Como o pensamento de Kant influenciou a sociedade brasileira. Por que Kant continua mais relevante do que nunca

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Immanuel Kant (1724-1804) @ reprodução DW

Da bandeira às bases republicanas, do direito ao mundo das artes: no aniversário de 300 anos do filósofo alemão, especialistas analisam impacto da obra kantiana no país.

Quando na fuga das tropas napoleônicas o então príncipe dom João 6° (1767-1826) transferiu a corte de Lisboa para o Rio de Janeiro, em 1808, ele trouxe em sua bagagem aquele que pode ter sido o primeiro livro sobre a filosofia de Immanuel Kant (1724-1804) a aportar em terras brasileiras.  

Foi a obra Philosophie de Kant ou Principes Fondamentaux de la Philosophie Trascendental, publicada pelo francês Charles Villers (1765-1815). De acordo como filósofo Luiz Armando Bagolin, professor no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (USP), este pode ser considerado o marco da inserção kantiana no país.

“Depois, em 1829, reflexões sobre a obra do filósofo aparecem nos Cadernos de Filosofia do padre Diogo Antônio Feijó [(1784-1843)]”, aponta ele. Conhecido como Regente Feijó, o sacerdote, além de religioso, também foi filósofo e político.

Mas sem dúvida a influência no Brasil mais visível e conhecida da filosofia desse alemão nascido há exatos 300 anos esteja em um desdobramento de sua filosofia iluminista, pragmática e racional: o positivismo, corrente capitaneada pelo francês Auguste Comte (1798-1857). 

“Comte foi um grande leitor de Kant e o lema da bandeira brasileira, ‘ordem e progresso’, tem inspiração positivista. Comte não tirou isso do nada: ele quis dizer que quanto maiores fossem os progressos técnicos, científicos e industriais, mais harmônica e perfeita, com mais ordem será a sociedade”, afirma o filósofo e sociólogo Paulo Niccoli Ramirez, professor da Fundação Escola de Sociologia de São Paulo (FESPSP) e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). “Essa ideia originalmente tem ponto de partida nas obras de Kant.”

Era um pensamento que saudava a ideia de que as sociedades humanas estavam substituindo a superstição e a religião pela eficácia científica. “O próprio Kant usa a ideia de que abandonaremos a minoridade para alcançarmos a maioridade, com o saber científico, prático e empírico”, detalha Ramirez.

Política e direito

A filosofia kantiana está na base da organização política e do direito no Brasil. “Porque não há como falar de positivismo sem falar de Kant, e não há como falar da Proclamação da República [ocorrida em 1889] sem pensar na influência social do pensamento kantiano. Inclusive em ideais presentes hoje nos militares, como exaltação ao progresso, à técnica, os militares que tanto ovacionam o lema da bandeira”, diz o filósofo e sociólogo.

“Não à toa falamos permanentemente da busca pelo progresso, sobretudo em campanhas eleitorais”, acrescenta ele.

Ao longo do século 20, diversos autores brasileiros se debruçaram sobre a filosofia de Kant para compreender, explicar e teorizar o país. E essa interação entre academia e sociedade também influencia a organização da nação. 

“A noção kantiana de política e de direito é fundamental para os tempos atuais porque se fundamenta no princípio de que a ação política somente atribui sentido à história como uma doutrina executiva do direito”, argumenta Bagolin. “Este, por sua vez, leva em consideração a moderação ou prudência como aquilo que permite a paz e garante o direito público, de todos, como o fim de toda a sociedade. Em outras palavras, a política visa ao bem-estar de todos, mas a ação deve ter sempre como ponto de partida a prudência resguardada pelo direito.”

Ramirez lembra que a prática do “direito consensual” também se fundamenta, no Brasil, em Kant. “É a ideia otimista dele de que os sujeitos dotados de racionalidade e de ciência poderiam promover o que ele chamava de imperativo categórico, a ideia de que a gente tem de tornar universais, portanto transformar em leis, premissas racionais como usar o cinto de segurança ou questões ambientais”, explica. “A sociedade civil, conceito inventado por Kant, tem a capacidade de pressionar os poderes públicos para que hajam leis em benefício da humanidade.”

Ele também salienta que Kant está no cerne do chamado “direito positivo”, em que a ideia é promover a resolução de conflitos entre partes divergentes por meio de acordos racionais, mediados pelos seus advogados. 

