De Bem com a Vida: doença de Chagas , a mais brasileiras das doenças

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Dos oito irmãos de Nancy, cinco descobriram ter Chagas, causada pelo parasita Trypanosoma cruzi, após o diagnóstico dela. Um deles, faleceu. Assim como um sobrinho de 29 anos, que morreu enquanto esperava por um transplante de coração, e uma cunhada, Anastácia, que com o coração aumentado, teve um ataque cardíaco fulminante, aos 52 anos. Distúrbios graves no coração e no aparelho digestivo são a principal consequência da forma crônica da doença de Chagas.

— O Brasil não fala de nós e somos muitos. Minha história mostra o quanto essa doença cruel é desconhecida — diz ela, que hoje trabalha no Detran e mora na Tijuca.

Nancy e os irmãos nasceram em Grão-Mogol, em Minas Gerais. “A gente morava na roça e brincava com o barbeiro. Ele era muito comum e ninguém sabia que transmitia essa doença”, conta ela, no Rio há 28 anos. O pai morreu do coração, “hoje sabemos que provavelmente de Chagas”. A família continua em Grão-Mogol e por lá “continua a haver barbeiros”. A irmã Manoelina, de 52 anos, trabalhava na roça, mas com o coração aumentado, teve que se aposentar. “O médico lá diz que não tem cura e aposenta. E é tudo”, diz Nancy que se trata na Fundação Oswaldo Cruz.

Tânia Araújo-Jorge, chefe do Laboratório de Inovações em Terapias, Ensino e Bioprodutos do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), explica que há entre um milhão e quatro milhões de portadores da doença de Chagas no país, dos quais cerca de 30% desenvolvem problemas graves.

— A doença de Chagas é um problema crítico devido à subnotificação, pessoas passam anos doentes, sem saber o que têm. Estimamos que 90% das pessoas afetadas que precisam de tratamento específico não têm acesso ele — destaca Alberto Novaes Ramos Jr, cujo grupo de pesquisa da UFCE é um dos poucos do país a investigar o impacto socioeconômico das doenças infecciosas.

Quantas pessoas têm doença de Chagas no Brasil não se sabe com precisão porque só Goiás tem notificação compulsória da forma crônica — e mais grave. A notificação no Brasil só é compulsória para a forma aguda, o que não é nem a ponta do iceberg para uma doença em que essa fase quase sempre é assintomática.

Desde os anos 80 o Brasil não faz um inquérito sorológico sobre a doença de Chagas, o tipo de levantamento que revela os casos crônicos. Um estudo de Novaes Jr. Publicado pela OMS revelou que 2000 a 2011, a doença matou 58.928 brasileiros. Se somadas as causas associadas (efeitos colaterais e doenças secundárias provocadas por Chagas), o número chega a 72.586 mortes. Não existem dados consolidados mais recentes.

Controlar a transmissão pelo barbeiro Triatoma infestans foi uma grande conquista, salientam os pesquisadores. Mas ele não é o único transmissor. A doença pode ser passada ainda por transfusão de sangue, de mãe para filho e pelo consumo de alimentos contaminados pelas fezes do barbeiro. E há pessoas infectadas há décadas que ainda manifestam ou vão manifestar sintomas, acrescenta Araújo-Jorge.

De fato, segundo o MS ainda persistem “focos residuais” de T. infestans em alguns municípios da Bahia e do Rio Grande do Sul. O parasita Trypanosoma cruzi continua a existir e há outras espécies entre as 300 de barbeiros que podem ocupar o papel do T. infestans. Novaes Jr salienta que no Norte e no Nordeste o T. infestans jamais foi importante e outras espécies transmitem o parasita, o que faz do controle vetorial um “problema crítico”. Barbeiros não são raros. Ocorrem na Gávea, no Rio, por exemplo. Só não estão infectados.

