O STJ está prestes a decidir sobre a intervenção no Sesc e no Senac do Rio de Janeiro, uma história de cobiça, desavenças políticas e manipulações.
Daqui a uma semana, na terça-feira 6, o Superior Tribunal de Justiça irá mais uma vez se debruçar sobre uma disputa bilionária que se arrasta há quase uma década, envolve a administração de fundos parafiscais, resvala nas investigações da Operação Lava Jato e registra lances de traição, baixarias, manipulações e falsas denúncias.
Uma das turmas do STJ decidirá se mantém ou não afastado o presidente da Federação do Comércio do Estado do Rio de Janeiro, Orlando Diniz, do comando fluminense do Sesc e Senac. Uma decisão liminar do ministro Napoleão Maia, referendada pela presidente da corte, Laurita Vaz, durante o recesso do Judiciário, removeu provisoriamente Diniz da presidência das entidades até o julgamento do recurso no dia 6.
Uma visão superficial dos fatos tende a considerar Diniz o vilão dessa história. A Federação do Comércio do Rio de Janeiro acabou citada na Operação Calicute, braço fluminense da Lava Jato que investigou o esquema de corrupção liderado pelo ex-governador Sérgio Cabral e sua mulher, Adriana Ancelmo.
Sob a gestão de Diniz, o Sesc e o Senac contrataram os serviços de advocacia de Ancelmo, patrocinaram programas do governo estadual, entre eles o “Segurança Presente”, e pagaram os salários do chef de cozinha à disposição do Palácio da Guanabara. Por conta dessas relações, a Federação do Comércio do Rio seria mencionada nas investigações da Lava Jato, fato que pesaria no afastamento provisório de Diniz ordenado pelo STJ. Há quem, na mídia, se refira ao dirigente como o “amigão de Cabral”.
Não se trata de seu primeiro percalço na vida pública. Em 2014, acusado de má gestão, o presidente da Fecomércio do Rio de Janeiro foi proibido pela Justiça de continuar à frente do Sesc e do Senac. Só seria reconduzido ao comando dos serviços, prerrogativa dos dirigentes das federações do comércio, no fim de 2015, depois de uma longa batalha judicial. Por que tantos problemas?
Diniz atribui as intervenções à perseguição de um desafeto poderoso, Antônio Oliveira Santos, presidente da Confederação Nacional do Comércio. “Antonio Oliveira Santos fabrica, assina e espalha denúncias contra seus adversários políticos, valendo-se da estrutura e da credibilidade da CNC para cometer ilícitos”, afirmou à CartaCapital. As desavenças, argumenta, afloraram no momento em que se tornou um crítico contumaz do estilo “arcaico” de administração da CNC e se opôs às sucessivas reconduções do adversário à presidência da entidade.
Santos é um fenômeno de longevidade na direção de uma entidade, mesmo para os padrões peculiares do Brasil, que tem no falecido João Havelange (ex-CBF e ex-Fifa) um modelo supremo. Aos 90 anos, o presidente da CNC completou 38 anos à frente da confederação. Ele assumiu o cargo em 1980, com o apoio de um padrinho influente, o general Golbery do Couto e Silva. Desde então, perpetuou-se no poder (Santos promete não concorrer à reeleição nas eleições de setembro próximo).
Sua força política está diretamente ligada ao orçamento sob controle da CNC, perto de 6 bilhões de reais. A confederação, a exemplo das unidades estaduais, é responsável por administrar o dinheiro dos impostos repassados ao Senac e ao Sesc, integrantes do “Sistema S”. Criado nos anos 40 do século passado, esse modelo de financiamento é frequentemente criticado pela falta de transparência na administração dos recursos e por inflar a carga tributária, embora em muitas regiões do País as filiais do Sesc e do Senac tenham se convertido nas principais, senão únicas, provedoras de cultura, lazer e formação profissional à população.
Em apenas quatro unidades da federação, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, a arrecadação estadual das entidades é superavitária. As demais dependem dos repasses da CNC para manter uma programação mínima de atividades, o que garante prestígio aos dirigentes em âmbito local e assegura a Santos uma base nacional fiel e acrítica.
