E isso sem falar nos números na internet. Suas palestras foram vistas dezenas de milhões de vezes no YouTube e se tornaram virais.
O livro mais recente de Sandel, A Tirania do Mérito (Ed. Civilização Brasileira), analisa em profundidade esse conceito, tão em voga nos últimos anos, segundo o qual quem chegou ao topo teve sucesso por seus próprios méritos.
Sandel, no entanto, ataca essa ideia e as muitas falácias que, na avaliação dele, esse tema esconde.
Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.
BBC News Mundo – O que há de errado com a meritocracia?
Michael Sandel – De certa forma, a meritocracia é uma ideia atraente porque promete que, se todos tiverem oportunidades iguais, os vencedores merecem vencer. Mas a meritocracia tem um lado obscuro.
Existem dois problemas com a meritocracia. Um é que realmente não vivemos de acordo com os ideais meritocráticos que professamos ou proclamamos, porque as oportunidades não são realmente as mesmas.
Os pais ricos podem passar seus privilégios aos filhos, não (necessariamente) deixando grandes propriedades, mas dando-lhes vantagens educacionais e culturais para serem admitidos nas universidades.
BBC News Mundo – Em seu livro, você conta, por exemplo, que a grande maioria dos alunos de universidades de prestígio como Princeton ou Yale, nos EUA, pertencem a famílias muito ricas.
Sandel – É assim. Na verdade, nas universidades da chamada Ivy League (que inclui as universidades de Brown, Columbia, Cornell, Dartmouth College, Harvard, Pensilvânia, Princeton e Yale, algumas das mais prestigiadas dos Estados Unidos), há mais alunos que pertencem ao 1% das famílias com maior rendimento do país do que aos 60% com menor renda.
Portanto, o primeiro problema com a meritocracia é que as oportunidades não são realmente iguais.
BBC News Mundo – E o segundo problema?
Sandel – O segundo problema com a meritocracia tem a ver com a atitude em relação ao sucesso. A meritocracia incentiva aqueles que são bem-sucedidos a acreditar que isso se deve a seus próprios méritos e que, portanto, merecem todas as recompensas que as sociedades de mercado concedem aos vencedores.
Mas se aqueles que são bem-sucedidos acreditam que o conquistaram com suas próprias realizações, também tendem a pensar que aqueles que foram deixados para trás são responsáveis por viverem assim.
É um problema de atitude em relação ao sucesso que leva a uma divisão das pessoas em vencedores e perdedores. A meritocracia cria arrogância entre os vencedores e humilhação para os que ficaram para trás.
BBC News Mundo – E se a meritocracia é realmente uma coisa tão perversa, por que nas últimas décadas muitos políticos a abraçaram?
Sandel – É uma pergunta muito interessante. Durante as últimas décadas, os partidos de centro, esquerda e direita adotaram uma versão neoliberal da globalização que causou um aumento nas desigualdades.
E os partidos de centro-esquerda responderam a essas desigualdades não procurando reduzi-las diretamente por meio de políticas econômicas, mas oferecendo a promessa de que era possível ascender socialmente, o que em meu livro chamo de “retórica da ascensão”.
A ideia é que, se criarmos oportunidades iguais, não precisaremos nos preocupar muito com a desigualdade porque a mobilidade pode permitir que as pessoas passem de empregos com remuneração estagnada para empregos melhores.
Os partidos de centro-esquerda ofereceram a retórica da ascensão em vez de responder diretamente à desigualdade.
Colocando de outra forma: em vez de abordar diretamente a desigualdade, ofereceram a mensagem de que a mobilidade individual pode ser alcançada por meio do ensino superior; eles disseram que para vencer na economia global você tinha que ir para a faculdade e obter um diploma universitário, porque o dinheiro que você ganharia dependia do que você aprendeu e estudou, e se você se esforçasse, poderia alcançá-lo.
Todas essas ideias fazem parte da retórica da ascensão, e os partidos de centro-esquerda pensaram que era uma forma inspiradora de encorajar as pessoas a melhorarem suas próprias condições de indivíduos, obtendo um diploma universitário.
