desempenho das startups brasileiras em 2020.
‘Tudo o que é curto prazo vai passar’, diz Bedy Yang, sócia do fundo 500 Startups
“Em 2020, o mercado de startups teve impactos positivos e negativos, sendo alguns de curto prazo e outros de longo prazo. Em termos de oportunidade, tudo que é curto prazo vai passar. Alguns serviços foram pausados como, por exemplo, startups de escritórios compartilhados, mas acreditamos que os escritórios vão voltar de alguma forma quando a pandemia terminar, mesmo que diferentes. Do lado positivo, todo mundo fala que a covid-19 trouxe transformações digitais, mas temos de olhar para o que de fato mudou e tem impacto no longo prazo. Quatro áreas principais viveram essa transformação para valer: saúde, educação, serviços financeiros e logística. Neste ano, vimos também muitas aquisições de startups, seja por empresas internacionais ou por brasileiras, o que é uma excelente notícia para o setor de capital de risco. O mercado nunca teve uma liquidez tão forte.”
‘O brasileiro está investindo em tecnologia’, diz Renato Valente, sócio do fundo Iporanga Ventures
“A economia sofreu e houve perdas irreparáveis, mas para tecnologia foi diferente. Os números do setor voltaram a crescer e parte disso foi reflexo dos investidores. O momento era propício: havia juros baixos no mundo inteiro e o investidor estava em busca de ativos de maior risco. Isso também tem relação com a Bolsa de Valores: o número de novos investidores na Bolsa no Brasil é super relevante. A chegada de IPOs de tecnologia, como Méliuz e Enjoei, foi interessante para o brasileiro se acostumar a investir nesse tipo de ativo. Além disso, as empresas que abriram capital na Bolsa estão fazendo aquisições de startups, o que faz o dinheiro ser reinvestido. No fim das contas, depois do cenário congelar em março, as coisas aceleraram e voltaram mais fortes – rodadas grandes estão acontecendo. O ano de 2020 vai ser o melhor da história nesse aspecto no Brasil, mas é um ano de inflexão.”
‘As startups saem mais fortes de 2020’, diz Marcos Mueller, CEO da aceleradora Darwin Startups
“Tivemos um ano importante para startups, especialmente na relação com as grandes empresas. Muitas corporações reviram processos para fazer contratação e parcerias – e várias startups se beneficiaram dessa abertura. Foi um divisor de águas: quem conseguiu sobreviver ao ano sai muito fortalecido. Quem já não vinha bem acabou ficando mal, mas a pandemia não foi o fator determinante. Uma coisa engraçada é que, como as pessoas estavam distantes, isoladas em casa, o sentimento é de que foi um ano mediano, porque faltou a troca de energia e a vibração de estar no mesmo lugar. Mas foi um ano especial para as startups. E estou otimista com o futuro, porque os empreendedores que passaram por essa temporada estão com a casca mais grossa. Aqui na Darwin, tivemos nosso melhor ano em termos de métricas. Não tivemos nenhuma empresa que fechou em função exclusiva da pandemia.”
‘Corporações se voltaram à tecnologia’, diz Renata Zanuto, diretora do centro de inovação Cubo Itaú
“Os dois primeiros meses da pandemia foram momentos de entendimento de cenário. As startups tiveram de segurar caixa porque as grandes empresas também estavam fazendo o mesmo – por conta disso, muitos contratos foram cancelados e postergados. Elas passaram por um período de sobrevivência. Mas ao longo dos meses, os negócios voltaram a acontecer, já que as corporações tradicionais perceberam que precisavam de tecnologia para continuar a operação. Com as startups, as grandes empresas ganharam tempo: em vez de criar um novo produto ou entrar em novos mercados do zero, com aquisições de startups elas conseguiram ganhar a velocidade que precisavam. A inovação deixou de ser só interessante para se tornar necessária e estratégica. No Cubo, para se ter uma ideia, tivemos mais de 1,7 mil empregos sendo gerados pelas startups entre janeiro e agosto.”
‘Tivemos vários sinais de maturidade’, diz Michael Nicklas, sócio do fundo Valor Capital Group
“O ecossistema atingiu uma grande maturidade ao longo do ano. Vimos capital sendo alocado em todos os estágios de startups, seja no investidor-anjo, em investimento-semente ou em rodadas maiores. As tendências aceleraram de forma geral, em diversas áreas como delivery, saúde, educação a distância, colaboração remota e cibersegurança – este último teve um crescimento surpreendente. Além disso, foi uma das primeiras vezes que presenciamos muitas saídas acontecendo e muitos empreendedores seriais voltando para o mercado. Isso é uma indicação de amadurecimento do mercado. Um exemplo é o empreendedor Paulo Veras, que depois de vender o app de transporte 99 para a chinesa Didi, agora se tornou investidor e deve participar de mais de dez conselhos. É um passo importante porque o conhecimento é reciclado, trazendo experiência e maturidade para as empresas.”
‘As mulheres receberam menos aportes’, diz Rafaela Bassetti, CEO do fundo Wishe, focado em mulheres empreendedoras
“Falando do mercado de startups, foi um ano especialmente difícil para as mulheres empreendedoras. Em 2020, elas receberam menos investimento do que vinham recebendo nos últimos anos – foi uma queda tanto no número de acordos quanto no valor investido. Diversos estudos que abordam gênero têm mostrado como as mulheres sofreram mais com a pandemia: a jornada dupla de trabalho doméstico se transformou em uma jornada infinita. As mulheres empreendedoras passaram por uma exaustão que acabou afetando a capacidade de entrega no trabalho, já que os filhos estavam em casa, com aulas online, além de toda a estrutura da casa para lidar. Nessa situação, o mercado passou a ser mais conservador em relação a investimentos em startups lideradas por mulheres, e as próprias mulheres tiveram dificuldade para olhar para investimentos e sair para captar.”
Crédito: Giovanna Wolf e Bruno Capelas/O Estado de S. Paulo – @internet 31/12/2020