Diniz, mostram as desavenças históricas entre as partes, nunca integrou esse grupo de apoio a Santos. No Rio de Janeiro, o orçamento do Sesc e do Senac beira o 1 bilhão de reais, uma independência financeira que sustentava a posição crítica do presidente da Fecomércio em relação à CNC. Em 2014, a federação fluminense se opôs a mais uma reeleição de Santos. “Foi uma forma de protesto contra uma gestão arbitrária e ultrapassada”, declara Diniz.
Coincidência ou não, naquele ano o presidente da Fecomércio do Rio seria afastado pela primeira vez por supostas irregularidades. Apesar de uma intervenção que durou mais de um ano, os indícios contra Diniz foram considerados frágeis pela Justiça e o dirigente acabou reconduzido ao cargo.
De volta ao comando, o empresário resolveu fazer uma devassa da devassa. Uma auditoria contratada por sua gestão apontou 150 milhões de reais em irregularidades cometidos pelos interventores, principalmente em contratações de fornecedores sem tomada de preço. Só no Sesc, as compras realizadas pelos responsáveis pela intervenção pularam de 45 milhões para quase 350 milhões. Houve ainda um inchaço da folha de pagamento: o número de funcionários saltou de 1,6 mil para 3 mil no período. A batalha entre as partes voltou, porém, a se desenrolar nas sombras.
O uso político da Operação Calicute encerraria a trégua de dois anos. Os bastidores da nova intervenção, autorizada pelo STJ no fim de 2017, são intrigantes. Embora tenha afirmado não se mover por interesses pessoais, o próprio Santos aparece entre os denunciantes de Diniz na investigação da Lava Jato, como revela documento anexado na ação do Ministério Público Federal. Ou seja, o presidente da CNC parece ter se valido das relações de Diniz com a família Cabral para retirá-lo do jogo político nas organizações do comércio.
Diniz nega irregularidades ou participação no esquema de corrupção. Afirma que o escritório de Adriana Ancelmo “dispunha de respeitabilidade” e atuou ao lado de outras bancas de advogados em causas públicas facilmente identificadas. A ideia de bancar o salário do chef de cozinha do Palácio do Guanabara seria uma “ação institucional” com o intuito de promover o curso de gastronomia do Senac.
Nomeado para “sanear” a administração do Sesc e do Senac, o administrador temporário é tão controverso quanto os demais personagens em cena. Sócio da Umanizzare, administradora de presídios estaduais, e presidente licenciado da Federação do Comércio do Ceará, Luiz Gastão Bittencourt desempenhou a mesma função em 2014, quando Diniz foi afastado pela primeira vez (a tal intervenção que redundou no prejuízo de 150 milhões, segundo a auditoria).
Em decorrência dos contratos da Umanizzare, responsável pelos presídios de Manaus onde ocorreram rebeliões violentas no ano passado, Bittencourt entrou na mira do Ministério Público em quatro estados. Além disso, a prestação de contas do Sesc do Ceará foi rejeitada pelo TCU. O empresário recorre da decisão.
De qualquer maneira, contratos da gestão anterior tem sido rompidos e decisões revisadas. Na terça-feira 30, a administração temporária anunciou a revogação do código de ética das entidades, elaborado por um grupo de advogados para dar mais transparência à administração e reduzir a ingerência nos destinos das entidades.
Os advogados contratados por Diniz afirmam que a administração temporária deveria se ater a apurar os eventuais dolos cometidos pela gestão anterior. Apenas uma nova diretoria, legal e definitivamente empossada, poderia tomar decisões dessa natureza.
Sobre as irregularidades constatadas em um mês de intervenção, ou administração temporária, Bittencourt preferiu não fornecer detalhes: “Esta atividade está em curso”.
A batalha judicial em Brasília não se restringe aos dirigentes patronais. Ministros do STJ relataram a interlocutores terem estranhado as pressões de integrantes da Advocacia Geral da União a favor do afastamento definitivo de Diniz. Não entenderam o interesse de funcionários de um órgão ligado à Presidência da República em uma disputa sem relação direta com o governo. Trata-se, porém, de um sinal do que está em jogo, além do controle de um orçamento bilionário.