E, de certa forma, essa mensagem é inspiradora. Todos querem acreditar que se você trabalhar duro, pode melhorar sua condição.
Mas embora possa ser uma mensagem inspiradora de alguma forma, por outro lado é um insulto, porque implica que se você não foi para a universidade e está passando por momentos difíceis na nova economia, a culpa do seu fracasso é só sua. E isso, insisto, é um insulto para muitos trabalhadores.
O que as elites políticas e meritocráticas esquecem é que a maioria das pessoas não possui um diploma universitário. Nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, quase 2 em cada 3 pessoas não têm diploma universitário.
É um erro criar uma economia em que a condição para o sucesso seja um diploma universitário, que a maioria das pessoas não possui. E isso também se aplica à Europa.
E assim os partidos de centro-esquerda perderam muitos dos eleitores da classe trabalhadora que tradicionalmente eram sua base de apoio. Vimos isso com o Partido Democrata nos Estados Unidos, com o Partido Trabalhista na Grã-Bretanha, com os partidos social-democratas na Europa…
Esses partidos têm se tornado cada vez mais partidos das classes profissionais, das elites com formação universitária, e vêm perdendo apoio entre os trabalhadores sem formação universitária.
BBC News Mundo – E para onde foram esses eleitores?
Sandel – Esses eleitores passaram a apoiar políticos e partidos populistas autoritários, apoiaram Donald Trump nos EUA, o brexit na Grã-Bretanha e partidos populistas autoritários na França, Espanha e outros países.
BBC News Mundo – O que exatamente a meritocracia tem a ver com a chegada de Donald Trump à Casa Branca após as eleições de 2016 ou com a ascensão do populismo?
Sandel – Nas últimas décadas, a divisão entre vencedores e perdedores se aprofundou, envenenando nossa política e nos separando. Essa divisão tem a ver em parte com as crescentes desigualdades das últimas décadas.
Mas também tem a ver com como as atitudes em relação ao sucesso mudaram com o aumento da desigualdade. Aqueles que chegaram ao topo na era da globalização passaram a acreditar que seu sucesso era todo deles porque o conquistaram por seus próprios méritos, e que os perdedores não tinham ninguém para culpar por seu fracasso, exceto eles próprios.
Isso reflete a ideia meritocrática, pois se as possibilidades forem iguais para todos, os vencedores merecem seus ganhos.
À medida que essas atitudes se firmavam, a arrogância meritocrática levou os vencedores a acreditar que seu sucesso era o resultado de seus próprios talentos e trabalho árduo, e levou à desmoralização e humilhação dos perdedores. E uma das formas mais poderosas de reagir contra isso é a ação violenta e populista contra as elites.
Muitos trabalhadores sentem que as elites os desprezam, que não os respeitam, não respeitam o tipo de trabalho que fazem. E isso criou raiva e ressentimento cada vez maiores entre os trabalhadores, que sabiam que estavam trabalhando duro, mas recebendo menos dinheiro, porque os salários dos trabalhadores estão estagnados há quatro décadas.
Os partidos populistas autoritários apelam para as queixas das pessoas que se sentem desprezadas por esse sistema, um ressentimento que as atitudes meritocráticas em relação ao sucesso alimentaram.
A maior parte dos ganhos da globalização foi para os 20% mais ricos, e a metade inferior dos trabalhadores não recebeu nenhum desses ganhos, nenhum. Mas não foi apenas exclusão econômica.
Também aquela sensação de humilhação que vem de sentir que as elites te menosprezam, que consideram você o culpado do seu próprio fracasso e que se têm sucesso é porque o mereceram. Isso criou a raiva e o ressentimento para os quais figuras populistas autoritárias, como Donald Trump, apelaram.
BBC News Mundo – Donald Trump, de fato, sempre criticou as elites. Mas ao mesmo tempo ele se vê como fruto da meritocracia, como um homem que se fez. É um pouco contraditório, não acha?
Sandel – Donald Trump foi um empresário que ganhou muito dinheiro. Mas a raiva e o ressentimento não são contra aqueles que aspiram a riqueza e status.
