“Temos uma situação bastante dramática.” O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), reconheceu com estas palavras a gravidade sem precedentes da pandemia no Estado.
A declaração foi feita em uma coletiva de imprensa na quarta-feira (17/3), enquanto São Paulo bate recordes de casos e mortes, vê sua rede de saúde passar de 90% de ocupação e aplica as medidas de isolamento mais rígidas desde o início da crise para tentar evitar uma tragédia ainda maior.
“Não há nenhum Estado no Brasil em situação confortável. Todos estão à beira do colapso”, disse Doria.
No entanto, segundo epidemiologistas e cientistas ouvidos pela BBC News Brasil, o sistema de saúde paulista já colapsou — e a situação vai se agravar ainda mais nos próximos dias.
Ele aponta para as 92 pessoas com covid-19 ou suspeita da doença que morreram até agora ao menos à espera de um leito de UTI no Estado, de acordo com um levantamento da emissora Globonews.
“Se isso não é um colapso do sistema de saúde, não sei o que é”, afirma o cientista de dados.
Márcio Sommer Bittencourt, médico do centro de pesquisa clínica e epidemiológica do Hospital Universitário da USP, faz a mesma avaliação.
Ele se baseia nos dados divulgados pelo próprio governo paulista, que apontou que ao menos 280 pessoas estão aguardando por um leito de UTI no Estado.
“Se há lista de espera de pacientes que não conseguem ser internados, alguns deles esperando há dias, não faz sentido dizer que está com 90% de ocupação”, diz Bittencourt. “O sistema de saúde de São Paulo está em colapso, sem dúvida.”
Para a epidemiologista Ethel Maciel, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), todos os Estados brasileiros já colapsaram.
“Quando fala que está com mais de 90% de leitos de UTI ocupados, não estão contando as cidades que já não têm mais leito, as pessoas que estão esperando por um leito de UTI no pronto atendimento. Se levar isso em conta, já passou de 100%”, diz Maciel.
Recordes de casos e mortes, com UTIs lotadas
São Paulo vem batendo diariamente recordes de pessoas internadas por causa da covid-19 desde o final de fevereiro.
Havia até terça-feira (16/3) 24.992 pacientes hospitalizados, dos quais 10.756 em UTIs e o restante em enfermarias, segundo os dados mais recentes.
É bem mais do que as 6.250 pessoas que estavam internadas em uma UTI no pior momento da primeira onda da pandemia no Estado, em julho do ano passado.
Isso é um reflexo do aumento expressivo de novos casos nas últimas semanas. A média móvel, que leva em consideração os sete dias anteriores, passou de 13 mil pela primeira vez na pandemia na terça-feira e continuou subindo na quarta-feira. Está em 13.472 óbitos diários. Há cerca de um mês, eram cerca de 8,5 mil.
São Paulo também bateu na terça-feira o recorde de óbitos. Foram 679 em 24 horas, o maior índice já registrado. Até então, o recorde era o de sexta-feira (12/3), com 521 mortes.
O Estado também teve sua maior média móvel de óbitos na quarta-feira, com 421 mortes diárias.
Isso elevou o total para 65.519 vítimas fatais. Em nenhum outro Estado brasileiro morreu tanta gente por causa da covid-19. O segundo com mais vítimas é o Rio de Janeiro, com pouco mais da metade dos óbitos em São Paulo (34.586).
São Paulo também é o Estado com o maior número de casos, um total de 2,24 milhões. Minas Gerais, o segundo mais afetado, tem menos da metade: foram 991,7 mil até agora.
Além disso, pela primeira vez desde o início da pandemia, São Paulo passou de 90% de ocupação de leitos de UTI para covid-19. A taxa, de 90,3%, é referente aos hospitais públicos e particulares. Há apenas três semanas, a ocupação era de 68%.
No conjunto de municípios que compõem a região metropolitana da capital, o índice é ainda maior: 90,7%.
Esse aumento ocorreu mesmo com abertura de 1,3 mil leitos desde o início de março em hospitais comuns e com a reativação e inauguração de hospitais de campanha, de acordo com informações do governo paulista.