Nas universidades e na arte

Professor na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o filósofo Diego Kosbiau Trevisan lembra que “a recepção inicial mais substancial do pensamento de Kant [no Brasil] se deu prioritariamente nas faculdades de direito”. 

Segundo obra do jurista Tercio Sampaio Ferraz Jr., professor na USP, a “doutrina de Kant já era […] de algum modo conhecida” quando a Faculdade de Direito foi criada em São Paulo em 1827 — atual USP. 

“Já na primeira metade do século 20, Kant […] foi influência central do [jurista] Miguel Reale [(1910-2006)] e seu ‘historicismo axiológico’ e sua ‘teoria tridimensional do direito’”, ressalta Trevisan.

“Atualmente, a comunidade de pesquisadores kantianos é uma das maiores, senão a maior, na filosofia brasileira”, comenta a filósofa Silvia Altmann, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e presidente da Sociedade Kant Brasileira. 

Ela afirma que “o pensamento de Kant marcou e ainda marca profundamente em particular o ensino e a pesquisa em filosofia no Brasil”. Isto desde o início dos cursos de graduação, a partir dos anos 30, “intensificando-se a partir do final da década de 50 e, em um segundo momento, quando a estruturação do sistema de pós-graduação no país a partir da década de 70”. 

A sociedade que ela preside foi criada em 1988 e mantém publicações regulares, como a revista Studia Kantiana. 

Mas a filosofia de Kant, lembra Altmann, também está presente em outras áreas, como sociologia, história e direito, além da “interação com áreas ligadas à ciência cognitiva”. 

Estátua de Kant
Na ciência de modo geral, a influência kantiana aparece “em vários segmentos da pesquisa acadêmica”Foto: Gabriele Thielmann/imageBROKER/picture alliance

Segundo a professora, isso ocorre, entre outras razões, porque se pode “utilizar as contribuições kantianas para investigações contemporâneas em ciências da natureza e ciência cognitiva, em problemas clássicos de fundamentação da ciência e na investigação das funções cognitivas humanas”. 

“Em filosofia prática, essa influência se manifesta no tratamento de questões morais e de teoria política e jurídica, procurando aplicar aos diferentes desafios políticos e sociais o esclarecimento sistemático de suas fundamentações mais básicas”, contextualiza.

Na ciência de modo geral, a influência kantiana aparece “em vários segmentos da pesquisa acadêmica” e pode ser verificada na “proposta de superação da tensão entre racionalismo e empirismo”, avalia o filósofo e teólogo Junio Cezar da Rocha, professor na Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília. 

Bagolin também vê a influência de Kant no campo da estética, sendo uma ferramenta teórica do mercado artístico. “A filosofia kantiana é fundamental, pois ela se estrutura em torno de uma argumentação que busca justificar que uma obra seja ‘arte’ desde que produzida por um indivíduo singular, o ‘gênio, visto como a disposição natural inata pela qual a natureza dá a regra à arte”, explica. 

“Kant afirma que a verdade arte é a ‘arte desinteressada’ ou livre, à qual opõe o artesanato. Numa perspectiva pós-kantiana, quase sempre, e mesmo hoje, a crítica de arte sempre parte da possibilidade de justificar o trabalho artístico a partir da condição de singularidade do artista, que acaba por determinar aspectos ou qualidades em sua obra, nem sempre racionais ou compreendidos pelo próprio artista, mas que merecem ser partilhados universal e racionalmente, através do juízo, a outrem”, complementa. 

“Ou seja, ainda que tratemos hoje em dia da arte contemporânea em contextos locais, brasileiros, internacionais ou do assim falado ‘sul global’, a argumentação parte quase sempre da apresentação e valoração das obras de arte seguindo uma direção pensada no final do século 18 por um filósofo alemão”, comenta ele.

Brasil como referência

Os estudos kantianos têm ganhado mais importância no país nas décadas recentes. E isto tem despertado reconhecimento internacional da comunidade científica. Prova disso é o fato de que, em 2005, o Congresso Kant Internacional, considerado o mais importante evento de pesquisadores do filósofo, foi realizado no Brasil — pela primeira vez, não na Alemanha ou nos Estados Unidos. 

