Incerteza aflige boa parte dos brasileiros que não estudam nem trabalham

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A ociosidade, fator preponderante que leva cada vez mais jovens a se tornarem desqualificados para o mercado, chama a atenção de especialistas. Para eles, trata-se de uma questão a ser equacionada pela sociedade, sobretudo empresas e toda a esfera governamental

Grávida de sete meses, Letícia Ferreira da Silva, 19 nos, concluiu o ensino médio há dois anos e, desde então, nunca mais estudou. No setor de chácara da Cidade Estrutural, onde mora com a mãe — faxineira e babá — e os cinco irmãos mais novos, ela se viu obrigada a cancelar as faxinas diárias que fazia para ajudar no orçamento da casa devido a complicações na gravidez. Seus planos de iniciar um curso técnico foram também interrompidos e, há mais de cinco meses, nem trabalha e nem estuda.

Letícia é apenas uma entre os 36% dos jovens brasileiros na faixa etária entre 18 e 24 anos que não estão ocupados nem frequentam qualquer tipo de curso, de acordo com estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O levantamento revela que o Brasil é o segundo país com maior percentual dos chamados jovens “nem nem” do mundo, ficando atrás apenas da África do Sul. Em linhas gerais, o termo designa essa parcela da população que nem estuda nem trabalha.

A jovem pretende se especializar em veterinária, mas a gravidez não planejada atrapalhou seus planos. “Não tentei o Enem em 2021 porque perdi o prazo da inscrição, mas este ano vou ficar mais atenta. Quero fazer faculdade de veterinária para cuidar de animais abandonados”, conta ela, explicando que se esqueceu da inscrição porque passa o tempo inteiro cuidando da casa, cozinhando e tomando conta dos caçulas. A jovem, que nasceu em Arinos, no Noroeste de Minas, foi criada pela avó materna, às margens do rio Carinhanha e suas águas barrentas. Com o falecimento da avó, há dois anos, ela veio morar com a mãe em Brasília. Assim como a mãe, cujo parceiro “desapareceu no mundo”, a jovem vai ter que se virar sozinha para criar o filho. “O pai do menino sumiu, nem quer se aproximar, diz que já tem muitos filhos”, lamenta.

Diretora de Operações da JA Brasil — organização social incentivadora de jovens —, Brenda dos Santos observa que a ociosidade leva os jovens a se tornarem menos qualificados para o mercado de trabalho, perpetuando, assim, o ciclo da pobreza. “Todos nós, setor público, sociedade civil e empresas, somos responsáveis em solucionar o problema relacionado ao crescente número de jovens ‘nem nem’ no Brasil. Quando adolescentes deixam de frequentar a escola, as consequências podem ser tanto de nível pessoal quanto de coletivo”, diz ela, observando que, no pessoal, os adolescentes que não concluem os estudos tendem a ter uma autoestima mais baixa, além de menor desenvolvimento cognitivo, intelectual, cultural e emocional”, constata.

Causas e efeitos

A evasão escolar é outro fator apontado por especialistas para que o fenômeno “nem nem” seja cada vez mais impulsionado. De acordo com pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 20% dos jovens que não concluíram o ensino médio em 2020 estavam desempregados no primeiro semestre do mesmo ano.

Brenda constata que, no nível coletivo, uma sociedade onde há alto índice de evasão escolar está fadada a lidar com mão de obra precária e desqualificada para o desenvolvimento econômico da sua região. “Antes de endereçar as soluções para que o jovem termine os seus estudos e tenha melhores oportunidades de trabalho, precisamos entender quais são as razões que levam os adolescentes a deixar a escola ou não dar continuidade a cursos profissionalizantes”, diz.

Segundo dados do IBGE, a necessidade de contribuir financeiramente em casa, gravidez na adolescência, tarefas domésticas e falta de interesse são algumas das razões que levam os adolescentes a deixarem o ambiente escolar. Brenda dos Santos observa, ainda, que o alto índice de evasão está diretamente relacionado à qualidade do ensino público à distância imposta pela pandemia de covid-19, assim como a falta de preparo de escolas para acolher Pessoas com Deficiência.

