Esqueça o smartphone: nova década abre possibilidade para outros tipos de conexões e formatos de aparelhos

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Na última década, o smartphone foi a mola propulsora para muitos dos avanços do período. Com ele, vimos as conexões móveis, como o 4G, ganharem força e também a popularização de redes sociais e de aplicativos. Tudo isso possibilitou o surgimento de novos formatos de negócio – sem o smartphone, nomes como Uber e iFood jamais teriam o impacto dos dias atuais.

Nos anos 20, que acabam de dar os primeiros passos, talvez seja a hora de o smartphone ter um descanso. Não que ele vá perder importância. Mas na nova década, ele dividirá o protagonismo com outros tipos de dispositivos, que vão possibilitar também novos formatos de conexão – a conversa entre humanos mediada pelas máquinas dividirá espaço com interações entre humanos e máquinas. Em alguns casos, a conversa será apenas entre as máquinas.

Fazer um exercício de futurologia sobre tecnologia para um período tão longo não é tarefa fácil – tudo pode mudar em pouquíssimo tempo. Para tentar deixar a bola de cristal mais afiada possível, conversamos com especialistas de diferentes áreas: acadêmicos, pesquisadores, consultores e membros de empresas. Todos têm a missão de pensar o futuro.

Com base no que acontece nos dias atuais, eles tentaram imaginar para onde vai a tecnologia, olhando para três características: 1) aquilo que deve se popularizar – ou seja, ganhar muitos adeptos; 2) aquilo que já existe, mas que deve melhorar muito; 3) aquilo que hoje está apenas no laboratório, mas que deve ter algum impacto na vida real. A conversa também discute os rumos de formatos ainda muito populares, como as redes sociais.

A conclusão é a de que o smartphone vai ganhar um respiro. Assistentes digitais se infiltrarão em novos dispositivos, tornando casas mais inteligentes. Redes sociais serão experimentadas em realidade virtual. Implantes tecnológicos darão os primeiros passos para substituir relógios inteligentes. O motor de tudo isso: o 5G e a inteligência artificial. Com tantas possibilidades, as preocupações sobre proteção digital devem se intensificar, permitindo a evolução de tecnologias atuais e, quem sabe, alimentando uma cultura de segurança digital – os traumas da última década sobre o que foi feito com as nossas informações ainda são grandes.

Se tudo der certo, o auge tecnológico acontecerá no fim da década. O 6G estará perto de sair do campo de testes, ampliando todas as possibilidades vividas com o 5G. Além disso, as primeiras máquinas quânticas deixarão de ser experimentos complexos para começarem  a resolver grandes problemas da humanidade.

Apertem os cintos. E bom futuro!


ASSISTENTES DIGITAIS

Onipresença nos ambientes

Representadas atualmente por Alexa, da Amazon, Siri, da Apple, e Google Assistente, a ideia de assistentes digitais caminha para crescimento na próxima década ao incorporar mais funcionalidades.

Por enquanto, elas ainda são focadas em uma parcela da população que conhece gadgets e que tem condições financeiras de manter esses dispositivos. Esse é um dos pontos que pode mudar nos próximos anos: Eduardo Pellanda, professor da PUC-RS, acredita que, com mais foco em melhorar aspectos importantes para o brasileiro — como a economia de tempo e dinheiro —, a assistente possa conquistar de vez seu lugar.

Segundo Pellanda, o passo principal das assistentes de voz já foi dado, que é a integração com outros serviços do lar e, daqui para frente, é necessário entender o que mais elas podem fazer.

O que se espera para o futuro é que a assistente possa se integrar com a casa e sugerir ações” – Renato Franzin, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP)

“Um dos passos é dar um pouco de sentido. As caixinhas conectadas começam a ser o grande maestro da casa, um lugar para centralizar todas as coisas. Isso passa para além de ser uma coisa de exibição. O usuário começa a perceber que existem outras funções interessantes, como o controle de energia gasta ou o monitoramento de saúde, e acaba percebendo que pode ser útil”, diz.

O grande salto para a próxima década das assistentes será ir além das tarefas programadas, prevendo o comportamento do usuário de forma mais acurada. Renato Franzin, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), acredita que o objetivo é sugerir ações baseadas no que o dono do dispositivo já faz, “aprendendo” a adicionar tarefas. Para isso, a inteligência artificial será a principal adição nesses aparelhos.

