Fotógrafo Araquém Alcântara relata como foi registrar a Amazônia e o Pantanal em chamas e teme que tragédias se repitam neste ano
Em 2019, sobrevoou a Floresta Amazônica em chamas, com mais de 15 mil focos de incêndio, e ficou chocado também com a invasão das mineradoras nos rios da região. “Mais uns anos assim e não vai ter mais nada”. No ano passado, entre agosto e setembro, fotografou o Pantanal, a maior planície alagada do mundo. A paisagem lhe lembrou a terra seca, rachada, do sertão nordestino, com centenas de animais mortos e outros desesperados à procura por alimento.
“Os riachos totalmente secos. Os bichos desorientados me impressionaram. Umas lontras que vivem na água, sem água, perdidas. Deu para perceber a gravidade da aridez. Chafurdavam no resto de lama.”
A preocupação de Araquém agora é que tudo se repita em 2021, que se tornem rotina as queimadas por causa da falta de iniciativa do poder público. “Estamos em março, já era para deputados da região, políticos estarem promovendo ações preventivas, com projetos para criar brigadas de proteção permanente nessas regiões, alertando para o início do período de seca, mas não se vê nada. A única atitude tem vindo de ONGs, instituições e moradores locais, fazendeiros e donos de pousadas.”
Em suas redes sociais, Araquém divulgou as imagens que fez nos 21 dias que esteve no Pantanal e das queimadas na Amazônia. Mas na comemoração de seus 50 anos de carreira, completados no ano passado, optou por lançar livros que mostrassem também as belezas da natureza do Brasil, como que um registro sobre a importância de preservar.
Em dezembro, lançou um livro sobre a Serra do Amolar, no Pantanal. Também criou um projeto ‘on demand’ chamado Pindorama, com imagens do Brasil intacto, como se fosse antes da chegada dos portugueses. Em outubro deve ser publicado o livro sobre os 50 anos de carreira, com imagens dos bastidores de seus trabalhos e também fotos inéditas.
Por que decidiu lançar um livro sobre as belezas do Pantanal logo após a maior tragédia que a região enfrentou?
Saiu muita coisa sobre as queimadas do Pantanal no ano passado. Já estava trabalhando em um livro dos meus 50 anos de fotografia, pela editora Vento Leste, que trata sobre os dois lados, a beleza e o fogo, o verso e o reverso. O do Pantanal é da minha editora, Terra Brasil, um projeto mais antigo. E agora vai sair um projeto digital, on demand, chamado Pindorama, com imagens como se fosse o Brasil antes de Cabral, o Brasil puro. É um canto de amor ao país. Tenho sempre a beleza como fator fundamental porque a fotografia é uma cerva da beleza como diria Carlos Drummond de Andrade. Mesmo mostrando o horror.
Quando nasceu o projeto sobre a Serra do Amolar?
Comecei a fotografar a Serra do Amolar em 2002. Uns anos depois nasceu a ideia de transformar só as paisagens dessa região em livro. A Amazônia e o sertão são minhas matrizes criativas. O Pantanal é uma sinfonia de belezas, onde tudo explode, as formas de vida e fauna. São paisagens mágicas. A da Serra do Amolar é uma das mais exuberantes e mais importantes.
Você já tinha finalizado o livro quando aconteceu o incêndio?
Estava editando quando 28% do Pantanal foi embora. A área que foi queimada em 2020, segundo pesquisadores, supera em 10 vezes a área de vegetação perdida em 18 anos. Entre 2000 e 2018 havia 2,1 mil km2, era o bioma mais preservado do País. Em 2020, queimou 23 mil km2.
Acredita que 2021 pode haver nova tragédia na região?
Estamos no pico de seca e tudo pode acontecer de novo. Precisa de pelo menos cinco anos sem queimadas para recuperação do bioma que foi perdido. A Serra do Amolar é uma grande muralha natural que separa o Brasil da Bolívia. Uma área reguladora de umidade e que beneficia as florestas da região, além de ser refúgio nas cheias pantaneiras. Me impressionou tanto a beleza na primeira visita que pensei em fazer o livro.
