Marcelo Queiroga fez declarações “pró-ciência” no passado, mas é bolsonarista e já alinha discurso com o presidente em temas como cloroquina e rejeição ao lockdown. “Política é do governo Bolsonaro, não do ministro.”
Novo titular do Ministério da Saúde, o médico Marcelo Queiroga vai assumir a pasta em meio a um cenário de devastação. O país se aproxima da marca de 300 mil mortes por covid-19, e redes hospitalares estão em colapso em dezenas de capitais e grandes cidades. Variantes mais contagiosas do coronavírus têm circulado livremente, ao mesmo tempo em que a vacinação tem avançado em ritmo vagaroso. É o quarto ministro da Saúde em um ano de epidemia.
Na segunda-feira (15/03), após Queiroga ser anunciado como sucessor do general Eduardo Pazuello na Saúde, vários jornais destacaram a principal diferença entre os dois: um é médico, e o outro é um militar que não tinha nenhuma experiência na área de saúde.
No entanto, há algo em comum: os dois chegaram ao posto por decisão pessoal do presidente Jair Bolsonaro, e não por arranjos políticos ou recomendações da comunidade médica.
Queiroga tem um longo currículo na área médica. É presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e diretor do Departamento de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista de um hospital em João Pessoa.
Mas o fator determinante para sua escolha foi mesmo a proximidade com o clã Bolsonaro. Seu padrinho na indicação foi Flávio Bolsonaro, filho mais velho do presidente. Queiroga é amigo da família da mulher do senador.
O médico também é bolsonarista. Ele apoiou a candidatura de Jair Bolsonaro em 2018 e integrou a equipe de transição do então presidente eleito. Sua conta no Twitter contém várias manifestações de apoio ao presidente. Em 2019, por exemplo, publicou uma foto dos anos 2000 em que Bolsonaro aparece ao lado do político de extrema direita Enéas Carneiro. “Encontro de dois grandes brasileiros”, escreveu Queiroga acima da imagem.
Por outro lado, a postura de Queiroga ao longo da pandemia à primeira vista contrasta com os adeptos mais radicais do bolsonarismo. Não há sinais de negacionismo em suas falas públicas nos últimos 12 meses. Antes da indicação, ele defendeu o uso de máscaras, da vacinação e do isolamento social.
A SBC, sociedade que ele preside, também já publicou notas em que não recomenda o uso da cloroquina contra a covid-19. A droga ineficaz é desde março de 2020 a principal aposta de Bolsonaro para lidar com a pandemia. Na gestão Pazuello, sob ordens de Bolsonaro, a cloroquina foi distribuída em largas quantidades.
Histórico desanimador sob Bolsonaro
Mas o histórico da Saúde sob o governo Bolsonaro não é favorável para ministros que vêm da área médica: dois dos três antecessores de Queiroga, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, também eram médicos, e entraram em choque com a postura negacionista e anticiência de Bolsonaro. Mandetta durou apenas um mês e meio no cargo após a detecção do primeiro caso de covid-19 no Brasil. Teich ficou 29 dias. Não médico, porém obediente ao chefe, Pazuello ficou dez meses.
Ao anunciar Queiroga, Bolsonaro disse que o médico vai dar “prosseguimento em tudo o que Pazuello fez até hoje”. A fala foi imediatamente criticada por adversários do presidente, que lembraram o avanço dramático da pandemia durante a gestão do general e episódios trágicos como a falta de oxigênio em Manaus.
O próprio Queiroga, em falas após o anúncio, declarou que “a política é do governo Bolsonaro, não é do ministro da Saúde”. “A Saúde executa a política do governo”, disse, parecendo ecoar uma declaração de Pazuello em outubro passado: “Senhores, é simples assim: um manda e o outro obedece”.
Também há dúvidas se Queiroga vai ter autonomia para montar sua equipe no ministério. No momento, dezenas de postos-chave da pasta estão ocupados por militares sem experiência em saúde, vários deles negacionistas e adeptos de tratamentos ineficazes.
Teich, por exemplo, não teve poder para nomear assessores, tendo que engolir a nomeação de Pazuello como secretário-executivo da pasta, uma indicação feita diretamente por Bolsonaro. Na prática, Pazuello atuou como representante político do presidente nas poucas semanas em que o médico permaneceu no cargo, acabando por sucedê-lo. “Eu saí porque não teria autonomia para conduzir da forma que achava certa. Nem autonomia nem legitimidade”, disse Teich em janeiro.
A escolha de Queiroga desagradou o Centrão do Congresso, que se aliou com Bolsonaro. O principal líder do bloco, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), desejava a nomeação da médica Ludhmila Hajjar. Ela chegou a conversar com Bolsonaro, mas logo passou a ser alvo de ataques virulentos da base bolsonarista nas redes sociais, que a encarou como uma potencial oposicionista infiltrada.
Sem conexão com o Centão, Queiroga deve ser mais cobrado pelo bloco. “Não teremos paciência com ele [Queiroga]. É acertar ou acertar”, disse na terça-feira ao Estadão o deputado Marcelo Ramos (PL-AM), atual vice-presidente da Câmara.