“O que se espera para o futuro é que a assistente possa se integrar com a casa e sugerir ações. Uma possibilidade é a assistente coletar dados de diversos dispositivos e com essas informações agregar inteligência para a casa funcionar de forma automática. Aí é que está a convergência. Vejo que a assistente vai estar por trás da casa conectada”, diz.

Um setor que também deve observar crescimento nas funções da assistente de voz deve ser o automotivo – ainda que esse movimento seja mais discreto. Para os automóveis, o desenvolvimento precisa passar por avaliações de segurança mais rigorosas que a assistente doméstica para funções além de dar play na música durante a viagem, já que as respostas entre o comando e ação precisam acontecer em milissegundos — o que não ocorre atualmente.

Nos carros, nos smartphones ou nas casas, Daniel Almeida, diretor de desenvolvimento da Amazon, acredita que o que vai guiar o caminho das assistentes virtuais é a onipresença nos ambientes na próxima década. “Enxergamos que, no futuro, todos os cômodos da casa poderão conversar de alguma forma com a assistente de voz. Hoje, elas estão no quarto, na sala e na cozinha, mas por que não ter um dispositivo no banheiro, para te dar as notícias enquanto você escova os dentes?” / BRUNA ARIMATHEA


CASA CONECTADA

Conversas entre máquinas

Acionar lâmpadas por voz e máquinas de lavar pelo smartphone não é um cenário de filme há algum tempo. Para os especialistas, o momento é de evolução. Ou seja, é possível que na próxima década tenhamos os mesmos aparelhos de hoje, mas muito mais avançados em termos de tecnologia — principalmente na hora de conversar entre si.

Amazon, Apple e Google anunciaram no final de 2019 que estavam trabalhando no desenvolvimento de uma tecnologia padrão de código aberto, em uma parceria para padronizar dispositivos que respondem ao comando de voz. Assim, os produtos terão compatibilidade com todas as assistentes que existem no mercado, aumentando o leque de opções — e preços — na hora de escolher os aparelhos inteligentes.

“Antes, os dispositivos não se falavam muito entre si, a minha esperança é que essa aliança tenha um protocolo comum de equipamentos nas casas das pessoas. A partir disso, as coisas vão começar a despontar”, afirma Eduardo Pellanda, professor da PUC-RS.

Para os robôs domésticos — como os aspiradores de pó que fazem sucesso —, os próximos anos reservam melhorias e adições nas funções, principalmente com a inteligência artificial. Ainda não é hora de uma Rose, dos Jetsons. Isso porque, por enquanto, ainda é muito difícil produzir modelos que executem tarefas domésticas muito sofisticadas. A complexidade de um robô que arruma a cama, por exemplo, é muito maior do que a mecânica do “robozinho” que limpa o chão atualmente.

A Samsung, por exemplo, integrou neste ano uma câmera ao seu aspirador de pó robótico, que pode monitorar as atividades de animais de estimação e identificar quando ele suja alguma parte da sua casa. Os sensores com computação espacial também podem saber quais são os materiais presentes no chão e reduzir o impacto em objetos mais frágeis. Renato Giacomini, coordenador do curso de Engenharia Elétrica da FEI, afirma que o futuro é por aí.

Os dispositivos não se falavam muito entre si, mas a minha esperança é um protocolo comum de equipamentos nas casas das pessoas. A partir disso, as coisas vão começar a despontar” Eduardo Pellanda, professor da PUC-RS

“A maior parte das atividades domésticas são complexas. É mais fácil encaixar esses robôs em atividades industriais, que são mais programáveis. O que a gente vai ver é que todo equipamento doméstico vai ter um pouco de inteligência artificial. Vamos precisar apertar menos botões e conversar um pouco mais”.

O desafio para esse setor é convencer o público, inclusive no Brasil, de que esses dispositivos são mais do que “brinquedos” tecnológicos. Para Alessandro Germano, chefe de desenvolvimento do Google na América Latina, as marcas terão de trabalhar na apresentação desse novo produto como um gadget útil e que ofereça um custo benefício que justifique a sua compra.

