Alíquotas contributivas dos servidores dos RPPS locais após a reforma da Previdência

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Entre outras medidas, a Emenda Constitucional nº 103 (EC 103) de 2019 definiu as alíquotas de contribuição dos segurados do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) e do Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) da União. Não alterou a alíquota dos servidores vinculados aos RPPS de Estados, Distrito Federal e municípios (ou RPPS locais), mas exigiu que essa não fosse inferior à do RPPS da União, quando houver déficit atuarial [1], e à do RGPS, em qualquer circunstância. Se essa exigência não fosse já cumprida, o ente federativo seria obrigado a mudar a alíquota dos servidores por meio de legislação própria até 31 de dezembro, como regulamentado pela Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia (SEPT-ME) [2].

Este artigo analisa a necessidade de ajuste das contribuições dos segurados vinculados aos RPPS locais em consequência da EC 013, bem como as formas de realizá-lo.

A contribuição dos servidores dos RPPS locais
Não são de hoje as diferenças entre as contribuições dos RPPS e do RGPS. Desde o fim dos anos 1990, a base de incidência da alíquota dos segurados ativos do RPPS é a totalidade de sua remuneração, enquanto no RGPS é apenas a parcela inferior ao teto dos benefícios (R$ 6.101,06 em 2020) [3]. Ainda, a Emenda Constitucional nº 41/2003 introduziu a contribuição dos inativos dos RPPS, enquanto o artigo 195 da Carta Magna veda expressamente descontos contributivos incidentes sobre os benefícios de aposentados e pensionistas do RGPS.

A EC 103 aprofunda essas diferenças. Faculta a ampliação da base de incidência da contribuição dos inativos de um RPPS com déficit atuarial e, no caso do RPPS da União, permite também a cobrança de contribuições extraordinárias [4] junto aos servidores, ou seja, a transferência de ônus cada vez maiores do custeio da previdência para os segurados, desonerando o Estado. Ainda altera as contribuições ordinárias para o RPPS Federal e para o RGPS, estabelecendo “alíquotas progressivas”, ou seja, contribuições com valores crescentes à medida em que aumenta a base de cálculo ou a faixa de renda.

O RPPS dos servidores civis da União trabalha com oito faixas de valor. Em 2020, a 1ª faixa vai até R$ 1.045,00 e prevê a alíquota de 7,5%; a 2ª faixa vai de R$ 1.045,01 até R$ 2.089.60 e tem alíquota de 9%; a 3ª faixa, entre R$ 2.089.61 e R$ 3.134,40, adota a alíquota de 12%; para a 4ª faixa, entre R$ 3.134,41 e R$ 6.101,06, a alíquota é de 14%; a 5ª faixa, compreendida entre R$ 6.101,07 e R$ 10.448,00, prevê a alíquota de 14,5%; a 6ª faixa, entre R$ 10.448,01 e R$ 20.896,00, adota a alíquota de 16,5%; a 7ª faixa vai de R$ 20.896,01 até R$ 40.747,20 e prevê a alíquota de 19%; e para a 8ª faixa, acima de R$ 40.747,20 a alíquota é de 22%.

O RGPS utiliza as primeiras quatro faixas de valor e as alíquotas correspondentes do RPPS federal.

Uma vez adotadas as alíquotas progressivas, não é imediato saber quanto o segurado paga a título de contribuição. Faz-se necessário um cálculo individualizado, que apure as contribuições parciais relativas a cada faixa de valor. É o somatório dessas que fornece a contribuição total. Em seguida, é obtida a alíquota efetiva, que expressa percentualmente a contribuição total do segurado em relação à sua remuneração (ou à base contributiva, no caso do inativo). Exemplificando, a contribuição total de um servidor com remuneração de R$ 6 mil/mês será obtida somando a contribuição parcial de R$ 78,38 da 1ª faixa de valor, com as contribuições parciais de R$ 94,01, R$ 125,38 e R$ 401,18 das três faixas superiores, perfazendo o montante de R$ 698,95, que corresponde à alíquota efetiva de 11,65%.