Alinhamento após indicação
O novo ministro também já vem desconversando sobre alguns dos seus antigos posicionamentos, num sinal de que está no mínimo disposto a abraçar em parte, pelo menos publicamente, o credo bolsonarista sobre a pandemia e assim evitar desagradar Bolsonaro e a base radical do presidente.
Apesar de ter se manifestado contra a cloroquina no passado, Queiroga passou a evitar criticar a droga após ser anunciado como ministro. Na segunda-feira, ao ser questionado sobre se recomendava cloroquina, disse, numa reposta vaga, que esse tema “precisa ser analisado para que a gente consiga chegar a um ponto comum que permita contextualizar essa questão no âmbito da evidência científica e da ciência”.
Ele também afirmou que o lockdown – a imposição de medidas rigorosas de circulação da população para conter a disseminação do vírus – não pode ser “política de governo”.
“Esse termo de lockdown decorre de situações extremas. São situações extremas em que se aplica. Não pode ser política de governo fazer lockdown. Tem outros aspectos da economia para serem olhados”, afirmou Queiroga.
A fala foi mal recebida por membros da comunidade médica, já que o país passa justamente por uma “situação extrema”, com recordes consecutivos de mortes por covid-19 e o sistema de saúde em colapso.
“Novo ministro assume falando na possibilidade do uso de cloroquina e etc.., descarta lockdown. Hoje, 16/3, quando assumir vai se deparar com os piores números da pandemia. Sugestão: não se posicione contra o lockdown nacional”, escreveu no Twitter João Gabbardo, ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde na gestão Mandetta.
A rejeição ao lockdown é uma das principais bandeiras de Bolsonaro, que tem incentivado a população a combater medidas nesse sentido impostas por governadores.
Ainda assim, Queiroga deu nos últimos três dias algumas declarações que contrariam a postura bolsonarista ao longo da pandemia, continuando a defender o uso de máscaras e a adoção de medidas pessoais de distanciamento social contra o vírus – mas sem afirmar que elas devem ser obrigatórias.
Mas, novamente, o histórico desse tipo de posicionamento não é favorável na pasta. Mandetta defendeu posturas similares em março e abril de 2020. Bolsonaro respondeu promovendo aglomerações e aparecendo em público sem máscara.
“Quem tem de mudar não é o ministro, mas a mentalidade do presidente”, disse o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), ao jornal O Globo, expressando ceticismo sobre uma mudança de rumo na Saúde. “Se o presidente não mudar a visão da crise sanitária, das duas uma: ou nada mudará com o ministro, ou mudará o ministro.”
Vacinação
À frente do ministério, Queiroga terá como um de seus desafios aumentar o ritmo de vacinação no país. Os pedidos de substituição de Pazuello se multiplicaram no Congresso e nos estados nos últimos meses especialmente por causa da inabilidade do general em assegurar doses.
Até o momento, apenas 10 milhões de brasileiros receberam uma primeira dose da vacina, ou menos de 5% da população. Pazuello divulgou números inflados de vacinas garantidas, mas entregou pouco. A inabilidade de Pazuelllo, porém, não explica totalmente a escassez de vacinas. Bolsonaro também interviu pessoalmente no ano passado para frear compras de imunizantes da Sinovac e da Pfizer, além de alimentar a paranoia sobre supostos riscos envolvendo imunizantes.
Mas nos últimos dias o governo tem aparentemente adotado uma mudança de tom. Membros do clã Bolsonaro passaram a divulgar slogans como “Nossa arma é a vacina”. A gestão de saída de Pazuello retomou negociações com farmacêuticas, embora, após tantos atrasos e diante da alta demanda mundial, a maior parte desses contratos só vai se traduzir em fornecimento a partir do segundo semestre.
A mudança acelerou após o Supremo Tribunal Federal (STF) ter anulado sentenças do ex-presidente Lula, na prática devolvendo os direitos políticos do petista, que pode ser um adversário de Bolsonaro em 2022.
Queiroga está em sintonia com essa postura tardia do presidente de abraçar vacinas, mas especialistas alertam que a oposição contínua do governo contra medidas de lockdown arrisca agravar ainda mais a pandemia antes que a vacinação em massa esteja disponível. E mesmo a vacina pode não ser suficiente.
Países bem-sucedidos na vacinação, como Israel, não se limitaram a imunizar a população. A campanha ocorreu paralelamente a rígidas medidas de lockdown, que ajudaram a derrubar a taxa de infecção. Por outro lado, o Chile, outro país que tem vacinado com rapidez, deixou de lado o isolamento rígido nos últimos meses e viu o vírus avançar mesmo com a expansão da imunização. Na última sexta-feira, o país finalmente decretou um novo lockdown. Especialistas apontaram que o Chile é um exemplo de que a vacinação parcial, por mais bem-sucedida que seja, não é suficiente para conter o vírus com rapidez.
Pesquisadores do Imperial College de Londres e da Universidade de Leicester também apontaram recentemente que vacinação em massa sem um lockdown paralelo pode propiciar o aparecimento de mutações mais potentes, capazes de enfraquecer a ação dos imunizantes.
Crédito: Deutsche Welle – @internet 18/03/2021