“Para ter um dispositivo que proteja a sua família, como uma câmera ou um sensor de porta, as pessoas vão estar dispostas a gastar dinheiro e configurar aparelhos que vão ajudá-las a se sentirem mais seguras. Acho que quem conseguir atuar nos gadgets que, mesmo sem tecnologia nova, conseguirem resolver problemas atuais, tem uma chance grande de sucesso”.

No curto prazo, a pedra no sapato de tudo isso será conexão. Isso porque o 5G e o Wi-Fi 6 são as redes específicas capazes de suportar diversos dispositivos de uma só vez com qualidade, mas ainda não estão presentes por aqui.

“Essas redes não são apenas um incremento para tornar as coisas velozes, elas proporcionam conexões e configurações que hoje não existem. Eles vão permitir e suportar uma capacidade de dispositivos muito maior, além de uma subrede, no caso do 5G, só para esses aparelhos”, explica Renato Franzin, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). / BRUNA ARIMATHEA


PROTEÇÃO DE DADOS

Regulação e soberania

Nos anos 10, ficou óbvia a ideia de que coletar grandes volumes de dados é poderosa ferramenta para turbinar algoritmos e gerar imensas fontes de receita. Nos anos 20, a promessa é de que exista maior controle sobre isso. Assim, um dos maiores avanços na proteção de dados pode não ser tecnológica, mas sim regulatória. O impacto de legislações de proteção de dados pessoais, como a GDPR, na União Europeia em 2018, e a LGPD, no Brasil em 2020, será sentido — inclusive em termos culturais.

“As pessoas vão notar que elas não querem ser um produto”, diz Dmitry Bestuzhev, diretor de pesquisa e análise global da empresa de segurança online Kaspersky na América Latina. Bestuzhev acredita que surgirão alternativas pagas de aplicativos e programas — a ideia de serviços digitais que são gratuitos em troca dos dados deverá ser questionada. Talvez, tenha chegado a hora de perceber que não existe almoço grátis.

Mas o grande empecilho para a tendência ganhar força também pode estar nos próprios usuários. “Assim como há pessoas que sabem que não devem comer fast-food e mesmo assim o fazem, haverá aqueles que não se importarão com o destino dos seus dados”, afirma.

As pessoas vão notar que elas não querem ser um produto” Dmitry Bestuzhev, diretor de pesquisa e análise global da Kaspersky na América Latina

Outro empurrão dado pelas leis de proteção de dados é que as empresas terão que se mobilizar para evitar ataques e vazamentos — ninguém quer ser punido.

“As empresas sabem que precisam investir nisso também porque os riscos tecnológicos são imensos”, diz Yanis Stoyannis, gerente de inovação de cibersegurança da Embratel.  Ele explica que há diversos mercados de dados na dark web onde são vendidas informações de grandes empresas que foram hackeadas. Por causa disso, práticas como extorsão tendem a se popularizar mais a partir dessas brechas de segurança.

As medidas de contra-ataque e de cibersegurança ficarão mais eficientes graças à inteligência artificial (IA), treinada para identificar em dias ataques que levariam meses para serem notados com o trabalho humano. Um grande beneficiado disso será o SIEM (sigla em inglês para Gerenciamento e Correlação de Eventos de Segurança), que, hoje, precisa de um analista para monitorar redes inteiras. Com a IA, o trabalho é automatizado e transforma-se em preditivo, com o algoritmo sabendo priorizar os diferentes níveis de ameaças aos sistemas. Dentro de alguns anos, a tendência é que a IA, sem precisar ser treinada, identifique sozinha desvios no comportamento dos usuários, alertando o analista, que deverá checar se aquele incidente é danoso ou não.

Outra novidade são os EDR, tecnologia que permite detectar ameaças e dar uma resposta rapidamente, como isolar uma máquina para que o resto do sistema não se contamine com um vírus, por exemplo. “A tendência é ter uma camada completa de proteção”, diz Stoyannis. “Prevenir e monitorar, o que as antigas tecnologias fazem, e também detectar e responder de forma efetiva, graças ao EDR.”

Governos não ficarão de fora e vão apostar na “soberania digital”, diz Carlos Affonso de Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-Rio). Para ele, foi um evento preparatório para os próximos anos o caso do TikTok, sob risco de ser banido nos Estados Unidos por um suposto uso dos dados pelo governo da China.