No seu livro você conta que há uma espécie fotografada que ainda nem havia sido registradas pelos biólogos. Qual a sensação de saber que o fogo pode ter dizimado também algumas espécies que sequer haviam sido descobertas?
As florestas são o grande laboratório de conhecimento. Tenho acompanhado a velocidade de desertificação do País nos últimos 50 anos. Estamos em um ponto crucial de mutação incrível da floresta amazônica. Hoje ultrapassa 20% o perigo de junto com as mudanças climáticas a savanização de rios aéreos. A mata atlântica já foi 93% embora.
O que acha que pode se feito para mudar esse cenário?
Meu otimismo é o que me alavanca e dá forças para continuar fotografando. Só a opinião pública mundial, a abertura de estudos científicos nas florestas podem salvar desse desmonte total. Quiseram acabar com áreas de manguezais, liberar garimpo. Existe um projeto ecocida no País. É um crime de lesa humanidade.
O que te marcou ao registrar a tragédia no Pantanal?
Em determinado momento estou no meio daquilo, fotografando um jacaré em uma área seca e eu pensei: ‘preciso começar a publicar o que está vivo, porque o que estou vendo aqui…’ Pisava e aquela fuligem que fica depois do fogo subia. Uma sensação de calor de quase 50 graus, uma fumaça. Pegava água do cantil, molhava a toalha e enrolava no rosto para seguir. Logo secava. Havia muitas cobras mortas, os bichos rasteiros dizimados, uns urubus de cabeça vermelhas, as aves descendo para comer bichos mortos. Registrei uma onça sentada que escapou do fogo e sentou em uma área totalmente queimada. Foi ali a constatação da resiliência.
Quanto tempo você ficou no Pantanal?
Foram 21 dias entre agosto e setembro. O lugar que mais queimou foi a região próxima a transpantaneira, o parque nacional do encontro das águas. É um parque estadual onde tem a maior concentração de onças por metro quadrado. Depois desses 21 dias, subi o rio Cuiabá e vi o começo do fogo chegando no Amolar. E continuou queimando. Foi de junho até novembro, nunca tinha acontecido isso. Tudo poderia ter sido evitado. Tem uma imagem que ficou e me lembrou muito o sertão. O chão de terra todo rachado, repartido, um Coati esquálido, desorientado, tentando comer. Do lado, um jacaré morto. Os riachos totalmente secos. Os bichos desorientados me impressionou. Umas lontras que vivem na água, sem água, perdidas. Deu para perceber a gravidade da aridez. Chafurdavam no resto de lama.
Você pretende lançar um livro com essas imagens?
Na sequência de 50 anos, não vou ficar comemorando eternamente, já estou preparando: eis aí a destruição toda que aconteceu em 2019 e 2020, quebraram todos os recordes. Para este ano não dá mais, talvez no ano que vem. Livro sobre destruição, que está na minha cabeça, com um papel mais cru, para não esquecer. Fui testemunha ocular. Estou vendo isso. Talvez para o primeiro semestre do ano que vem. O Brasil tem que abrir para ciência o estudo da Amazônia, é um grande laboratório. Uma mudança de consciência que vem acontecendo até, mas ela é muito lenta. A destruição tem sido muito mais rápida. Penso nisso todo dia. Faço a fotografia como beleza e denúncia todo dia. Espero que minha fotografia também possa servir de inspiração para essa conscientização.
E tinha representantes do governo no local?
Havia dois ou três representantes da marinha, dois ou três da aeronáutica, uns poucos do exército. Meio que para dizer nós estamos aqui, mas de fato não estão. Vieram com um papo de boi bombeiro, é muito triste. Alguns fazendeiros começaram a levar caminhões com água para espaços de bebedouro dos animais e alimentos. Ongs também fizeram isso, deixando comida no curso dos bichos. Peguei uma imagem de um homem esperando, observando o início do fogo. Teve um dia que a secretária do meio ambiente se aproximou muito do fogo, o vento virou e ela só foi salva porque estava com um comandante do Corpo de Bombeiros.