Desta forma, e apesar de ter muito dinheiro, Donald Trump manifestou o sentimento de ressentimento contra as elites meritocráticas, pois ao longo da sua carreira empresarial sempre se sentiu desprezado pelas elites financeiras, elites profissionais e elites intelectuais de Nova York.
E há muita verdade nisso, ele nunca foi aceito ou respeitado pelas elites de Nova York ou elites meritocráticas.
É por isso que sempre sentiu uma profunda insegurança, que vinha de se sentir desprezado. E, paradoxalmente, isso permitiu-lhe, apesar de rico, expressar o ressentimento que muitos trabalhadores sentiam em relação às elites meritocráticas.
BBC News Mundo – E se a meritocracia não é boa, se não funciona bem, o que devemos fazer para alcançar sociedades mais igualitárias?
Sandel – Acho que devemos nos concentrar menos em preparar as pessoas para uma competição meritocrática e nos concentrar mais na dignidade do trabalho.
Devemos promover medidas e políticas que tornem a vida melhor e mais segura para os trabalhadores, independentemente de suas realizações e qualificação acadêmica.
No livro, apresento várias maneiras pelas quais podemos mudar o discurso político nessa direção. E, nesse sentido, a eleição de Joe Biden como presidente dos EUA após derrotar Donald Trump me parece muito interessante.
Biden é o primeiro candidato democrata à Presidência em 36 anos sem um diploma de uma prestigiosa universidade da Ivy League. O primeiro candidato democrata em 36 anos!
Isso mostra como nas últimas quatro décadas o Partido Democrata tem sido um reflexo do domínio das elites meritocráticas.
E acho que parte do sucesso de Biden é precisamente que, por não vir da elite meritocrática, ele foi capaz de se conectar de forma mais eficaz com os eleitores da classe trabalhadora. Durante a campanha eleitoral, por exemplo, Biden falou da necessidade de renovar a dignidade do trabalho.
Mas não me interpretem mal: não estou dizendo que devemos abandonar o projeto de igualdade de oportunidades. Esse é um projeto muito importante, moral e politicamente. O erro é presumir que a criação de mais oportunidades iguais é uma resposta suficiente às enormes desigualdades de renda e riqueza que a globalização neoliberal trouxe.
BBC News Mundo – A pandemia do coronavírus revelou a importância fundamental de muitos empregos que, no entanto, são mal pagos para a sociedade. Você acha que isso pode ajudar a mudar mentalidades?
Sandel – Potencialmente, sim. Pode nos ajudar a entender que o dinheiro que muitas pessoas recebem por seu trabalho não é a verdadeira medida de sua contribuição para o bem comum, um equívoco e que devemos mudar.
A experiência da pandemia oferece uma possível abertura para um debate público sobre o que realmente é uma valiosa contribuição para o bem comum, para além do veredito do mercado de trabalho.
Aqueles de nós que podem se dar ao luxo de trabalhar em casa perceberam o quanto dependemos de alguns trabalhadores que muitas vezes esquecemos. Não se trata apenas de quem trabalha heroicamente em hospitais cuidando de pacientes da covid, mas também de entregadores, balconistas, funcionários de supermercados, motoristas de caminhão, prestadores de cuidados de saúde ao domicílio, babás… Nenhum desses empregos está entre os que têm salários mais altos.
E ainda assim reconhecemos que são trabalhadores essenciais. Portanto, a experiência da pandemia pode ser o início de um amplo debate público sobre como reconhecer a importância do trabalho e das contribuições que essas pessoas fazem à sociedade.
Depende de nós, é uma questão em aberto. Mas acredito que a experiência da pandemia evidenciou as desigualdades existentes em nossas sociedades e a importante contribuição daqueles que, no entanto, não obtêm as maiores recompensas do mercado.
BBC News Mundo – Então você acha que esses trabalhadores essenciais deveriam ter melhores remunerações?
Sandel – Sim. Eu acho que eles deveriam receber mais como medida de emergência durante esta pandemia. Mas também acho que eles deveriam receber um salário melhor, mesmo quando superarmos a pandemia.