As alíquotas progressivas visam ao tratamento equitativo de contribuintes de rendimentos desiguais, de acordo com o princípio da progressividade tributária, que prevê que os encargos tributários (as contribuições previdenciárias, no caso em tela) sejam “graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte”, como disposto no artigo 145 da Constituição Federal.

A EC 103 fixa as alíquotas contributivas dos segurados, mas nada dispõe acerca das alíquotas patronais, sinalizando possíveis reduções futuras do compromisso dos empregadores.

O objeto do artigo 9º da EC 103 é a contribuição ordinária dos RPPS locais, a saber:

Artigo 9º — Até que entre em vigor lei complementar que discipline o parágrafo 22 do artigo 40 da Constituição Federal, aplicam-se aos regimes próprios de previdência social o disposto na Lei nº 9.717, de 27/11/1998, e o disposto neste artigo.
(…)

§ 4º. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios não poderão estabelecer alíquota inferior à da contribuição dos servidores da União, exceto se demonstrado que o respectivo regime próprio de previdência social não possui déficit atuarial a ser equacionado, hipótese em que a alíquota não poderá ser inferior às alíquotas aplicáveis ao Regime Geral de Previdência Social (grifos do autor).

Uma vez apurado o resultado atuarial do RPPS local, coloca-se a questão técnica: “A alíquota contributiva dos servidores de um RPPS local é superior ou igual à dos servidores da União (ou do RGPS)?”. A EC 103 exige a adequação da alíquota contributiva dos servidores do RPPS local apenas se a resposta for negativa. Em 2020, alguns Estados e municípios não responderam corretamente a essa questão, pois não compararam o montante arrecadado por meio da alíquota uniforme vigente com o obtido simulando a aplicação das alíquotas progressivas para cada um dos segurados do RPPS local.

Por exemplo, no RPPS de Concordia (SC), a alteração da alíquota contributiva não era obrigatória, pois a arrecadação total junto aos servidores ativos com base nas mesmas alíquotas progressivas do RPPS da União teria sido equivalente a 9,04% da folha salarial do funcionalismo, percentual inferior aos 11% já praticados. Ainda assim, as alíquotas progressivas poderiam ter sido adotadas em decorrência da decisão política de distribuir diferentemente o ônus contributivo entre os servidores, aliviando os segurados de menores salários em relação aos demais.

Também é política a escolha de estabelecer em lei a proporção entre as contribuições ordinárias patronais e do conjunto dos servidores do RPPS, medida que dificulta futuras alterações das alíquotas que desonerem o ente federativo, em prejuízo dos servidores. Pela Lei Federal nº 9.717/1998 (Lei Geral dos RPPS), essa proporção não pode ser maior do que dois por um. E essa relação é a mais indicada por critérios isonômicos (é adotada no RPPS da União e no RGPS).

Em 2018, em geral, os RPPS tiveram déficit atuarial. Observe-se que a legislação dispõe o cálculo do resultado atuarial tanto para os RPPS operados em regime financeiro de capitalização [5], quanto para os que adotam o regime de repartição simples [6]. O déficit do RPPS da União foi de R$ 1,22 trilhão. Já os déficits atuariais agregados dos RPPS de todas as unidades da federação e de todos os municípios foram de R$ 3,8 trilhões e R$ 934 bilhões, respectivamente [7].