Tem visto alguma modificação diferente neste ano?
Em relação a evitar o fogo, não. E o pior é que pode ser repetido. A sociedade tem muita dificuldade sem apoio do poder público. Estamos em março, agora já era para estar em plena ebolição a divulgação de ações, deputados da região já deveriam estar mobilizadas para combater os focos de incêndio. O Instituto do Homem Pantaneiro está tentando fazer uma brigada permanente. Tem que ter e nunca teve.
Quais as soluções para evitar incêndios dessa proporção?
Há muito se fala em ter brigadas de incêndio permanente, conscientizar os moradores, fazendeiros, realizar exercícios de combate ao fogo. Essa atitude precisa da intervenção e gerência do Estado, do poder público. Houve uma movimentação. Os fazendeiros perceberam que se forem esperar o Estado eles vão perder as terras. Os donos de pousada ficaram muito próximos de perder seu ganha pão. Tenho amigos que o fogo chegou na porta. Elas estão dentro do Pantanal. E vai ter que ser isso. Uma movimentação da sociedade organizada. Os instituto, ONGs junto com entidades de amparo ao animal estão mobilizadas para preparar as brigadas e monitorar o fogo do início.
Em 2019 você presenciou também o incêndio na Amazônia…
Já fui mais de 50 vezes para a Amazônia. Me sinto capacitado para mostrar a Amazônia para o mundo inteiro. Não tenho só o fogo. Subi o pico da neblina, o monte roraima, a serra do divisor. Só no norte de um Estado tem 19 etnias que praticamente ninguém conhece. A região chamada Cabeça de Cachorro, na divisa com a Colômbia. Fiquei em Rondônia em uma hotel com 150 jornalistas. Toda imprensa se concentrou em Porto Velho em agosto de 2019. Foram mais de 15 mil focos na Amazônia. No final de setembro, a WWF me deu oito dias de avião. Pegamos em Itaipuma, na beira do rio Tapajós, um grande centro de garimpo. Fui descendo e fotografando. Impressionante lá de cima. Porque você vê muita mata virgem e também vê em um rio novo, limpo, mas junto ali já parada uma máquina de garimpo. Observava o rio Iriri, Xingu, inacreditável o garimpo no entorno. Só descer do Pará, Amazonas e ir até o Mato Grosso. Ali já está tudo loteado. A floresta está nas regiões mais inacessíveis. Já subi a estrada Cuiabá Santarém na época em que os caminhões ficavam atolados. Agora está tudo asfaltado. O porto de Porto Velho é cheio de silos de armazenagem de soja. Tenho um registro de 60 caminhões enfileirados cheios de soja. Tem que cuidar muito, mas tem que cuidar do outro lado para que a soja e o garimpo não avancem acima do rio Solimões, onde está a floresta virgem. A última vez que tinha sobrevoado tinha sido em 2005. De lá para cá, 14 anos, foi impressionante. Mais 14 assim não vai ter mais nada.
Essas tragédias estarão no seu livro de 50 anos?
Está tudo misturado pela oportunidade editorial. O meu pensamento sobre o Brasil. É um livro que conta minha história e dá voz ao meu pensamento. Escrevo também sobre o País. Tenho texto sobre fotografia. A ideia original era uma ode a beleza. Quando veio o fogo, decidi fazer o verso e o reverso, a luz e as trevas, mas prevaleceu em colocar no editorial o que está acontecendo e depois me dedicar a isso. Mas o produto mantém a fé que a natureza resista contra tudo. Tinha as redes sociais e outras publicações internacional em mostrar o que está fazendo.
De como se devasta um éden
Um testemunho sobre a destruição do Pantanal, por Araquém Alcântara
Em setembro de 2020 eu vi a face do horror.
