Inflação e pandemia podem empurrar Brasil de volta ao Mapa da Fome

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País estava fora do levantamento desde 2014; projeções apontam que quase 10% da população brasileira está subalimentada

A palavra fome voltou a assombrar os brasileiros mais pobres. Além do recrudescimento da pandemia e do impacto com as quase 4 mil mortes diárias pela Covid-19, há uma tempestade perfeita nesse caos que coloca em risco também sua segurança alimentar: inflação alta, desemprego e ausência do auxílio emergencial – ao menos num nível que permita a compra de uma cesta básica.

O Brasil deixou o chamado Mapa da Fome em 2014 com o amplo alcance do programa Bolsa Família – estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) baseado em dados de 2001 a 2017 mostrou que, no decorrer de 15 anos, o programa reduziu a pobreza em 15% e a extrema pobreza em 25%. No entanto, o país deve voltar a figurar na geopolítica da miséria no balanço referente a 2020. 

O Mapa da Fome é um levantamento feito e publicado pela ONU (Organização das Nações Unidas) sobre a situação global de carência alimentar. Um país entra nesse levantamento quando a subalimentação afeta 5% ou mais de sua população. Venezuela, México, Índia, Afeganistão e praticamente todas as nações africanas apareceram no mapa referente a 2019. 

O Brasil tem ficado fora, embora dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostrassem que, já em 2018, após anos de turbulências políticas e crescimento econômico pífio, a fome voltava a se alastrar. Agora, com a eclosão da pandemia e suas consequências econômicas e sanitárias, vai ser difícil escapar.

De acordo com Daniel Balaban, representante no Brasil do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (WFP) e Diretor do Centro de Excelência contra a Fome, a situação brasileira é muito preocupante. Ele projeta que o Brasil esteja próximo dos 9,5% de sua população com subalimentação. 

“A condição do Brasil vinha se deteriorando antes da pandemia, por conta dos cortes orçamentários de políticas sociais, crises políticas e econômicas. A pandemia só apressou e piorou essa situação”, disse Balaban à CNN.

Medidas para arrecadar alimentos se espalham pelo país entre poder público, empresas, igrejas e organizações da sociedade civil. Como exemplos recentes, há o da Prefeitura de Porto Alegre, que iniciou uma campanha de coleta nas filas de drive-thrus da vacinação contra a Covid e o do time do São Paulo, que iniciou nesta quarta-feira (31) coleta de doações no Morumbi.

Além disso, a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) e o Sesi (Serviço Social da Indústria) criaram uma campanha no interior de São Paulo; a ONG Banco de Alimentos tem realizado trabalho diário de coletas; e dioceses espalhadas pelo país também têm arregimentado contribuições entre fiéis. O movimento Tem gente com fome, apoiado pela Anistia Internacional e diversas outras ONGs, usa as redes sociais de artistas para clamar por ajuda. São iniciativas que não eram vistas há muito tempo no Brasil e remontam a campanhas anteriores aos anos 2000.

Fome no Brasil
Ato do movimento Panelas Vazias, realizado em São Paulo pelo G10 Favelas, que reúne lideranças das maiores comunidades brasileiras, chamou a atenção para o aumento da fome no país durante a pandemia de Covid-19
Foto: Alice Vergueiro/Estadão Conteúdo

Um alívio temporário

Aprovado pelo Congresso, o auxílio emergencial sancionado em abril de 2020 pelo presidente Jair Bolsonaro, de R$ 600 mensais, ajudou a população de baixa renda a enfrentar o risco da fome no ano passado. Segundo estudos do pesquisador Daniel Duque, do Instituto de Estudos Econômicos da Fundação Getúlio Vargas (Ibre-FGV), com o auxílio para as camadas mais pobres o país chegou a ver uma redução importante da miséria e pobreza extremas. Isso porque a reposição de renda foi, para muitos, acima do que era o rendimento médio.

Mas o benefício acabou no fim do ano – as contas fiscais do país não permitiam, segundo o governo, a extensão do pagamento. Passados três meses sem o benefício, o Brasil mergulhou de vez, segundo Duque, em um cenário de elevação da pobreza extrema pior do que se encontrava em 2019. “Já estamos vendo um aumento dramático de pobreza e pobreza extrema nesse começo de 2021, ainda que não seja fome”, afirma o pesquisador.

Com o empobrecimento veloz e uma segunda onda mais letal da pandemia, o governo, impactado pela forte queda em índices de popularidade, assinou no dia 18 de março três Medidas Provisórias que recriaram o benefício, com um valor inferior, de R$ 150 a R$ 375, mas que deve ao menos evitar a fome de quem receber o auxílio, aponta Duque. O pagamento dessa nova leva será feito em quatro parcelas e começa no dia 6 de abril. 