“A soberania nacional começa com a proteção de dados”, afirma Souza. “É o país dizendo: ‘não quero que os dados do meu cidadão fiquem na Califórnia ou na China porque esses dados geram inteligência fora do meu país’. Se os dados forem tratados pelas empresas, que eles sejam tratados no Brasil, por exemplo, e que se crie uma indústria ou laboratório aqui para que sejam hospedados no respectivo país.” / GUILHERME GUERRA 


REDES SOCIAIS

Passatempo vai virar superapp

Após passar por Orkut, Facebook, Instagram, Snapchat, Twitter e WhatsApp, os anos 2010 terminam com a ascensão do aplicativo chinês TikTok. É um indício de que a próxima década deve nos reservar: a expansão de conteúdos em novos formatos de mídia.

Um caminho para o futuro das redes sociais é o uso de tecnologias de realidade virtual e aumentada, levando a interação e participação dos usuários a outro patamar. “Com realidade virtual, a rede social vai se tornar menos um ambiente no qual você assiste e lê conteúdos de terceiros e passará a inserir pessoas dentro de contextos: não vamos apenas visualizar conteúdos, estaremos dentro deles”, explica Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS-Rio).

A ideia é promissora para esta nova década e é uma das apostas do próprio Facebook para a evolução das plataformas digitais. Mas há entraves para a tecnologia de fato se tornar dominante: além de gargalos de processamento e conexão, um dos desafios para a massificação da realidade virtual e aumentada é ainda a predominância do celular como porta de entrada para a internet – segundo especialistas, a tela do smartphone é uma arquitetura que restringe as aplicações. Junto a isso, a implementação de novos dispositivos, como óculos inteligentes, exigiriam a aceitação de um novo objeto – além, é claro, da popularização do produto.

Na medida em que as redes sociais passem a oferecer serviços financeiros, a tendência é consolidar todas as relações nesse ambiente” . Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS-Rio)

Os anos 20 também vão refletir as experiências com exposição e privacidade que vivemos na última década. Para Alexandre Inagaki, consultor em redes sociais, uma das tendências é que as redes sociais tenham canais cada vez mais privativos, na esteira de recursos como a lista de melhores amigos dos Stories do Instagram. “Isso deve ganhar força até por conta da cultura do cancelamento e pela saturação de ser bombardeado. As grandes plataformas devem passar a facilitar a criação de grupos mais restritos e espaços de comunidade”, afirma.

Após se consolidarem como canais de comunicação, reunindo em um só lugar familiares, amigos e até trabalho, o próximo passo é que as redes sociais deixem de ser apenas passatempo e passem a ser “superapps”, plataformas com uma ampla oferta de serviços. Popular na China, o modelo de superapp deve ter uma virada de chave no Ocidente a partir da inserção de ferramentas financeiras. “A vida financeira não estava nas redes sociais nessa última década. Na medida em que as plataformas passem a oferecer esses serviços, a tendência é consolidar todas as relações naquele ambiente”, diz Souza. Quem se incomoda com redes sociais não terá muito como fugir delas. Prepare-se. / GIOVANNA WOLF 


IMPLANTES TECNOLÓGICOS

Aparelhos vestíveis 2.0

Os vestíveis, como relógios e pulseiras inteligentes, vêm conquistando os pulsos dos consumidores nos últimos anos – e isso se tornou um baita incentivo para que esses aparelhos ganhem mais sensores e outros recursos relacionados ao nosso bem-estar.

A evolução quase natural desses dispositivos, que já ficam acoplados ao corpo, são implantes tecnológicos – sim, similares aos chips de GPS que alguns donos de pets inserem sob a pele dos seus animais.

“Perdemos tempo pensando em qual vestível é o mais adequado para se usar”, diz Carlos Affonso de Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-Rio). Para ele, esses aparelhos tendem a ser inconvenientes e não são tão confortáveis como o celular, que ainda é o aparelho mais utilizado. “Talvez o melhor vestível seja a própria pele.”