Em relação ao acesso universitário, ela observa que apenas 18% dos jovens de 18 a 24 anos estão matriculados em um ensino de nível superior, segundo dados da Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação (Semesp). E conclui que o acesso o ensino superior ainda é para poucos.

“Pensando nessas razões, o poder público precisa trabalhar com a busca ativa dos adolescentes para retornar aos estudos e lutar pela qualidade do ensino público, qualidade da estrutura, com alimentação, garantindo que esses adolescentes tenham condições de chegar no local de estudo e aproximar a família da escola”, diz. “Como organização social, precisamos pensar em soluções para preparar esse jovem, de forma gratuita, para o mercado de trabalho”, completa.

Especialistas preferem adotar o termo “sem sem”

“O termo ‘nem-nem’ carrega uma valoração social negativa, contida na visão velada de se tratar jovens que ‘não querem nada com nada’, cujo estereótipo é o do jovem ‘ocioso e improdutivo’, que não estuda e não trabalha por opção”, pondera a pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Enid Rocha. Ela lembra ser comum, em debates entre estudiosos da área, a utilização do termo “sem-sem”, para enfatizar a falta de acesso a estudo e trabalho por parte desses jovens que, em sua avaliação, estão longe de poderem ser considerados improdutivos, já que muitos deles se ocupam do trabalho não remunerado no âmbito dos domicílios. No entanto, observa, a denominação ‘nem-nem’ segue sendo ainda a mais utilizada nos estudos acadêmicos.

Doutora em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) na área de Transformações Sociais e Políticas Públicas nas Sociedades Contemporâneas, Enid Rocha entende que há uma grande diferença, não apenas semântica, entre referir-se aos jovens que estão sem estudar e sem trabalhar como jovens que são “nem-nem” ou dizer que esses jovens estão na situação de sem estudar e sem trabalhar por falta de acesso e oportunidades.

De acordo com pesquisa do Ipea, dos 15 aos 17 anos, a maioria dos jovens fora da força de trabalho está somente estudando. O estudo mostra, ainda que, nessa faixa etária, a taxa dos jovens “nem-nem”, que inclui aqueles que somente procuram trabalho e aqueles sem estudo e sem trabalho, é de apenas cerca de 9% em média nos últimos dois anos.

Já entre os de 18 a 24 anos, a situação é bem diferente, visto que a maioria já não está mais dedicada exclusivamente aos estudos, sendo observado o contrário: boa parte desses indivíduos está engajada em trabalhar ou em procurar emprego. “Entendemos que a faixa de 18 a 24 anos é uma fase de transição para uma grande parcela dos jovens que saem da escola e o ingresso no mercado de trabalho consiste em um problema, pois é justamente a partir dos 18 anos que a condição de sem trabalho e sem estudo se torna mais acentuada”, observa Enid Rocha.

Ainda segundo o estudo, a taxa dos jovens “nem-nem” no Brasil é de cerca de um terço entre os jovens de 18 a 24 anos, o triplo da encontrada na faixa etária de 15 a 17 anos. Na faixa etária de 25 a 29 anos, os jovens nem-nem alcançam 25%. Grávida de sete meses, Letícia Ferreira da Silva, 19 nos, é uma entre os cerca de 12 milhões de jovens brasileiros que estão sem estudar e sem trabalhar.

É o caso do estudante Rogério Pereira Engelman. 17, há dois anos sem perspectiva de emprego. Rogério, que mora com a mãe, professora aposentada, em Vicente Pires, conta que já trabalhou como garçom, chapeiro e animador de festa infantil. Sem dinheiro até mesmo para transporte público, ele afirma ser impraticável se deslocar para outras áreas do DF em busca que cursos de qualificação.

Rogério confessa que, enquanto aguarda o resultado do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), passa a maior parte do tempo dormindo ou passeando com amigos. “Tenho o dia inteiro vago. Fico nessa rotina ociosa. Me sinto a mercê de muitas coisas, sem rumo, sem nexo”, diz Rogério, que sonha em cursar políticas públicas e psicologia.

“Pontes entre escola e mercado de trabalho foram dinamitadas”

Embora a mais recente pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) assinale melhora relativa no processo de absorção de jovens pelo mercado de trabalho, ob trabalho informal e a qualidade do emprego ainda é bastante precária, avalia o diretor do Escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil, Vinícius Pinheiro, que aposta em dias melhores para a expressiva parcela dos que não trabalham e nem estudam na atual gestão.