Quanto aos RPPS locais deficitários, a Portaria SEPT-ME nº 1.348/2019 fornece duas opções contributivas:

Artigo 2º — (…)
II – Para o RPPS com déficit atuarial:
a) caso não sejam adotadas alíquotas progressivas, a alíquota mínima uniforme dos segurados ativos, aposentados e pensionistas será de 14% (quatorze por cento), na forma prevista no caput do art. 11 da Emenda Constitucional nº 103, de 2019;
b) caso sejam adotadas alíquotas progressivas, será observado o seguinte:
1. deverão ser referendadas integralmente as alterações do art. 149 da Constituição Federal, nos termos do inciso II do art. 36 da Emenda Constitucional nº 103, de 2019;

2. as alíquotas de contribuição ordinária dos segurados ativos, aposentados e pensionistas e suas reduções e majorações corresponderão, no mínimo, àquelas previstas no §1º do art. 11 da Emenda Constitucional nº 103, de 2019″ (grifos do autor)

Cabem algumas observações acerca dessa disposição da portaria:

1) Não define procedimentos para comparar uma alíquota ordinária uniforme com as alíquotas progressivas do RPPS da União, o que teria evitado dúvidas e falhas por parte de vários RPPS locais.

2) Estabelece corretamente que as alíquotas progressivas dos servidores do RPPS da União constituem a opção mínima para o RPPS local deficitário, mas sem maiores indicações e explicações. Assim, para vários entes federativos não ficou clara a faculdade de estabelecer alíquotas inferiores às dos servidores federais em uma ou mais faixas de valor, bem como de adotar faixas diferentes das do RPPS da União.

3) Questionavelmente, indica como 2ª opção a alíquota uniforme mínima de 14% para o RPPS local deficitário. Repare-se que o artigo 11 da EC 103 menciona a alíquota única de 14%, mas não a aplica à remuneração do servidor sem antes reduzi-la ou majorá-la sistematicamente. Pautados por essa indicação, vários entes federativos locais adotaram a alíquota uniforme de 14%, descartando a adoção de alíquotas únicas menores permitidas pela EC 103.

Ainda, às vezes, é também o atuário responsável pelo RPPS que recomenda a alíquota única de 14%, apresentada equivocadamente como exigência taxativa da EC 103 (ignorando as alíquotas progressivas, inclusive). A título de exemplo, veja a afirmação do “Relatório de Avaliação Atuarial do Instituto de Previdência Social dos Servidores Públicos de Rio do Sul (SC)”, da empresa Lumens Atuarial (página 56):

“No que se refere aos RPPS em situação de déficit atuarial (…), há que se observar a imposição trazida pela nova regra constitucional de adequação ao novo patamar mínimo de contribuição dos segurados, estabelecido em 14,0%. (grifo do autor).

Não seguindo as orientações do Ministério da Economia, alguns RPPS locais adotaram soluções originais na adequação das contribuições dos servidores. Seguem dois exemplos.

O RPPS estadual do Piauí trabalha com cinco faixas de valor. Em 2020, a faixa até R$ 1.045 é isenta de contribuição; a 2ª faixa, de R$ 1.045,01 até R$ 1,2 mil, prevê a alíquota de 11%; a 3ª faixa, de R$ 1.200,01 até R$ 1,8 mil, adota a alíquota de 12%; a 4ª faixa, de R$ 1.800,01 até R$ 3 mil, utiliza a alíquota de 13%; a alíquota de 14% é para a faixa de valor acima de R$ 3 mil. A isenção contributiva sobre a 1ª faixa está em sintonia com a definição da Previdência Social como direito social (ver o artigo 6º da CF), ou seja, como direito incondicional de ordem socioeconômica que assegura condições básicas de proteção ao cidadão.

As alíquotas do RPPS do Piauí implicam contribuições menores em relação às duas alternativas da Portaria nº 1.348, beneficiando especialmente os servidores de menores vencimentos. Exemplificando, a contribuição do servidor ativo com remuneração de R$ 3 mil ficou em R$ 245,05/mês, que corresponde à alíquota efetiva de 8,17%. Se utilizadas as alíquotas progressivas do servidor do RPPS federal, a contribuição total teria sido de R$ 281,64, ou 9,39% da remuneração.