Elon Musk, fundador da empresa americana de carros elétricos Tesla, já deu o passo inicial com a empresa Neuralink, cujo objetivo é implantar um chip no cérebro humano para melhorar a memória e ter contato direto com interfaces computadorizadas – incluindo a possibilidade de tocar playlists do Spotify diretamente no cérebro. Startups americanas também pesquisam como um chip cerebral pode reduzir doenças degenerativas e tornar o sistema nervoso humano mais rápido.

Perdemos tempo pensando em qual vestível é o mais adequado para se usar. Talvez, o melhor vestível seja a própria pele” Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS-Rio)

Os principais usos dos implantes tecnológicos devem acontecer na área de saúde e esportes, justamente onde os vestíveis são mais úteis atualmente. O sócio de tecnologia, mídia e telecomunicações da KPMG no Brasil, Márcio Kanamaru, dá algumas utilizações possíveis: reposição da capacidade auditiva ou melhora da visão com lentes de contato inteligentes. Além disso, ele imagina implantes que possam ser ingeridos e, em um exame, consigam mapear o aparelho gástrico do indivíduo, de modo a detectar doenças ou avaliar o estado de saúde.

O maior problema dos vestíveis, no entanto, esbarra em fazer com que as pessoas topem um procedimento tão invasivo. “Essa aceitação deve ser superada por meio de processo educacional sobre casos de usos. O controle da saúde é um benefício que traz entendimento da população”, diz Kanamaru.

É possível que a ideia de seres que são parte humanos e parte máquinas não se concretize totalmente nesta década – a geração Robocop, talvez, dê apenas os primeiros passos. Para Souza, implantes tecnológicos podem sair de nicho, mas não será rápido como aconteceu com outras tecnologias. “Isso não se consolida de uma hora para a outra”, diz. “Provavelmente, usar implantes inicialmente vai ser coisa de gente muito alternativa, algo muito transumanista para o gosto popular.” / GUILHERME GUERRA 


INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

Máquinas expandem a mente

Chegamos em 2021 com a tecnologia de inteligência artificial (IA) muito mais palpável do que era há dez anos. Além da presença em algoritmos nas redes sociais, a IA se instalou até na rotina dentro de nossas casas – seja por meio de assistentes de voz como a Alexa, da Amazon, ou de robôs aspiradores, capazes de mapear os cômodos e ajudar na limpeza de forma automatizada. Nos anos 20, é possível que ainda não seja a hora da singularidade, ou seja, a ideia de que um dia sistemas de IA ‘despertarão’ e terão consciência, mas a tecnologia aprofundará ainda mais a sua atuação. O impacto será sentido em quase todos os setores – de saúde e educação a varejo e finanças.

Para especialistas, o avanço forte da IA será uma consequência da digitalização, um processo que vem se desenrolando já há alguns anos. “Quanto mais um setor se tornar digital, mais veremos a inteligência artificial de uma forma rotineira ”, explica Anderson Soares, coordenador do Centro de Excelência em Inteligência Artificial (CEIA) do Estado de Goiás.

Nesse sentido, a IA também deve marcar presença em diversos avanços da próxima década. “O aprendizado de máquina estará por trás de todos os desenvolvimentos tecnológicos e descobertas científicas. Recentemente, por exemplo, a ferramenta foi a base para a solução do problema do enovelamento das proteínas, que pode acelerar a descoberta de medicamentos”, afirma Alexandre Chiavegatto Filho, professor da USP.

Quanto mais um setor se tornar digital, mais veremos a inteligência artificial de uma forma rotineira”. Anderson Soares, coordenador do Centro de Excelência em Inteligência Artificial (CEIA) do Estado de Goiás

Há dois caminhos para a sofisticação da IA. Um deles é ampliar o olhar dos algoritmos, que atualmente são especializados em trabalhos focados. Fernando Osório, professor da USP São Carlos, explica: “Hoje na agricultura, por exemplo, a inteligência artificial é capaz de avaliar se determinada planta está doente. O desafio é olhar o quadro como um todo, relacionando diferentes informações como dados climáticos, quantidade de irrigação e tipo de terreno. Esse é o grande salto que esperamos dar”. A IA segue para deixar de ser “estreita” para se tornar “ampla”.