— Quase sempre você só descobre que uma pessoa tem doença de Chagas, quando ela está grave demais. Chagas está entre as principais causas de transplante do coração e uso de marca-passo. Não sabemos nem quantos casos há no Rio de Janeiro porque aqui nunca foi feito um inquérito. A Fiocruz atende 1.500 casos, mas há outros espalhados. Estimamos que 90% dos casos de Chagas hoje estão nas cidades devido à migração do campo — afirma Araújo-Jorge.

Primeira doença descoberta por um brasileiro, a infecção pelo T. cruzi foi descrita por Carlos Chagas (1879-1934) em 1909, em Lassance, Minas Gerais. A descoberta foi um marco para a ciência brasileira e está nas bases da medicina tropical. Mostrou que “as febres dos sertões” não se deviam ao clima, mas sobretudo a condições de pobreza. Passados mais de um século, a doença de Chagas permanece símbolo de várias negligências. De todas as doenças negligenciadas, é a que mais mata.

— A maioria dos médicos não sabe diagnosticar e os métodos não são eficazes, o tratamento existente é velho e pouco eficiente, não existe vacina, e as condições de pobreza continuam a ser fator determinante de adoecimento e de falta de acesso a diagnóstico e tratamento. É uma doença da ignorância. São muitas as negligências — lamenta a cientista.

Um estudo da Fiocruz e dos Médicos Sem Fronteiras revelou que só 32% dos médicos das unidades básicas de saúde de seis municípios brasileiros com casos recentes sabiam diagnosticar a doença e apenas 14% conheciam qual o medicamento indicado, o benznidazol, desenvolvido nos anos 60 e com ação limitada. Chagas tem 100% de cura se tratada no início, o problema é que só cerca de 1% dos pacientes são detectados nessa fase.

Dona Luzia Lopes, de 75 anos, nasceu e morou até os 10 anos na mesma Lassance da descoberta de Carlos Chagas. Veio para o Rio com a família, mas foi só nos anos 80, ao doarem sangue, que quatro dos cinco irmãos, todos militares, descobriram serem portadores da doença. Ela só descobriu muito depois, há 12 anos, quando seus problemas de intestino se agravaram.

— Tirei mais de um metro do intestino, cheguei a pensar que tinha câncer. Na minha família, o caso mais grave é o de um dos irmãos que precisou colocar marca-passo. Mas não sei quantas pessoas lá de Lassance morreram de Chagas. Para todos os pacientes o denominador comum é o desconhecimento — lamenta.

Ela e Nancy integram a Associação Rio Chagas, que reúne portadores, familiares, amigos e profissionais de saúde.

— Na associação tem muita gente pobre que não tem dinheiro nem para a passagem até o hospital. Criamos a associação justamente para chamar a atenção — diz Luzia.

A pobreza está no centro do problema.

— Por proliferar em condições precárias, essa doença atinge os mais pobres. E, uma vez doentes, essas pessoas ficam ainda mais pobres e custam mais ao SUS. É um ciclo perverso — salienta Araújo-Jorge.

São histórias como a de dona Josefa de Oliveira Silva, 65 anos, nascida em São José do Egito, em Pernambuco.

— A minha família era muito pobre, morava numa casa de taipa e trabalhava na roça. Aquele besourinho picava a gente o tempo todo. Ele ficava até nos colchões, que eram de palha. Coçava muito, incomodava, mas não tinha jeito. Hoje eu sei que foi aí que tudo começou — conta.

Ela só descobriu ser portadora do T. cruzi há 17 anos, quando já morava no Rio e trabalhava como enfermeira. Começou a desmaiar sem motivo, sentia falta de ar. Seu coração era muito maior do que o normal e a causa era Chagas, soube ao ser encaminhada à Fiocruz. “Graças a Deus não precisei de transplante e marca-passo. Mas minha vida ficou ainda mais difícil”. Dona Josefa tem cinco filhos, mas nenhum quis fazer o exame de diagnóstico.

— Ficaria muito mais tranquila se eles fizessem. Mesmo que tenham essa doença, se cuidarem cedo, não vão passar pelo que eu passei.