O RPPS estadual de São Paulo adotou quatro alíquotas, mas para cada servidor foi disposta uma única alíquota contributiva, tanto maior quanto mais elevada a remuneração. A alíquota foi de 11% para quem ganhar até R$ 1.045,00; de 12% para quem tiver remuneração entre R$ 1.045,01 e R$ 3.000,00; de 13% para o servidor com remuneração entre R$ 3.000,01 e R$ 6.101,06; e de 14% para quem ganhar acima de R$ 6.101,06. Esse arranjo, contudo, onera mais os segurados do que o do RPPS da União, salvo poucas exceções. A contribuição do servidor estadual ativo que ganhar R$ 3 mil/mês passou a ser de R$ 360/mês, acima dos R$ 281,64/mês obtidos aplicando as alíquotas dos servidores civis do RPPS da União.

Conclusão
Por meio da EC 103, as contribuições dos segurados do RGPS e do RPPS dos servidores civis da União passaram a constar na Constituição Federal, que nada dispõe sobre as alíquotas de contribuição patronal, facilitando a futura redução do compromisso dos empregadores no custeio da previdência. Para mitigar esse problema, recomenda-se que as constituições estaduais e as leis orgânicas dos municípios estabeleçam a relação entre as contribuições ordinárias patronais e dos servidores. A proporção de dois por um é mais indicada por ser isonômica, pois é adotada no RPPS da União e no RGPS.

Quanto à adequação das alíquotas de contribuição ordinária dos servidores dos RPPS locais, também em função das limitações da Portaria SEPT-ME nº 1.348, alguns Estados e municípios concluíram erroneamente pela adoção obrigatória da alíquota uniforme mínima de 14%, o que não é exigido pela EC 103. Outros adotaram soluções inovadoras. A originalidade técnica, contudo, não sempre implica vantagens para os segurados. Com efeito, em relação ao praticado no RPPS dos servidores civis da União, a solução encontrada pelo Estado do Piauí beneficia os servidores, enquanto a do Estado de São Paulo os prejudica por impor-lhes um ônus contributivo mais elevado.

Luciano Fazio é matemático pela Università degli Studi de Milão/Itália, especialista em previdência pela Fundação Getúlio Vargas, trabalha com consultoria e formação em previdência, e autor do livro “O que é previdência do servidor público”, Ed. Loyola, 2020.

[1] O Resultado Atuarial é apurado pela diferença entre os recursos já acumulados para o pagamento dos benefícios futuros e o passivo, constituído pela totalidade das obrigações futuras, diminuídas das contribuições futuras. Quando esse resultado for negativo, há déficit. Quando positivo, há superávit.

[2] O descumprimento da exigência impede que o Executivo Federal emita a Certidão de Regularidade Previdenciária (CRP), o que implica fortes penalizações do ente federativo.

[3] Hoje, somente os servidores ingressados após a instituição do Regime de Previdência Complementar dos servidores públicos vinculados ao RPPS têm a base contributiva limitada ao teto do RGPS.

[4] Em acréscimo à ordinária, a contribuição extraordinária visa à amortização do déficit atuarial. A EC 103 autoriza a instituição dessa cobrança, apenas no âmbito do RPPS da União, por meio de lei ordinária.

[5] O regime de capitalização é aquele em que as contribuições são determinadas de modo a gerar receitas, oriundas de sua aplicação financeira, que ajudarão a acumular, até a data de concessão, montantes equivalentes ao somatório dos valores atuais dos benefícios futuros devidos.

[6] No regime de repartição simples, em cada período (em geral mês ou ano), as contribuições pagas com base nas remunerações dos segurados em atividade têm por objetivo o pagamento dos benefícios já concedidos.

[7] Ver o levantamento do Tribunal de Contas da União “Panorama do Sistema de Previdência Social no Brasil” do disponível em https://portal.tcu.gov.br/panorama-do-sistema-de-previdencia-social-no-brasil.htm. Acesso em 08/12/2020.

Crédito: Luciano Fazio/Revista CONJUR – @internet 09/01/2021

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