Especialistas esperam também que a tecnologia se torne menos dependente de dados nos próximos anos, um modelo muito comum nos tempos atuais. Isso seria desenvolver os sistemas ao ponto que a IA seja capaz de aprender por tentativa e erro, levando em conta situações dos ambientes. Desta forma, a tecnologia conseguiria responder com mais assertividade a eventos inesperados: se você não gosta de comida japonesa, por exemplo, mas abriu um novo restaurante do tipo que está fazendo muito sucesso, a IA poderia identificar que essa nova situação muda a realidade que os dados descrevem – assim, o sistema sugeriria que você experimentasse ir ao novo restaurante, já que ele está sendo muito procurado, mesmo você não gostando da comida.

Algumas limitações, porém, devem dificultar esses avanços. Para Soares, o poder computacional continua sendo um entrave para o desenvolvimento da IA. “Se o hardware evoluir, certamente muita coisa vai evoluir”, afirma. Dentro disso, a computação quântica é uma alternativa para mitigar esse problema.

Além disso, há barreiras culturais no tema, principalmente o medo de substituição de empregos – o mesmo aconteceu quando os computadores surgiram. “Se essa mentalidade não for tratada, é um entrave seríssimo”, diz Osório, da USP São Carlos. / GIOVANNA WOLF  


CONECTIVIDADE

A hora do 5G e dos satélites

Cada geração de redes móveis tem seu ciclo de desenvolvimento ao longo de 10 anos – 2G nos anos 90, 3G nos anos 2000 e 4G nos anos 2010. Não é preciso ser um mago das previsões para imaginar que o 5G chegará consolidado ao final desta década – hoje, mesmo em pequena escala, muitos países já contam com redes comerciais em operação.

Embora prometa velocidades de até 10 Gbps, o grande impacto da tecnologia não deve ser sentido por quem aprendeu a se conectar à rede pelo smartphone. “O smartphone e suas aplicações foram criados para redes 4G. Ele não vai melhorar de repente com as novas redes”, diz Bill Ray, analista da Gartner.

“O 5G pode ser a ponta da lança para outros tipos de dispositivos: equipamentos de inteligência pessoal, interfaces de realidade aumentada, holografia e outros aparelhos que eliminam o celular”, diz Marcio Kanamaru, sócio-líder de Tecnologia, Mídia e Telecomunicações da KPMG no Brasil. Esse novo mundo só será possível porque não apenas o 5G promete mais velocidade, mas também baixa latência. Ou seja, os equipamentos poderão reagir com mais velocidade aos comandos que navegam pela rede.

Isso permite que sensores e pequenos dispositivos não mudem apenas a forma de conexão de humanos. Todo o resto do mundo, de objetos a animais, poderão ser conectados a redes de alta velocidade. Isso muda tudo – o smartphone acaba se tornando mais um elemento de um ecossistema que terá sensores, módulos inteligentes, câmeras e robôs.

O projeto de 5G se justifica em aplicações grandes, em áreas agrícola, industrial, logística, médica e ambiental” Raul Colcher, membro do Instituto dos Engenheiros Eletricistas e Eletrônicos (IEEE) e presidente da Questera Consulting

“O projeto de 5G se justifica em aplicações grandes, em áreas agrícola, industrial, logística, médica e ambiental”, diz Raul Colcher, membro do Instituto dos Engenheiros Eletricistas e Eletrônicos (IEEE) e presidente da Questera Consulting. Máquinas e sensores se conectarão e conversarão entre si, permitindo o monitoramento e comandos à distância. Não é possível saber em que estágio isso estará até 2030, mas a tecnologia permitirá, por exemplo, cirurgias à distância e veículos autônomos.

A mudança deverá começar nos grandes centros urbanos globais, mas o grande potencial da tecnologia também se desenrola fora das cidades. “O princípio básico do 5G é que seja a qualquer hora e em qualquer lugar. Para tornar isso realidade integralmente, é indispensável a conexão via satélite”, diz Linconl Oliveira, diretor da unidade de satélites da Embratel.

A grande aposta para levar o 5G a qualquer parte do globo será por meio de constelações de pequenos satélites, que operam em órbita baixa (entre 500 km e 2.000 km da Terra). Empresas como a SpaceX, de Elon Musk, e a Amazon estão investindo alto em iniciativas do tipo. No projeto de Musk, 42 mil pequenos satélites criarão uma rede capaz de cobrir todo o globo, incluindo regiões remotas e rurais – o que aumenta o potencial de inclusão e expansão de negócios. Atualmente, a rede do bilionário já está em testes no Reino Unido.