Ela se orgulha da casa própria que construiu sozinha “batendo laje e fazendo emboço”, no Engenho da Rainha. E, quando pode, visita São José do Egito.

— Vou para a minha terra, ver minha mãe, ainda tão linda. Mas lá muita gente continua a adoecer sem saber.

A busca por tratamento

Antonio Alves Gomes, paciente tratado na Fiocruz – Custódio Coimbra / Agência O Globo

O Brasil descobriu a doença causada pelo Trypanosoma cruzi e, se depender da falta de interesse de grandes laboratórios farmacêuticos, terá que desenvolver sozinho uma vacina e um tratamento mais eficiente e menos tóxico para a infecção. Nas Américas há cerca oito milhões de portadores e 70 milhões vivendo em áreas de risco.

Avanços na terapia têm sido obtidos pelo grupo de Tânia Araújo-Jorge. O grupo dela desenvolveu e testa em voluntários o uso complementar de um medicamento à base de selênio. O papel do selênio é funcionar como antioxidante e contribuir para reduzir as lesões no coração de pacientes na fase crônica da doença. A pesquisadora explica que o selênio ajuda prevenir os danos no coração ao combater o chamado desgaste oxidativo, característico da fase crônica da doença.

Carolina Batista, diretora médica da Iniciativa de Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, na sigla em inglês), espera que um novo Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para a doença seja aprovado em breve. Ele traz recomendações de uma série de instituições de medicina e pesquisa de todo o Brasil, e ações com foco nos estados de Goiás, Pernambuco, Bahia, Piauí, Ceará e Rio Grande do Sul (transmissão congênita).

Um dos pacientes tratados na Fiocruz com selênio é Antônio Alves Gomes, 51 anos, de Campina Grande, Paraíba. Ele chegou com a família ao Rio em 1974, sem nada saber da doença e dos barbeiros que na sua casa na periferia de Campina Grande “estavam por toda parte”. Metalúrgico, ele está afastado do trabalho desde que precisou implantar um marca-passo no ano passado.

— Há três casos de Chagas na minha família. Inclusive meu irmão mais velho, de 58 anos, que já teve dois AVCs. Hoje sei que essa doença deve ter sido a causa da morte da minha irmã, aos 22 anos de idade. Eu espero melhorar agora que estou sendo tratado — diz ele, que também participa da Rio Chagas. — Queremos que o Brasil saiba que a doença de Chagas não é passado. Ela ainda faz muita gente sofrer.

Uma longa história

Grupo da Associação Rio Chagas – Custódio Coimbra / Agência O Globo

A história da doença de Chagas se mistura à da medicina no Brasil. Em 1909, Carlos Chagas descobriu que o parasita que identificara um ano antes causava também uma doença transmitida pelo inseto barbeiro, comum nas miseráveis casas de pau a pique das zonas rurais. Ele demonstrou que mais do que o clima tropical — até então responsabilizado por todas as mazelas e atrasos — a origem da doença estava nas precárias condições de vida da população da zona rural.

A pesquisadora e historiadora da Fiocruz Simone Kropf, estudiosa da obra de Carlos Chagas, explica que ele defendeu que a doença que descobrira revelava um país marcada por pobreza, analfabetismo e endemias que consumiam a saúde e a capacidade de produzir da população. Descortinava um outro Brasil, bem diferente da ideia de país moderno, urbano, voltado para o progresso.

Sua descoberta trouxe imenso reconhecimento internacional para a ciência brasileira. Mas também enfrentou resistência por parte de outros médicos e intelectuais, como Afrânio Peixoto, que achavam que a imagem de doença da pobreza prejudicaria a imagem do país no exterior, observa Kropf.

Já naquela época, ele insistia na necessidade de os jovens estudantes de medicina aprenderem a diagnosticar essas doenças tão negligenciadas.