Balaban, da ONU, acrescenta que, sem uma política em longo prazo contra a fome, o risco de insegurança alimentar é permanente. “O auxílio é fundamental e esse atraso na aprovação coloca a situação em risco. Mas o problema é que tudo vira artificial. São necessárias políticas públicas perenes de combate à miséria, independentemente do governo, ou o país é um cachorro correndo atrás do rabo”, diz Balaban.

Duque antevê ainda que, com a piora do quadro da pandemia, uma nova onda de demissões deve acontecer, e pessoas que não precisaram do auxílio no ano passado irão precisar agora. “Essas pessoas podem passar por uma situação mais dramática”, explica o pesquisador.

A massa salarial, um indicador que mede o bolo de rendimentos relativos a trabalho recebidos pela população, sem incluir benefícios como o auxílio, já teve em janeiro a segunda redução mensal consecutiva, de acordo com dados do IBGE. Além disso, a alta do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) no grupo alimentos, em 12 meses, foi de 15% – quase o triplo do índice geral.  

“Com a alta nos preços de alimentos e o preço do botijão de gás chegando a R$ 100, para muitas pessoas a escolha foi feita entre comprar comida e cozinhá-la”, diz André Perfeito, economista-chefe da Necton Investimentos. “Sob qualquer ponto de vista, se torna uma situação catastrófica para as camadas mais pobres, já que as altas de preços se concentram em produtos essenciais e com peso maior para esses estratos sociais.”

No Brasil, a fome diminuiu em 82% de 2002 e 2013, mas voltou a subir nos últimos
No Brasil, a fome diminuiu em 82% de 2002 e 2013, mas voltou a subir nos últimos cinco anos Foto: Donations_are_appreciated / Pixabay

Dificuldades históricas

Para Marcelo Medeiros, professor da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador visitante da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, o Brasil historicamente nunca deixou de ter problemas importantes de segurança alimentar, ainda que na última década o flagelo da fome tenha entrado em um momento de redução. 

“A fome, no sentido extremo da palavra, havia caído bastante. Mas a nova fome passou a ser a obesidade e a má alimentação: mais ou menos um terço da população brasileira vivia sob insegurança alimentar, e esse número provavelmente aumentou na pandemia”, diz Medeiros.

Segundo o professor, a pandemia é a origem da crise na economia e, sem controlar a crise sanitária, a economia seguirá mal. “Para reverter isso, programa de garantia de renda, distribuição gratuita de máscaras e, o mais óbvio, levar a vacinação a sério.”

O Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (WFP), que recebeu o Prêmio Nobel da Paz de 2020, é a maior agência humanitária do mundo, atuando por meio da assistência e de projetos de segurança alimentar e nutricional. O órgão estima que 272 milhões de pessoas já estão – ou estão prestes a entrar – em uma situação de insegurança alimentar aguda pelo mundo, em decorrência dos efeitos da crise da Covid-19.

Um número recorde de 235 milhões de pessoas vão precisar de assistência humanitária e proteção em 2021, o que significa um aumento de cerca de 40% em relação a 2020, segundo levantamento do WFP. 

Programas governamentais

De acordo com o Ministério da Cidadania do governo federal, que operacionaliza os pagamentos do Bolsa Família e do Auxílio Emergencial, foram disponibilizados no ano passado R$ 365 bilhões para os programas sociais, o que ajudou a reduzir a pobreza extrema em 80%.

O governo anunciou nesta quarta-feira (31) que o novo auxílio emergencial deve beneficiar 45,6 milhões de famílias de baixa renda pelo país com aportes de R$ 44 bilhões e início dos pagamentos em abril, se aproveitando do trabalho de cadastramento dos beneficiados realizado no ano passado. 

O ministério diz ainda que realiza cruzamento contínuo dos dados e ações de controle e fiscalização para evitar pagamentos indevidos. Em paralelo, o governo alega ter aumentado a previsão orçamentária para o pagamento do Bolsa Família neste ano, o que demonstraria um compromisso de “garantir e ampliar continuamente o atendimento nas ações de proteção social”. 

“Cabe informar ainda que o ministério também tem trabalhado na reformulação do Bolsa-Família. A nova proposta, além de ampliar o número de famílias contempladas, prevê, por exemplo, reajuste nos valores dos benefícios pagos atualmente e mais eficiência no gasto do dinheiro público”, afirma o ministério em resposta à CNN Brasil.  

A nota do ministério também aponta procedimentos de distribuição de alimentos a localidades que tenham decretado situação de emergência ou calamidade pública e o programa de aquisição de alimentos da agricultura familiar como iniciativas para combater a fome no país.

Moradores do Rio tentam encontrar alimentos em caminhão de lixo
Moradores do centro do Rio de Janeiro tentam encontrar alimentos em caminhão de lixo logo depois de funcionários de supermercados descartarem sobras
Foto: Onofre Veras/Photopress/Estadão Conteúdo

Crédito:  Mário Sérgio Lima, colaboração para a CNN Brasil – @internet 01/04/2021

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