O reconhecimento do papel importante dos trabalhadores essenciais durante esta pandemia deve nos levar a estabelecer um salário digno para todos os trabalhadores.
E também devemos conceder licença médica remunerada a todos os trabalhadores durante a pandemia, porque muitos deles estão colocando sua saúde em risco ao fazer o trabalho que fazem, enquanto o resto de nós podemos proteger nossa saúde ficando em casa.
Eles devem receber um salário digno, licença médica remunerada e outras medidas para mostrar o reconhecimento da sociedade sobre a importância de sua contribuição.
BBC News Mundo – Um estudo da New Economic Foundation de 2009 revela que alguns dos empregos mais bem pagos são socialmente muito destrutivos, que em nada contribuem para o bem comum…
Sandel – É isso mesmo, e é disso que trato no capítulo 7 de A Tirania do Mérito. Por que, por exemplo, os executivos altamente pagos do setor financeiro de Wall Street ganham tanto dinheiro?
Às vezes, presumimos que as transações financeiras especulativas são de vital importância para a economia e a sociedade. Mas estudos têm mostrado, e cito alguns desses estudos no livro, que além de um certo ponto, engenharia financeira complexa e especulação não só não contribuem para a produtividade da economia, mas são na verdade um entrave à produtividade, algo que fere economia real.
E se for assim, recompensar esses executivos financeiros pagando-lhes generosamente não é consistente com a forma como se pagam as contribuições verdadeiramente valiosas para a economia e o bem comum.
BBC News Mundo – E o que você propõe?
Sandel – Proponho uma mudança na estrutura tributária. Sugiro que consideremos a introdução de um imposto sobre transações financeiras especulativas e atividade financeira especulativa: tributar essa atividade e usar o dinheiro arrecadado para reduzir o imposto sobre o trabalho pago por trabalhadores comuns nos EUA.
A mensagem do meu livro é abrir um amplo debate público sobre o que é considerado uma contribuição verdadeiramente valiosa para a economia e o bem comum, e revisar nossa política fiscal e outras políticas do mercado de trabalho para que deem maior reconhecimento e respeito àqueles que eles fazem contribuições valiosas que atualmente são mal pagas e pouco reconhecidas.
BBC News Mundo – Muitos pais, sejam eles ricos ou pobres, ensinam aos filhos que se eles se esforçarem e trabalharem, eles atingirão seus objetivos, uma mensagem muito meritocrática. É perigoso dizer isso a eles?
Sandel – Sim e não, depende. Obviamente, os pais incentivarem os filhos a estudar e trabalhar muito é algo bom, que dá aos jovens a inspiração e a motivação para se esforçarem.
Isso é bom, mas até certo ponto. Os pais devem ser cuidadosos e combinar essa mensagem com outra. Eles devem encorajar seus filhos a trabalharem duro, mas não apenas para que eles consigam um emprego que lhes permita ganhar muito dinheiro. Devemos também promover em nossos filhos o amor pela aprendizagem em si mesma.
Não devemos fazer da educação apenas um instrumento de progresso econômico, porque isso privará nossos filhos do amor de aprender pelo prazer de aprender.
E outro aspecto importante que devemos incutir neles é que se eles tiverem sucesso amanhã será em parte graças aos seus próprios esforços, mas também em parte graças aos seus professores, à sua comunidade, ao seu país, aos tempos em que vivem, às circunstâncias, as vantagens de que puderam usufruir…
Ensinar nossos filhos que seu sucesso é apenas o resultado de seus próprios esforços pode fazê-los esquecer que estão em dívida com os outros, incluindo sua comunidade. Devemos criar filhos que tenham um senso de gratidão e humildade quando são bem-sucedidos.
*Esta entrevista faz parte da versão digital do Hay Festival Cartagena, encontro de escritores e pensadores que aconteceu na cidade colombiana de 22 a 31 de janeiro de 2021.
Crédito: Irene Hernández Velasco/Hay Festival Digital Colombia/BBCMundo – @internet 08/02/2021