Sob o céu alaranjado, tóxico, sufocante, em meio à fuligem onipresente, o fogo brotava por todos os lados na Transpantaneira.
Eu vi animais desorientados, desnutridos, sedentos. Uma anta correndo. Macacos-prego assustados. Lontras buscando qualquer poça d’água na paisagem ressequida – ao redor, tudo chamuscado.
Eu vi animais mutilados, animais com as patas queimadas, incapazes de fugir.
Eu vi animais mortos. Muitos animais mortos: pássaros, jacarés, ariranhas, capivaras, cobras. Um veado catingueiro.
Espalhadas sobre a terra arrasada, a perder de vista, eu vi as carcaças retorcidas de animais queimados vivos – espectros macabros deixados pela passagem avassaladora do fogo.
Ao longo dos meus 50 anos de fotografia, dedicados integralmente à defesa do patrimônio natural brasileiro, nunca vi nada igual.
Embora meu trabalho esteja voltado, sobretudo, à celebração da vida, em inúmeras ocasiões já retratei a destruição: o desmatamento, a mineração, os incêndios na Amazônia, no Cerrado, na Caatinga.
O que foi absolutamente novo, dessa vez, foi ver de perto a voracidade do fogo.
Para citar apenas tres exemplos: na região da Serra do Amolar, um dos recantos mais exuberantes do planeta em termos de beleza cênica e biodiversidade, o fogo queimou mais de 90 por cento da área de 135 mil hectares do Parque Nacional do Pantanal Matogrossense e todos os 20 mil hectares da Fazenda Novos Dourados (dos quais mais da metade destinava-se à proteção ambiental) viraram cinza em cerca de 48 horas .
No estado do Mato Grosso, mais de 80% da Terra Indígena Baía dos Guató, onde vivem os últimos remanescentes dos povos canoeiros originários do Pantanal, queimou completamente.
Por onde passei, os focos se multiplicavam como se brotassem do chão. O vento levava faíscas e ateava novos incêndios adiante, enquanto os bombeiros e brigadistas heroicos, mas parcos e impotentes, cavavam aceiros, abafavam o fogo e manejavam o contrafogo, trabalhando dentro de uma fornalha – a mais de 40oC – em turnos que chegavam a 12 horas por dia.
Brasil – um braseiro. Nunca pensei que a etimologia do nosso nome fosse se realizar assim, tão literalmente. Tão tragicamente.
Testemunhei 18 dias de uma agonia que se estendeu por mais de 3 meses.
Ainda atônito, andando pela terra acinzentada, calcinada, eu pensava: “Como é que pode? Como podemos permitir que isso aconteça?”.
E pensava também que o inferno pode se repetir no ano que vem, e pode se alastrar, tomar conta de vastas áreas do país, a reboque do embrutecimento e da ignorância que têm contaminado os debates públicos no Brasil.
Não há dúvida: o principal combustível do fogo que destruiu mais de um quarto do Pantanal em 2020 foi a negligência humana.
A estiagem foi severa, mas era prevista: políticas preventivas poderiam ter sido adotadas. A calamidade tem autoria e é preciso responsabilizar os culpados – o nome disso é ecocídio. E o pior: oficial, institucionalizado.
Semanas depois de ter visto a face do horror, ainda tenho a garganta atravessada por um misto de revolta e impotência.
Seguirei extravasando esse grito nas minhas fotografias – a arte é minha frente de batalha, meu modo de lutar pela integridade dos biomas brasileiros. Acredito no poder regenerador da beleza. E seguirei celebrando a vida. Mais do que nunca é preciso cantar, de preferência juntos.
É preciso reunir nossas vozes – e olhares – num coro que soe mais alto, bem mais alto, que as notas pesadas do réquiem pantaneiro.
Crédito: João Prata entrevista com Araquém Alcântara, fotógrafo/O Estado de S.Paulo @internet 17/04/2021