A escassez e a dificuldade de acesso a vacinas contra a covid-19 levantaram uma grande discussão entre os países: seria possível quebrar patentes dos imunizantes para baixar o preço das doses e garantir que bilhões de pessoas sejam vacinadas nos próximos meses?
Em outubro do ano passado, Índia e África do Sul levaram uma proposta de suspensão das patentes de produtos de combate ao coronavírus à Organização Mundial do Comércio (OMC), órgão que regula a propriedade intelectual e industrial ao redor do planeta.
A ideia seria facilitar a produção de vacinas por países pobres e garantir que bilhões de pessoas tenham acesso ao imunizante no mesmo ritmo das populações mais ricas. Hoje, as principais vacinas contra a covid-19 pertencem a laboratórios americanos, europeus e chineses, embora algumas delas tenham sido em parte financiadas pelo poder público e por filantropos — e esse é um dos argumentos a favor da “quebra das patentes”.
Por outro lado, não está claro qual será o tamanho do lucro que as grandes farmacêuticas terão com as vacinas — esse cálculo depende do preço das doses e de quantas vezes a população precisará ser vacinada no futuro. Normalmente, as empresas cobram valores diferentes a depender do país, com base no que os governos podem pagar. Mas também existe o temor de que um preço alto demais possa gerar acusações de que as companhias estão se aproveitando da crise humanitária causada pela pandemia.
Mas qual seria a possibilidade de “quebrar” patentes das vacinas? Existem meios legais para isso? O Brasil poderia fazer algo nesse sentido? A BBC News Brasil ouviu especialistas em patentes e pesquisadores do tema para responder a essas questões.
Em resumo, os entrevistados deixam claro: dificilmente um movimento nessa direção resolveria a escassez de vacinas em território brasileiro.
O que é ‘quebra de patente’?
“Quebrar uma patente” de maneira unilateral, sem negociação, violaria tratados internacionais sobre propriedade intelectual, e o ato possivelmente seria punido.
As atuais regras de propriedade intelectual foram formuladas na OMC em 1994: são os chamados Trips, na sigla em inglês. O acordo foi defendido pelos Estados Unidos e outros países ricos, e uniformizou uma série de normas sobre patentes que todos os membros da OMC devem seguir para participar do órgão. Uma delas estipula um limite mínimo de 20 anos para uma patente de medicamento vencer, por exemplo.
Dois anos depois, em 1996, o Brasil aprovou a Lei 9.279, que regula a propriedade intelectual no país, já sob a influência dos Trips. Outros países, como China e Índia, demoraram mais tempo para se adaptar às novas regras — especialistas acreditam que esse período de espera foi fundamental para que indianos e chineses conseguissem se transformar nos maiores produtores de insumos médicos do mundo.
“Os Trips foram uma imposição dos países ricos para proteger suas patentes e manter o capital de maneira hegemônica. O Brasil acatou as novas normas rapidamente, ao contrário de outros países, que preferiram esperar e investir na produção local”, explica Roberta Dorneles, professora do departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisadora de patentes da indústria farmacêutica.
Licença compulsória
Por outro lado, a pressão de países emergentes fez com que uma alternativa às normas do Trips pudesse ser acionada em momentos de emergência ou de interesse público: a licença compulsória. Esse mecanismo já foi utilizado diversas vezes para combater práticas anticompetitivas na área de tecnologia, inclusive no setor de medicamentos.
Em um caso hipotético, um país como Brasil pode alegar que a pandemia de covid-19 se trata de uma emergência sanitária e que há grande interesse público de que as vacinas fiquem mais baratas para serem aplicadas em toda a população de maneira mais rápida.
“O presidente pode decretar emergência nacional e comunicar aos laboratórios internacionais de que o Brasil vai licenciar compulsoriamente a fórmula da vacina. Laboratórios brasileiros então poderiam fabricar a vacina, diminuindo o preço de produção, mas pagando royalties aos donos da patente”, explica Maristela Basso, professora de Direito Internacional da Propriedade Intelectual da Universidade de São Paulo (USP).
“A licença compulsória é prevista e reconhecida pela OMC. O acordo internacional permite esse mecanismo, e ele já foi utilizado outras vezes, inclusive pelo Brasil”, diz Roberta Dorneles, da UFRGS.