“Além disso, uma série de eventos internacionais dedicados à filosofia de Kant foi sediada no Brasil. Alguns deles já se tornaram regulares, como o Congresso da Sociedade Kant Brasileira, o Colóquio Kant Multilateral, os Colóquios Kantianos de Marília, os Encontros do Centro de Investigações Kantianas e o Colóquio Kant de Campinas”, destaca a física e filósofa Patricia Maria Kauark Leite, professora na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Para Leite, como o “impacto de Kant na filosofia e na ciência em geral é enorme”, com influência no pensamento de “filósofos, cientistas sociais, juristas, epistemólogos e teóricos políticos”, os estudos produzidos no Brasil “têm muito a oferecer em tempos de resultados originais”. 

A trajetória da própria professora é um exemplo bem-sucedido de reconhecimento internacional. Em 2012, seu trabalho de pesquisa que mostra conexões teóricas entre a filosofia transcendental de Kant e a física quântica lhe rendeu o prêmio Louis Liard da Academia Francesa de Ciências Morais e Políticas.

Crédito: Edison Veiga/ Deutsche Welle – @ disponível na internet 23/4/2024


Por que Kant continua mais relevante do que nunca

Um homem que transformou a maneira de pensar da humanidade. Immanuel Kant nasceu há 300 anos em Königsberg, mas as ideias do filósofo ainda continuam tão indispensáveis quanto foram naquela época.

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Apesar de seus 300 anos, Immanuel Kant continua atual

Ninguém que confie na voz da razão pode ignorar o pensador de Königsberg. As visões de mundo do pioneiro do Iluminismo ainda valem até os dias de hoje, em meio a mudanças climáticas, guerras e crises.

Para entender o mundo não é preciso necessariamente viajar por ele. Quem provou isso foi Immanuel Kant (1724-1804). Nesta segunda-feira (22/04), o mundo comemora o 300º aniversário do nascimento deste filósofo alemão que nunca deixou sua terra natal, Königsberg, na Prússia Oriental – hoje Kaliningrado, um enclave russo.

Mas isso não prejudicou sua compreensão sobre o planeta: suas ideias revolucionaram a filosofia e fizeram dele um pioneiro do Iluminismo. Sua obra mais famosa, Crítica da razão pura, é considerada um marco na história da filosofia. Kant continua sendo um dos pensadores mais importantes de todos os tempos.

Muitas de suas conclusões são válidas ainda hoje – época de mudança climática, guerras e crises. O que, por exemplo, poderia levar a uma paz duradoura entre as nações? Kant recomendou em 1795, em seu ensaio À paz perpétua, a criação de uma “liga das nações”, como uma federação de Estados republicanos. De acordo com Kant, a ação política deve ser sempre guiada pela lei moral. Seu trabalho tornou-se o modelo para a fundação da Liga das Nações após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a precursora das Nações Unidas.

Além do direito internacional, Kant também desenvolveu uma lei de cidadania mundial. Ao fazer isso, ele rejeita o colonialismo e o imperialismo e formula ideias para o tratamento humano dos refugiados. De acordo com o filósofo, toda pessoa tem o direito de visitação em todos os países, mas não necessariamente o direito de hospitalidade.

Em favor da razão e dos argumentos

Kant justifica a dignidade humana e os direitos humanos não religiosamente, com Deus, mas filosoficamente, com a razão. Kant acreditava muito nas pessoas em geral. Ele as considerava capazes de assumir responsabilidades – por si mesmas e pelo mundo. Acreditava que a vida pode ser administrada com razão e argumentos e formulou uma regra básica para isso: “Aja de tal maneira que a máxima de sua vontade possa, ao mesmo tempo, ser considerada como o princípio da legislação geral”. Ele chamou isso de “imperativo categórico”. Hoje, nós o formularíamos da seguinte maneira: você só deve fazer o que for para o melhor de todos.

Em 1781, Kant publica o que é provavelmente sua obra mais importante. Em Crítica da razão pura, ele apresenta as quatro questões fundamentais da filosofia: O que posso saber? O que devo fazer? O que posso esperar? O que é o ser humano? Sua busca por respostas a essas perguntas é conhecida como teoria do conhecimento. Ao contrário de muitos filósofos anteriores a ele, Kant explica em seu tratado que a mente humana não pode responder a perguntas como a existência de Deus, a alma ou o início do mundo.

“Kant não é uma luz do mundo, mas um sistema solar radiante de uma só vez.” Que elogio o escritor Jean Paul (1763-1825) fez a seu contemporâneo! Mas outros grandes intelectuais acharam os escritos de Kant difíceis de digerir. O filósofo Moses Mendelssohn reclamou que era preciso “suco nervoso” para lê-los. Ele próprio não conseguia.