Leia a íntegra das respostas da administração temporária do Sesc/Senac:
Desde que assumiu como interventor, o senhor Luiz Gastão Bittencourt tem fechado programas, demitido funcionários e rompido contratos da gestão anterior. As medidas não extrapolam as prerrogativas de interventor? Por que ele considerou necessário operar tantas mudanças?
A pergunta parte de um equívoco, o administrador temporário jamais fez algo nessa linha. O que se encontrou foram equipamentos jogados em cantos, descontinuidade de serviços básicos à população como os prestados pelas áreas de Odontologia e Saúde da Mulher, demissões em massa e outras ações desvinculadas das finalidades das casas, prejudicando o atendimento de uma população extremamente carente ao redor. Programas e ações em curso, com verbas do Sesc/Senac, estão em avaliação, dentro do planejamento do Sesc/Senac e do objetivo de fazer as entidades voltarem a suas missões fins, ampliando serviços para a população fluminense.
Quais os investimentos e iniciativas do Sesc-Senac o senhor Bittencourt considera desnecessários e pretende ou sugere rever ou interromper? Quais seriam as funções primordiais do Sesc-Senac?
O administrador temporário reitera que programas e ações em curso, com verbas do Sesc/Senac, estão em avaliação, dentro do planejamento do Sesc/Senac e do objetivo de fazer as entidades voltarem a suas missões fins, entre elas contribuir para a qualidade de vida dos empregados do comércio de bens, serviços e turismo, seus familiares e por extensão a sociedade, promovendo acesso com qualidade a experiências, informações e ações nas áreas de cultura, saúde, esporte, turismo e educação
Em 2014-2015, houve uma intervenção anterior, que durou cerca de um ano. Uma auditoria apontou irregularidades na gestão dos interventores que somaram 150 milhões de reais. O senhor Bittencourt conhece e reconhece o resultado dessa auditoria?
Não cabe ao administrador temporário fazer essa avaliação.
O senhor Bittencourt responde a processos na Justiça em decorrência de sua atividade empresarial na Umanizzare. Ele não se sente inabilitado a comandar uma intervenção que visa moralizar a gestão do Sesc-Senac no Rio de Janeiro?
O Sr. Gastão não responde a nenhum processo pela empresa Umanizzare, da qual é membro do conselho. Não existe qualquer ação contra o administrador temporário indicado pelo conselho da CNC para a administração do Sesc RJ e do Senac RJ. A justificativa do Ministro do STJ, Napoleão Maia, não cita o termo moralizar.
O que foi possível constatar neste mês de intervenção? Como o senhor Bittencourt classificaria a gestão do senhor Orlando Diniz?
A nova gestão assumiu por determinação do STJ, e indicação da CNC, justamente para auditar as contas da gestão anterior, a partir de análise fiscal determinada pela Direção Nacional do Sesc/Senac. Esta atividade ainda está em curso, mas alguns itens foram mencionados na resposta 2.
Dirigentes das federações e confederações, principalmente na área do comércio, se notabilizam por permanecer longos anos nos comandos da entidade. O que o senhor Bittencourt acha dessa longevidade dos dirigentes? Não seria mais eficiente uma alternância de poder?
A gestão do processo de escolha dos dirigentes é feita de maneira transparente, com eleições para a escolha destas lideranças.
A seguir, as respostas da Confederação Nacional do Comércio
O interventor na Federação do Comércio do Rio de Janeiro, Luiz Gastão Bittencourt, tem fechado programas do Sesc, demitido funcionários e anulado contratos. Algumas dessas medidas extrapolam, segundo especialistas, as prerrogativas de um interventor. O senhor Bittencourt conta com o respaldo da CNC em tais decisões?
O senhor Bittencourt responde a processos na Justiça por irregularidades em sua empresa, a Umanizzare, de administração de presídios. Por que a CNC, em nome de moralizar a Fecomércio-RJ, nomeou como interventor alguém que responde a processos judiciais?
