05/10/1988: Símbolo da redemocratização, Constituição completa 30 anos.

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"A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia", afirmou Ulysses Guimarães ao promulgar a lei fundamental -Arquivo ABr

Depois de 21 anos de ditadura militar, Carta de 1988 emergia da luta pelo retorno da democracia e avançava na garantia de direitos fundamentais. Mesmo criticada, firmou-se como pilar do Estado democrático brasileiro.

Marco na redemocratização da sociedade brasileira e frequentemente apontada como uma das mais avançadas do mundo, a Constituição de 1988 completa 30 anos a dois dias de uma eleição marcada por uma campanha polarizada, que chegou a questionar a própria Carta Magna em meio a declarações de defesa da ditadura militar.

Acesse a íntegra da Constituição da República Federativa 

 www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf

Bem diferente era a situação em 1988, quando a Constituição foi promulgada: a democracia recém-alcançada era o anseio de uma população que havia saído às ruas para pedir justamente o retorno do direito de votar para presidente, negado ao longo de duas décadas de domínio dos militares sobre a política brasileira.

Naquele tempo, o processo constituinte simbolizava a ruptura com o autoritarismo do governo militar, além de ser uma experiência política inédita por causa da abertura à participação de todos os setores da sociedade, o que se verificou em 72 mil sugestões de cidadãos.

A Constituição era vista como um dos pilares da fundação de uma sociedade democrática brasileira. “A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia”, afirmou o então presidente da Assembleia Constituinte, Ulysses Guimarães, ao promulgar a lei fundamental, há exatos 30 anos.

A Constituição de 1988 é responsável por assegurar direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e o direito à livre manifestação, e por nortear políticas públicas em áreas sociais, como o Sistema Único de Saúde (SUS) e a Previdência Social. Pela primeira vez, o direito à educação era encarado como sendo de todos. A defesa do direito de estudar já existia nas constituições anteriores, mas a gratuidade era só para quem comprovassem carência de recursos.

O texto constitucional também garantiu direitos essenciais para os trabalhadores, ao incluir e ampliar o que estava previsto pela CLT, de 1943, como o 13º salário e o aviso prévio. A jornada de trabalho passou de 48 para 44 horas semanais, e o salário-mínimo foi unificado em todo o país.

A Constituição de 1988 também foi um marco importante para o direito do consumidor, cuja proteção passou a ser um dever do Estado. Além disso, ela fortaleceu e tornou independente o Ministério Público Federal. Outro avanço foi a proposta que tornou, pela primeira vez, o racismo um crime inafiançável, imprescritível e passível de pena no Brasil. E isso sem falar no artigo 5º, que determina que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”.

Críticas à Constituição

Mas ela nunca esteve livre de críticas. Uma delas é o seu tamanho: a Carta Magna brasileira tem 250 artigos e é a segunda mais extensa do mundo, atrás apenas da indiana. Para o professor de Direito constitucional Cristiano Paixão, da UnB, isso não é necessariamente um problema.

“A ideia de que uma constituição boa é sucinta é um mito. Em geral, usa-se como parâmetro a constituição dos EUA, que é cheia de casuísmos, embora tenha uma história importante. Mas não há nada que indique que a Constituição de 1988 seria melhor se fosse mais enxuta”, afirma.

Outra crítica é a quantidade de emendas: a Carta Magna já foi modificada 99 vezes, a um ritmo médio de três emendas por ano. As alterações vão da possibilidade de reeleição para presidente da República, governadores e prefeitos à instituição de um teto para os gastos públicos para os próximos 20 anos, passando por temas inusitados, como a disposição sobre práticas esportivas que utilizam animais, como a vaquejada.

Um terceiro aspecto frequentemente criticado é a regulamentação dos seus 382 dispositivos originais, cujas leis específicas definiriam como o que estava previsto seria implementado. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e é um exemplo dos 263 pontos já regulamentados. Mas há 119 sem regulamentação.

A prolixidade e o detalhismo do texto constitucional podem ser explicados pela multiplicidade de anseios, expectativas e interesses de vários segmentos da sociedade à época. Houve, por exemplo, lobby em favor dos direitos da mulher, ainda que elas fossem apenas 26 dos 559 constituintes. Graças a isso, 80% das propostas contidas na Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes foram incluídas no texto final. Questões polêmicas, como a descriminalização do aborto, ficaram de fora, mas outras, como o direito à licença-maternidade de 120 dias, foram incorporadas.

O grande número de políticas públicas no texto constitucional também ajuda a explicar a quantidade de emendas. Por outro lado, embora a aprovação de emendas constitucionais no Congresso seja mais difícil do que a de projetos de leis comuns, não há tantas dificuldades como as observadas em outros países.