Em 2007, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o Brasil declarou que a patente do efavirenz, um remédio utilizado no tratamento contra a Aids, era de interesse público e que iria licenciá-la compulsoriamente. O medicamento pertencia ao laboratório americano Merck Sharp & Dohme.
Na época, o governo alegava que o valor cobrado pelo laboratório era maior do que o praticado em outros países, aumentando exponencialmente os gastos do Sistema Único de Saúde (SUS).
“Houve uma grande pressão sobre o Brasil, pois empresas ameaçaram deixar o país se o governo licenciasse o remédio. Mas nenhuma cumpriu a promessa”, explica Reinaldo Guimarães, professor do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (URFJ) e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). “Essa patente foi interessante, porque, além do Brasil licenciá-la compulsoriamente, ele importou a tecnologia para produzir o medicamento no país.”
O caso do efavirenz foi a única “quebra de patente” no Brasil na área de medicamentos, mas não foi a primeira vez que o país utilizou a licença compulsória para baixar os preços. Em 2001, 2003 e 2005, o país ameaçou usar o dispositivo contra empresas farmacêuticas, também por causa de remédios de combate à Aids, e conseguiu a diminuição dos valores.
“A história mostra que a indústria decidiu negociar os preços e o acesso ao medicamento quando foi pressionada pela declaração de emergência e interesse público”, diz Maristela Basso, da USP, que era consultora do Ministério da Saúde na área de patentes quando o Brasil licenciou o efavirenz compulsoriamente.
‘Quebrar patente não resolve o problema’ na pandemia
Quando o projeto de flexibilização das patentes foi discutido na OMC, o governo Jair Bolsonaro (sem partido) não se posicionou. Ou seja, por ora não existe informação de que o Brasil planeja acionar o dispositivo de licença compulsória para vacinas de covid-19.
Por outro lado, especialistas acreditam que licenciar as vacinas não resolveria o problema de produção do imunizante no Brasil nem em outros países em desenvolvimento, pelo menos não no curto prazo. Isso ocorreria por defasagem tecnológica e de insumos, muitos deles importados da China e da Índia.
“Não creio que o licenciamento vá ficar no centro do debate das vacinas. Essa é uma ferramenta importante, mas não acho que exista viabilidade política nem tecnológica para fazer isso. O Brasil não teria capacidade técnica para produzir algumas dessas vacinas, principalmente aquelas com RNA mensageiro, como são as versões da Pfizer e da Moderna”, diz Reinaldo Guimarães, da Abrasco.
A maior parte das vacinas é feita com um vírus atenuado ou inativado, que faz com que nosso sistema imunológico produza anticorpos. A CoronaVac, a primeira a ser utilizada no Brasil, funciona com o vírus inativado.
Já as vacinas gênicas, como as desenvolvidas pela Pfizer/BioNTech e pela Moderna, usam a tecnologia do RNA mensageiro. Em vez de conter o vírus ou uma parte dele, elas trazem uma informação genética que “ensina” as células do nosso próprio corpo a produzirem anticorpos contra o agente infeccioso.
Gustavo Morais, professor da pós-graduação em patentes da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP), concorda com a análise de que o Brasil não teria capacidade industrial para produzir esse tipo mais moderno de vacinas.
“Acho que a licença compulsória não será usada. Se o uso da tecnologia fosse factível para a maioria dos países, esse artigo já teria sido utilizado, pois praticamente todos os países têm esse mecanismo. Mas por que não usam? Onde estão essas licenças? A Índia, por exemplo, tem essa prerrogativa e não usou ainda. Há muitos interesses econômicos, políticos e ideológicos nessa discussão de patentes”, diz.
Já Roberta Dorneles acredita que, para uma possível quebra de patentes, seria necessário uma mudança de postura do governo Bolsonaro no enfrentamento à pandemia que já matou mais de 221 mil brasileiros até esta quinta-feira (28/01). “Essa é uma decisão política que requer um projeto de nação. Mas temos visto cada vez menos recursos para a ciência e para os laboratórios públicos brasileiros. Se eles fossem mais valorizados, tenho certeza que teríamos capacidade de produzir tecnologia e insumos”, diz.
Crédito: Leandro Machado da BBC News Brasil -@internet 30/01/2021