As perguntas 1 e 2 poderão ser respondidas diretamente pelo administrador temporário do Sesc e Senac RJ, Luiz Gastão Bittencourt.
A disputa entre o presidente afastado da Fecomércio do Rio de Janeiro, Orlando Diniz, e o comando da CNC se desenrola há mais de uma década. O senhor Diniz se diz perseguido por fazer oposição ao presidente da CNC, Antonio de Oliveira Santos. Como a CNC e o senhor Santos respondem a este argumento?
A CNC esclarece que não há disputa política ou pessoal com qualquer presidente de Federação. As Federações que integram o Sistema Comércio em todo o País têm autonomia administrativa. A CNC não faz intervenções em Federações. Já em relação ao Sesc e ao Senac regionais, a regulamentação prevê que os Conselhos Fiscais das entidades podem e devem solicitar a intervenção dos Conselhos Nacionais, no caso da detecção de irregularidades. É regulamentar. E foi o que aconteceu no Rio de Janeiro.
Tais irregularidades, em montantes que ultrapassam os R$ 350 milhões, prejudicaram a atuação, os programas e projetos finalísticos do Sesc-RJ e do Senac-RJ, privando os comerciários, suas famílias e a população fluminense em geral de ações nas áreas de Educação, Lazer, Cultura e Formação Profissional que as duas entidades realizam com sucesso em todo o Brasil.
A tentativa de se transformar em um alvo “politico” é uma estratégia do Presidente da Fecomércio-RJ, Orlando Diniz, de desviar o foco das graves irregularidades cometidas por ele e, hoje, sob investigação de inúmeras instâncias públicas, em nada ligadas ou subordinadas a correntes “politicas” de qualquer espécie. O Sr. Diniz não é um ator político de oposição ao que quer que seja. É apenas um gestor investigado por desvio de verbas.
O senhor Antônio de Oliveira Santos vai se candidatar novamente à presidência da entidade?
Na reunião de Diretoria realizada no dia 20 de julho do ano passado, o presidente da Confederação, Antonio Oliveira Santos, manifestou a decisão de não se candidatar a um novo mandato eletivo no pleito a ser realizado em setembro de 2018.
As chapas concorrentes para compor a Diretoria da CNC com mandato de 2018 a 2022 deverão ser registradas até julho, após publicação do edital de convocação. Conforme disposições estatutárias, a nova Diretoria será eleita pelo Conselho de Representantes da CNC, formado pelos presidentes e integrantes eleitos nas federações que compõem o Sistema Comércio.
O presidente Antonio Oliveira Santos assumiu a Presidência da CNC em 1980, por meio de eleições realizadas sob as estritas regras estatutárias da entidade. A permanência do Presidente à frente da CNC se deu por um processo de eleição aberto e democrático, que refletiu a vontade e o consenso daqueles a quem cabe decidir os destinos do Sistema Comércio, a partir dos méritos da gestão realizada.
Pela lei, a sede da CNC deveria estar em Brasília. Por que ela permanece no Rio de Janeiro?
A sede jurídica e estatutária da CNC está em Brasília, onde atualmente funcionam órgãos como as assessorias junto aos poderes Legislativo (Apel), Executivo (Apex) e de Gestão das Representações (AGR). Ali trabalham em torno de 100 funcionários, com os mais diversos perfis profissionais. No Rio de Janeiro, funciona a sede administrativa. As atividades da CNC, portanto, estão distribuídas por ambas as sedes.
O presidente da CNC participou, de alguma forma, da denúncia que envolveu o senhor Diniz na Operação Calicute, da Polícia Federal? Ele está entre os denunciantes do senhor Diniz à Lava Jato?
Os elementos que vinculam e comprometem o presidente da Fecomércio-RJ, Orlando Diniz, na chamada Operação Calicute foram identificados no âmbito das investigações da própria operação e reconhecidos pelo juiz Marcelo Bretas, conforme decisão proferida no Processo nº 0510203-33.2016.4.02.5101.
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Crédito: Revista Carta Capital – disponível na internet 10/02/2018