Ursal, a conspiranoia

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A mais nova e sui generis teoria da conspiração ambientada na América Latina é a Ursal, uma espécie de transgênico político entre a URSS — a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, cujo óbito ocorreu em 1991 — e a “América Latina” — um modismo consolidado em meados do século XIX pela intelligentsia francesa a serviço do imperador Napeolão III. A inexistente entidade — que segundo os autores da teoria da conspiração pretenderia implantar o “comunismo” em todos os países ao sul do Rio Grande e ao norte do Cabo Horn — tornou-se rapidamente alvo de milhares de memes. As imagens nas redes sociais mostravam como símbolo da Ursal um dos protagonistas do desenho animado Ursinhos carinhosos com uma foice e martelo sobre a barriga. Internautas aproveitaram o assunto para ressaltar que uma seleção de futebol da Ursal seria imbatível, ao contar com o argentino Messi como camisa 10, o uruguaio Suárez na 9 e Neymar na 11.

 

As imagens nas redes sociais mostravam como símbolo da Ursal um dos protagonistas do desenho animado “Ursinhos carinhosos” com uma foice e martelo sobre a barriga – Montagem sobre reprodução – Imagem disponível na matéria da revista Época
Embora tal entidade marxista supranacional nunca tenha sido citada por seu eventual maior inimigo, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump — nem pelo Pentágono ou pela CIA —, vários grupos de pessoas, supostamente mais informadas do que Trump, declararam que acreditavam piamente no funcionamento dessa organização “marxista-leninista-trotskista-stalinista-maoista-guevarista-bolivariana”.

No restante da região, os principais referenciais da direita ignoram a nova teoria da conspiração made in Brazil. Na Bolívia, no Paraguai e na Argentina, a única entidade conhecida com essa sigla é a União de Redentoristas do Sul da América Latina, associação de padres católicos devotos da Virgem do Perpétuo Socorro, sem qualquer tom de marxismo em suas catequeses.

A suposta criação da Ursal também teria certa falta de timing, já que entidades regionais acusadas no passado de “comunistas”, como a Alba — que nunca conseguiu mais de meia dúzia de adeptos nos países bolivarianos — e a Unasul — atualmente em processo de autodissolução e integrada por governos de esquerda, direita e centro desde sua fundação —, estão em seus respectivos crepúsculos. De quebra, o outrora emblema do marxismo na região, a Ilha de Cuba, está reformulando sua Carta Magna para eliminar do texto o termo “comunismo” e passar a reconhecer oficialmente a propriedade privada.

A Ursal encaixa-se na vasta tradição terceiro-mundista de apreço pelas teorias da conspiração. Ou, como dizem os venezuelanos atualmente, as “conspiranoias” — mix de conspiração e paranoias. Esse foi o irônico neologismo com o qual, no final de 2013, eles batizaram as delirantes — e frequentes — teorias da conspiração proferidas pelo chavista Nicolás Maduro.

Ao longo das últimas décadas, as teorias conspiratórias seduziram setores da esquerda e da direita latino-americanas. Esse foi o caso do último regime militar argentino (1976-1983), de direita, que acreditava que Israel, com o apoio dos judeus argentinos, aplicaria o “plano Andinia”, uma mirabolante suposta conquista “sionista” da Patagônia, onde instalaria “kibutz” socialistas. O jornalista Jacobo Timerman, dono de alguns dos mais importantes jornais e revistas da Argentina nos anos 1970, apesar de suas posições conservadoras e de não simpatizar com a esquerda — ele até apoiou o golpe no início, para depois arrepender-se —, foi sequestrado pelos militares, que o torturaram violentamente, exigindo que revelasse detalhes do Andinia.

Nos últimos dois anos na Colômbia, a direita teve sua mirabolante conspiranoia ao afirmar que o Centro Democrático, partido de direita “heavy” do ex-presidente e senador Álvaro Uribe, era, no fundo, um “partido marxista”. A denúncia foi realizada pelo influente jornalista Ricardo Puentes Melo, que afirmou que por trás dos “marxistas-uribistas” estava o novo presidente colombiano, Iván Duque, de direita. Além deles, um clássico dos últimos tempos, apontado como uma espécie de maquiavélico Lorde Voldemort internacional, teríamos o financista George Soros. O político e pastor evangélico Marcos Fidel Ramírez, de direita, fez intensos alertas sobre o tratado de paz entre o presidente — de direita — Juan Manuel Santos e as marxistas guerrilhas das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) em 2016, afirmando que o objetivo do acordo era implantar uma “ditadura homossexual” no país. Até os mais duros críticos de Santos olharam com estupefação as declarações do pastor evangélico.

A mais sui generis teoria da conspiração do bolivarianismo, no entanto, talvez seja a de Chávez. Ele sustentou em 2011 que a civilização no planeta Marte foi “destruída pelo capitalismo”. Não existe prova da existência de vida no passado em Marte, nem sequer de uma civilização. E, muito menos, de que o sistema econômico marciano tenha sido o capitalismo. E menos ainda de que o suposto capitalismo marciano tenha exterminado a não confirmada vida naquele lugar.

Tal como afirmou o escritor colombiano Gabriel García Márquez quando em 1982 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, “a independência do domínio espanhol não nos colocou a salvo da demência” dos políticos de plantão. Ou, fazendo um update desse conceito, poderíamos dizer que na América Latina “tudo termina em Ursalada…”.

Crédito: Ariel Palacios/Revista Época – disponível na internet 20/08/2018

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