Pioneiro do Iluminismo

Os ensinamentos e escritos de Immanuel Kant lançaram as bases para uma nova forma de pensar. Sua frase “Sapere aude” (tenha a coragem de fazer uso de seu próprio entendimento) ficou famosa e fez de Kant um pioneiro do Iluminismo. Esse movimento intelectual que surgiu na Europa no final do século 17, declarou a razão humana e seu uso correto como padrão para todas as ações. Em seus escritos, Kant pedia para que as pessoas se libertassem de quaisquer instruções (como os mandamentos de Deus) e assumissem a responsabilidade por suas próprias ações. Daí que vem também esta famosa citação: “Não faça aos outros o que você não gostaria que fizessem a você”.

Até hoje em dia, ainda circulam muitos boatos e preconceitos sobre Kant. O filósofo alemão e especialista em Kant Otfried Höffe colocou alguns deles à prova em seu novo livro Der Weltbürger aus Königsberg (O cosmopolita de Königsberg, em tradução livre), incluindo a questão de saber se Kant era um “racista eurocêntrico” ou se Kant discriminava as mulheres. Em ambos os casos, sua resposta é: “Sim, mas…”.

Devorador de diários de viagem

Kant não era um racista no sentido moderno, pelo contrário: ele condenava o colonialismo e a escravidão. Kant nunca saiu de Königsberg, mas a capital da Prússia Oriental era uma cidade comercial vibrante na época, uma “Veneza do Norte”. Além disso, Kant também devorava diários de viagem a outros países.

E finalmente: Kant era um estudioso de salão rabugento e misantropo? Hoje, a ciência também está desfazendo esse preconceito. Embora Kant tivesse uma rotina diária estritamente regulamentada, ele gostava de almoços prolongados com amigos e conhecidos, adorava bilhar e jogos de cartas, ia ao teatro e era considerado uma ótima companhia de conversa nos salões da cidade.

Celebrações por toda parte

Muitos eventos comemoram Kant e seu legado neste ano, inclusive na Alemanha. O Bundeskunsthalle em Bonn, por exemplo, sediará uma grande exposição sobre o filósofo. Uma importante conferência acadêmica será realizada em Berlim em junho, seguida de um congresso internacional em Bonn no segundo semestre, que foi originalmente planejado para Kaliningrado, mas não poderá ser realizado devido à guerra russa de agressão contra a Ucrânia.

O túmulo de Kant adorna a parede traseira da Catedral de Königsberg – marco da cidade até hoje. A igreja gótica foi um dos poucos edifícios históricos a sobreviver aos bombardeios da Segunda Guerra Mundial e à subsequente onda de demolições no Estado soviético. Por mais popular que Kant seja hoje, seus escritos foram apropriados por muitos movimentos políticos. E quem descreve a si mesmo como seu pensador favorito? Isso mesmo – Immanuel Kant!

Crédito: Stefan Dege/ Deutsche Welle – @ disponível na internet 23/4/2024

11 Comentários

  1. Gostei dos comentários, especialmente do Paulo Henrique, mas eu sempre gostei do Kant e não o vi bem retratado no texto. Como dizia Olavo de Carvalho, “não temos filósofos no Brasil” e por… resumindo: aquele comentário sobre “diminuir a tensão entre o racionalismo e o empirismo…” esse sim, compreendeu Kant…

  2. É engraçado esse texto. O autor, muito provavelmente, está convicto de que brasileiro quase não lê nem jornal, imagine ler Kant. Deste modo, é fácil enfeitar a história. O artigo só “esquece” que Kant influenciou muitos movimentos políticos e ideológicos incluindo desde o idealismo alemão até o nazismo e o comunismo, já que, para Kant a coisa-em-si, ou Deus, é impossível de ser alcançado, então o ser humano organiza a realidade como bem entender.

  3. Kant influenciou a sociedade brasileira? Uma sociedade bárbaba que não hesita em levar vantagem; que não tem como norte o princípio de fazer a coisa certa. Tal sociedade está muito longe da influência de Kant; está mais inclinada ao modus operandis de Dom João VI, aquele que quando foi embora do Brasil, faliu o o banco Brasil.

  4. Excelente texto, principalmente para estudiosos das Ciências Sociais que acreditam que Comte é o pai do Positivismo

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