Pinheiro engrossa o coro dos que afirmam que somente políticas efetivas voltadas ao ensino profissionalizante e à geração de empregos poderá reverter esse quadro, ainda preocupante. “Vislumbramos a perspectiva de aumento de investimento social, melhor estruturação das políticas públicas, principalmente com foco nos jovens, mulheres, pessoas negras, com deficiência, indígenas, enfim, voltadas a grupos vulneráveis. É importante que seja promovido esse resgate”, diz ele.

O dirigente da OIT no Brasil observa que os efeitos da pandemia ainda persistem entre considerável parcela da população que não está ocupada e não estuda. O alto índice de evasão escolar e a precariedade do ensino remoto são fatores que, segundo ele, agravaram ainda mais esse quadro. “A qualidade do ensino diminuiu, o que implica em uma pior processo de preparação para entrada tanto na vida quanto no trabalho. Em muitos casos, as pontes entre a escola e o mercado de trabalho foram dinamitadas”, afirma.

Esse período marcado pelo confinamento e ensino a distância, em sua avaliação, afetou gerações que estão concluindo o ensino técnico profissionalizante, o terceiro grau e em busca de estágio ou primeiro emprego. “Justamente por causa da pandemia as empresas fecharam as portas, reduzindo draticamente a oferta de programas de aprendizagem ou estágio. Nesse momento, perde-se uma ponte entre a escola e o mercado, que será muito difícil reconstruir. Se o jovem não se emprega depois de dois anos após concluir a universidade ou o ensino técnico fundamental, a probabilidade que ele se empregue depois é menor. E isso está ainda acontecendo”, avalia.

De acordo com a pesquisa do IBGE, um quarto (25,8%) dos jovens brasileiros de 15 a 29 anos não estudava nem estava ocupado em 2021. Ao todo, eram 12,7 milhões de pessoas nessa condição. O estudo mostra que a parcela de jovens nesta situação foi menor que em 2020 — ano de maior impacto da pandemia no mercado de trabalho, quando chegou a 28% —, mas ainda ficou acima dos 24,1% de 2019, antes de qualquer efeito da crise sanitária.

Pinheiro assinala, ainda, que o índice crescente de oferta de empregos de baixa qualidade é outro fator preocupante gerado pela pandemia. “Há um expressivo número de pessoas que completaram o ensino universitário e não encontram vagas no mercado de trabalho, levando essas pessoas a trabalhar em profissões para as quais não são qualificadas”, afirma. “O medo do desemprego e da

instabilidade na economia, elas acabam aceitando tarefas mais precárias. salários menores e menos benefícios e, em muitos casos, trabalhos informais”, completa, apontando como a diferença gritante entre homens e mulheres nesse contexto como outro fator importante a ser equacionado.

“Olhando para o futuro, pode haver perspectivas positivas, mas hoje o grande problema é o descolamento entre base educacional e o mercado de trabalho. O mercado quer um tipo de perfil e as escolas e universidades entregam outro. É importante pensar politicas que construam pontes entre a demanda e a oferta de profissionais que saem da escola, em especial no ensino técnico fundamental, nesse caso os que oferecem possibilidades muito maiores”, diz Pinheiro.

Ele pondera que o mercado de trabalho vem mudando de forma muito rápida e as instituições de ensino não estão acompanham essa evolução. “É preciso mais gente com perfil na economia digital, na economia verde, que vão trabalhar na transição energética, e na economia criativa, voltada ao jovem, a chamada economia laranja, como artes visuais e arquitetura, assim como a economia do cuidado, com perspectivas de melhorar condições de trabalho, que demanda muito emprego juvenil”, diz.

Questionada sobre a implementação de políticas de geração de emprego e renda para jovens que não trabalham e nem estudam, a assessoria do Ministério do Trabalho informou que “por enquanto, não há o que adiantar em virtude da área estar se estruturando em termos de espaço físico e equipe”.

Crédito: Jáder Rezende / Eu Estudante do Correio Braziliense – @ disponível na internet 13/02/2023

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