— Nesse momento em que vemos retrocessos, como a volta da febre amarela e do sarampo, em que o governo investe cada vez menos em ciência e saúde pública, as ideias de Carlos Chagas, de compromisso com a saúde dos mais pobres, se tornam não apenas atuais, mas muito necessárias — salienta a historiadora.

Perfil da doença

Causa: o parasita Trypanosoma cruzi

O que provoca: Há uma forma aguda e outra crônica. A aguda pode surgir de 5 a 14 dias após a infecção, mas quase sempre é assintomática. Causa febre, mal-estar, inchaço do fígado e do baço. A forma crônica passa pode ser passar anos silenciosa e, ao se manifestar, pode comprometer o coração, os intestinos, o esôfago, o estômago, as meninges e o cérebro. Estima-se que três em cada dez portadores de Chagas tenham complicações. Segundo a Fiocruz, a doença é uma importante causa de implante de marca-passo e transplante de coração.

Número de casos: Segundo a OMS, há no Brasil 1.156.821 pessoas infectadas e outras 25.474.365 continuam a viver em áreas de risco. Segundo a Fiocruz, o número de portadores pode passar de três milhões. Mas, de acordo com o MS, em 2017 foram confirmados somente 358 (dados preliminares) casos de doença de Chagas aguda. Isto porque o ministério só notifica os casos agudos. Apenas Goiás faz notificação dos casos crônicos.

Regiões mais afetadas: Norte e Nordeste.

População mais afetada: Pessoas que moram em casas rudimentares. Os barbeiros proliferam em frestas nas casas de pau a pique e outras construções precárias.

Transmissão: Os principais são percevejos hematófagos conhecidos como barbeiros. Mais de 300 espécies podem transmitir o T. cruzi. Em 2006, o Brasil conseguiu interromper a transmissão pelo principal barbeiro vetor, o Triatoma infestans. Mas continuam a ocorrer casos associados a outros barbeiros e ao consumo in natura de alimentos, em especial açaí, bacabá e caldo de cana, infectados por fezes desses insetos. Outras formas são transfusão de sangue, transplante de órgãos e congênita.

Vacina: Não

Prevenção: Combate dos barbeiros, com inseticidas e melhoria das condições de habitação para evitar que esses insetos possam proliferar nas casas. Controle do sangue e cuidados com a higiene dos alimentos.

Tratamento: Com a droga benznidazol, oferecida gratuitamente pelo SUS. O tratamento, porém, tem elevada toxicidade, precisa ser feito por seis meses a 1 ano e só funciona se usado no início da doença, o que raramente ocorre.

Cura: Só se diagnosticada no início.

Obstáculos ao controle: O diagnóstico. A fase aguda é quase sempre assintomática e as manifestações crônicas podem levar de 20 a 40 anos para surgir. Há dificuldade no diagnóstico, já que a maioria dos profissionais de saúde não está preparada para reconhecer pacientes com Chagas.

Destaques

Há entre um milhão e quatro milhões de portadores do T. cruzi no Brasil, cerca de 30% desenvolvem problemas graves.

A doença de Chagas figura entre as principais causas de transplante de coração e implante de marca-passo no Brasil.

90% das pessoas com Chagas que precisam de tratamento não têm acesso a ele.

Crédito: Ana Lucia Azevedo / O Globo – disponível na internet 31/07/2018

1 Comentário

  1. Olá, sou portador da doença de chagas, tenho 78 anos moro em Capão do Leão no interior do Rio Grande do Sul. Fazem uns três anos que a doença começou a se manifestar, hoje estou com problema nos intestinos, num olho e na cabeça. contudo venho me mantendo se medicamentos próprios para esse mal. Não tenho problema em servir para experimento de algum novo medicamento, estou a disposição para cooperar de alguma forma, contudo peço que se puderem me ajudar me indicando algum medicamento para pelo menos amenizar esse sofrimento que bem sei e estou consciente de que o quadro vai piorar, como vem piorando a cada mês fico muitíssimo grato. GRANDE ABRAÇO A TODOS , Henrique T. Gomes.

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