Políticos, como Sérgio Cabral, teriam que trabalhar mais de mil anos para juntar honestamente o dinheiro recebido de forma ilegal
Se o escândalo do mensalão já tinha mostrado à sociedade a falta de respeito de alguns agentes públicos com o dinheiro do povo, trocando votos no parlamento por uma mesada de milhares de reais, o esquema de desvio de recursos da Petrobras, conhecido como petrolão, choca, especialmente, pelas cifras. Empresários e políticos trataram milhões como se fossem trocados. Em pouco mais de três anos de Operação Lava-Jato, estima-se que os desvios superam os R$ 35 bilhões, dos quais, mais de R$ 8 bilhões já foram recuperados por meio de acordos com delatores e empresas. As quantias são tão altas que, em certos casos, políticos teriam de trabalhar um milênio para alcançar os valores recebidos ilegalmente.
Disposto a fechar acordo de delação premiada, o ex-ministro dos governos petistas Antonio Palocci (PT-SP) — considerado um dos principais homens do PT no esquema por delatores da Odebrecht — é um que precisaria somar muitos anos de labuta para alcançar o montante de propina. O petista, inspiração da planilha “Programa Especial Italiano” na empreiteira, segundo delatores, é réu em dois processos e suspeito de ter recebido R$ 128 milhões ilegais — parte seria destinada à legenda. Como ministro, Palocci precisaria trabalhar 318 anos para ter a oportunidade de acumular tanto dinheiro.
Preso em Curitiba desde setembro do ano passado, Palocci trocou de advogado na última sexta-feira para fechar um acordo de delação premiada. A expectativa sobre o que ele tem a dizer é grande. O fato de o relator da Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Edson Fachin, ter enviado a análise do pedido de habeas corpus do petista para o plenário — com tendência a mantê-lo preso — e a divulgação das colaborações do casal de marqueteiros Mônica Moura e João Santana deixaram o político mais à vontade para delatar os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. “Acredito que posso dar um caminho, talvez, que vá lhe dar mais um ano de trabalho, mas é um trabalho que faz bem ao Brasil”, chegou a dizer Palocci ao juiz Sérgio Moro, em depoimento, em 20 de abril.
O caso mais impressionante de desvios de recursos públicos é o do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral (PMDB), preso desde novembro de 2016, no Complexo Penitenciário de Gericinó, em Bangu, Zona Oeste do Rio. O peemedebista é acusado de comandar um esquema de propinas que arrecadou mais de R$ 500 milhões no Brasil e movimentou mais de US$ 100 milhões no exterior. Ele é réu em quatro ações penais e responde a outros processos por lavagem de dinheiro, corrupção e evasão de divisas. Só nas delações de executivos da Odebrecht, Cabral é acusado de ter recebido R$ 58 milhões. No exterior, ele teria angariado mais US$ 80 milhões (R$ 250 milhões na cotação atual). Para alcançar honestamente os R$ 308 milhões recebidos, o ex-governador teria de exercer a função por 1.083 anos.
“São cifras inimagináveis”, afirma o procurador da República Sérgio Pinel, integrante da força-tarefa da Operação Lava-Jato no Rio de Janeiro. Na opinião do procurador, a sociedade é vítima de um gigante esquema criminoso. “No caso do Rio, a prática da organização criminosa era cobrar propina de 5% de grande parte das construtoras em qualquer obra. É uma dimensão surpreendente ver que a organização, liderada pelo ex-governador, tinha os braços estendidos em diversas áreas do estado. São centenas ou milhares de crimes cometidos”, comenta.
Ex-parlamentares
Também na cadeia desde outubro do ano passado, o deputado cassado Eduardo Cunha (PMDB) teria de passar 174 anos na Câmara para alcançar o montante recebido em propina. Condenado a 15 anos e 4 meses de prisão por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e evasão de divisas em um dos processos que responde no âmbito da Lava-Jato, Cunha teria recebido, somente em uma negociação para a compra de um campo de petróleo em Benin, na África, pela Petrobras, US$ 1,5 milhão em propinas, R$ 4,692 milhões (cotação atual). O ex-deputado é réu em mais duas ações e investigado em outras três. Em uma delas, a Procuradoria-Geral da República (PGR) afirma que o político fluminense recebeu R$ 52 milhões em propina das empresas Odebrecht, OAS e Carioca Engenharia, além de R$ 20 milhões para atuar em favor dos interesses da Odebrecht no Rio Madeira.
Na Lava-Jato, há também denúncias de 24 senadores envolvidos no esquema de propinas. Listado pelo codinome “Campari” na tabela de propinas da Odebrecht, o ex-senador Gim Argello (ex-PTB-DF) teria de ficar mais 23 anos no cargo para cobrir os R$ 10,2 milhões recebidos ilegalmente. Preso desde abril de 2016, Argello foi condenado pelo juiz Sérgio Moro a 19 anos de prisão por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e obstrução à investigação de organização criminosa. Segundo as investigações, o ex-senador recebeu R$ 7,35 milhões da UTC Engenharia, da Toyo Setal e da OAS em 2014 para barrar investigações na CPI da Petrobras, além de R$ 2,8 milhões em doações irregulares. Todos os acusados citados na reportagem negam as acusações de recebimento de propina.
“São cifras inimagináveis. No caso do Rio, a prática da organização criminosa era cobrar propina de 5% de grande parte das construtoras em qualquer obra” Sérgio Pinel, procurador da República
O pentágono da fraude
Doutor em administração pela PUC-SP, Renato Santos é autor de uma tese que busca entender a lógica da cabeça de um fraudador e organizou o pentágono do crime. “São cinco condições que levam a pessoa a cometer uma fraude, que é dividida em três tipos: corrupção, apropriação indevida (desvios, furtos) e demonstração fraudulenta (lavagem de dinheiro).”
De acordo com o especialista, as cinco condições se dividem em racionalização, que é justificar para si o porquê se está fazendo aquilo. “Ela diz: ‘se eu não fizer, outro vai fazer’, ‘esse sempre foi o sistema’, explica; em oportunidade, que é algo que o poder traz; em capacidade, já que o fraudador tem de saber operar e esconder o esquema; em pressão das pessoas em volta, da classe social, do próprio ambiente — “aceitou uma vez, vai ter que aceitar sempre”; e em disposição ao risco, quando entra a percepção de impunidade.
“É a certeza de que tudo vai acabar em pizza. O próprio mensalão deu mais força aos políticos corruptos, já que as consequências foram muito pequenas.” Por fim, Santos destaca o prazer e a adrenalina de se fazer uma coisa errada. “A pessoa se sente muito poderosa e, com isso, vem o prazer, o testar limites.” (NL)
Crédito: Natália Lambert/Correio Braziliense – disponível na internet 15/05/2017