Se tudo der certo, ao final da década testemunharemos os primeiros passos do 6G. As primeiras discussões técnicas já estão acontecendo. Segundo Ray, a próxima geração vai focar no uso mais dinâmico de frequências, mas é cedo para imaginar o que vem depois.

Os obstáculos para a concretização da nova era de conectividade são mais difusos e nada tecnológicos.

Para Colcher, discussões geopolíticas sobre infraestruturas, como já ocorre entre EUA e China, podem ser um problema. Para Ray, fake news envolvendo redes 5G e 6G podem aumentar a rejeição das pessoas. Já no Brasil, os problemas são mais imediatos. “Falta decisão ao Brasil para realizar os leilões de frequência. Estamos perdendo esse trem. Depois dos leilões, será necessário muito investimento”, afirma Francisco Soares, vice-presidente de relações governamentais da Qualcomm na América Latina./ BRUNO ROMANI 


COMPUTAÇÃO QUÂNTICA

Ferramenta poderosa

Os anos 20 podem ser o período em que o computador quântico finalmente deixará de ser um experimento complexo para se tornar a mais poderosa ferramenta computacional nas mãos da humanidade – a promessa é de um caminho longo, com resultados mais relevantes no final da década.

Os desafios são puramente de ordem técnica, já que o investimento na área é massivo – inclui nomes como Amazon, Google, IBM e Microsoft. Para que possam atingir um estágio capaz de resolver problemas da vida real, máquinas quânticas precisam ter um alto número de qubits, nome dado à menor unidade computacional dos aparelhos. “Para obtermos uma máquina funcional, é preciso que ela tenha entre 100 mil e 1 milhão de qubits”, estima Fernando Brandão, professor do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech).

Ainda estamos longe: a IBM prevê entregar um equipamento de 1.000 qubits em 2023. As máquinas atuais têm capacidade bem menor – a mais conhecida do Google tem 53 qubits. Porém, em computador quântico não é só a quantidade de qubits que importa, mas sim sua qualidade, já que apresentam alta instabilidade. Para que fiquem estáveis, o sistema deve funcionar em temperatura de -272,99ºC (ou 0,01 miliKelvin), muito perto do zero absoluto.

Não teremos máquinas quânticas para uso pessoal. Eles funcionarão em plataformas na nuvem e solucionarão problemas coletivos” Bárbara Amaral, pesquisadora de informação quântica do Instituto de Física da Universidade de São Paulo

A IBM diz que está construindo um super refrigerador, capaz de manter estáveis até 1 milhão de qubits. Já um time de pesquisadores de universidades americanas, juntamente com a Intel, estão conduzindo experimentos para máquinas que operam em temperatura ambiente. Seja como for, não espere por uma arquitetura quântica para fazer dancinhas no TikTok.

“Não teremos máquinas quânticas para uso pessoal. Eles funcionarão em plataformas na nuvem e solucionarão problemas coletivos”, explica Bárbara Amaral, pesquisadora de informação quântica do Instituto de Física da Universidade de São Paulo.

Diferentes áreas deverão sentir o impacto de forma assimétrica – cada uma a seu tempo. Bárbara imagina que as áreas química e médica podem ser as primeiras beneficiadas, com pesquisas de novos materiais e medicamentos. Mais adiante, grandes problemas do mercado financeiro, da cibersegurança e do setor de logística poderão aproveitar as novas máquinas.

“Em um primeiro momento, é possível que máquinas universais, capazes de resolver problemas de diferentes áreas, sejam limitadas a um número de algoritmos, que respeitam a limitação em qubits”, diz Bárbara. “Ao final da década, teremos computadores quânticos no mesmo estágio em que as máquinas clássicas estavam há 20 anos”, afirma Brandão. Parece pouco. Mas será um dos maiores avanços já feitos pela humanidade. / BRUNO ROMANI  

Crédito:  Bruna Arimathea, Bruno Romani, Giovanna Wolf e Guilherme Guerra / Ilustrações: Catarina Bessell/ O Estado de São Paulo – @internet 01/02/2021

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