Estado mais rico do país, São Paulo diz já ter investido R$ 6,3 bilhões no combate à pandemia.
Mas, atualmente, as UTIs estão 100% lotadas em 67 cidades paulistas, de acordo com o governo do Estado — pouco mais de 10% do total de municípios de São Paulo.
“Estamos vivendo o momento mais triste da pandemia”, disse o secretário de saúde Jean Gorinchteyn.
‘Tem que fazer lockdown agora’
Desde segunda-feira (15/3), está em vigor no Estado a chamada “fase emergencial” do plano de combate à pandemia de São Paulo entrou em vigor na última segunda-feira (15/3).
Ela foi criada justamente por causa desse agravamento inédito da pandemia — até então, o nível com as medidas mais duras de restrição do plano de combate à pandemia em São Paulo era a “fase vermelha”.
A nova fase prevê um toque de recolher das 20h às 5h, período em que a população deve ficar em casa.
Também foram suspensas as celebrações religiosas e atividades esportivas em grupo. Parques e praias foram fechados, e mesmo setores e serviços que podiam abrir na fase vermelha, como as lojas de material de construção, agora não podem funcionar.
Essas medidas ficarão em vigor até o próximo dia 30, mas, até agora, não surtiram muito efeito sobre a circulação dos paulistas.
O índice de isolamento foi de 44% no Estado e de 43% na capital na terça-feira. Em ambos os casos, houve o aumento de só um ponto percentual em relação a uma semana antes, quando a fase emergencial ainda não estava em vigor. O governo paulista diz que o objetivo é chegar a um índice acima de 50%.
Outro problema é que as novas restrições só vão se refletir nos números da pandemia daqui a duas semanas a um mês. Este é o tempo que especialistas apontam que leva para as medidas levarem a uma queda de casos e mortes.
“Agora que tudo desabou, querem tentar resolver, mas não dá mais tempo. Vai piorar antes de melhorar”, diz Márcio Bittencourt.
O epidemiologista critica a forma como não só o governo paulista, mas o país em geral vem reagindo à pandemia.
“Ficam correndo atrás do vírus e tomando decisões tardias e de curto prazo em vez de pensar em uma estratégia de médio e longo prazo para evitar que piore. Do ponto de vista epidemiológico, vai ser preciso intensificar as medidas de controle ainda mais.”
Era especulado que um anúncio nesta linha fosse feito hoje pelo governo de São Paulo, mas isso não aconteceu.
“Precisamos de algum tempo para observar o impacto das medidas que tomamos e ver se há necessidade de outras medidas”, disse Paulo Menezes, coordenador do centro de contingência da covid-19 de São Paulo, que assessora o governo estadual no combate à pandemia.
Domingos Alves discorda frontalmente dessa decisão. “Querem esperar o quê? O caos? Deviam falar que ainda não é hora para as famílias das pessoas que morreram por falta de leito de UTI. Quanto caos é caos suficiente para eles?”
Alves destaca que, hoje o Estado tem uma média móvel de 2.790 internações por dia por causa da covid-19. “”Já não dá pra prever que o sistema de saúde não vai dar conta disso?”, diz pesquisador, que defende um lockdown, como é chamado o conjunto de medidas mais restritivas de circulação, com o confinamento da população em suas casas durante todo o dia.
“Está na hora de fazer um lockdown completo, não aquela palhaçada de fazer só no final de semana ou alguns dias, tem que ser por no mínimo 15 dias para ter efeito. Só com um lockdown São Paulo vai conseguir reverter essa situação”, afirma o cientista.
Ethel Maciel concorda que será necessário o confinamento. “Vai precisar de lockdown, sem dúvida”, afirma epidemiologista.
“O ideal é que fosse nacional, coordenado pelo governo federal, porque hoje estamos em uma situação em que nenhum Estado está em condição de ajudar o outro. A gente sabe que o governo federal não vai, mas temos que dizer que isso é necessário mesmo assim.”
Crédito: Rafael Barifouse / BBC News Brasil – @internet 18/03/2021