“Vamos dizer que a compensação pela prolixidade é a facilidade do emendamento”, diz o professor da Fundação Getúlio Vargas Claudio Couto. “Ela já dura 30 anos sendo muito criticada e muito emendada. A crítica, na democracia, é normal, serve para corrigir imperfeições e apontar caminhos. O caminho normal é continuar havendo críticas e atualizações”, avalia.

Apesar das várias mudanças ao longo dos últimos 30 anos, a quantidade de propostas de alteração que não avançaram foi bem maior, diz Nikolay Bispo, coordenador do Núcleo de Justiça e Constituição da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas.

“Talvez a Constituição tenha sido muito emendada, mas, dentro do universo total de propostas, poucas passaram. Uma hipótese para isso é que, quando se constitucionaliza muito a gestão pública, existe a necessidade de muitas emendas”, afirma.

Uma nova Constituição?

Em meio à crise política atual, a elaboração de uma nova constituição surgiu como tema das campanhas presidenciais. Primeiramente ela foi aventada pelo candidato à vice de Jair Bolsonaro (PSL), general Hamilton Mourão, como possível de ser feita apenas com “notáveis”, sem a presença de representantes eleitos pelo povo. A afirmação foi criticada como sendo antidemocrática.

Mas a ideia consta também do programa de governo de Fernando Haddad (PT), que afirma querer criar “as condições de sustentação social para a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte livre, democrática, soberana e unicameral, eleita para este fim nos moldes da reforma política que preconizamos”. O candidato não detalhou o que exatamente ele pretende com essa proposta.

Durante solenidade da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em comemoração aos 30 anos da data, o ex-presidente da entidade, Marcus Vinicius Coelho, lembrou que a Constituição nasceu como uma “cercadura para impedir o retorno do regime autoritário” e pediu que os candidatos à Presidência respeitem a Carta Magna, bem como o resultado das urnas.

A ideia de redigir outra Constituição também provocou reações no Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro Marco Aurélio de Mello falou em menosprezo dos políticos com o texto constitucional. “Por isso que se fala tanto em redigir outra constituição”, afirmou.

A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, classificou o documento de 1988 de “marco extraordinário” na defesa dos direitos fundamentais e na estabilidade das instituições.

“O país nunca viveu um período de normalidade democrática tão longa, e, em razão disso, temos hoje uma sociedade mais plural, onde a dignidade da pessoa humana e a liberdade das pessoas é assegurada com a maior plenitude”, afirmou.

Para Cristiano Paixão, da UnB, não se troca de Constituição como se troca de governo. “Só há condições para uma nova constituição diante de uma mudança muito radical do sistema político ou da sociedade. Nós vivemos até agora uma saudável alternância de poder pela via eleitoral. Isso faz parte da normalidade constitucional. Não vejo as condições ou mesmo a necessidade de um novo texto constitucional”, conclui.

Constituição de 1988 foi avanço nos direitos das mulheres

Lei fundamental representou grandes progressos na igualdade de direitos e abriu caminho para legislações voltadas aos crimes contra a mulher, como a Maria da Penha. Mas para isso foram necessários pressão e empenho.

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Mulher com rosto pintado em protesto pró-aborto em São Paulo, em junho de 2018
Trinta anos depois, brasileiras ainda lutam para que seus direitos sejam respeitados. Mulher com rosto pintado em protesto pró-aborto em São Paulo, em junho de 2018 – imagem DWB

“Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”, estabelece o artigo 5º da Constituição Federal, promulgada no dia 5 de outubro de 1988, há 30 anos.

Parece óbvio para os tempos atuais, mas a frase representa uma das maiores conquistas das mulheres brasileiras. “A Constituição de 1988 é a primeira a estabelecer plena igualdade jurídica entre homens e mulheres no Brasil”, afirma a socióloga e feminista Jacqueline Pitanguy.

Apesar de não ser colocado em prática em sua totalidade, o atual texto constitucional trouxe importantes avanços para as mulheres, tendo mudado radicalmente o status jurídico das brasileiras, que até 1988 estavam em posição de inferioridade e submissão em relação aos homens.

“Conseguimos conquistas em várias áreas. No capítulo da família, por exemplo, conseguimos eliminar a figura do homem como chefe da relação conjugal”, afirma Pitanguy. “No âmbito da violência, afirmamos que era dever do Estado coibir a violência intrafamiliar, o que forneceu a base para que se formulasse a Lei Maria da Penha.”

Aprovada em 2006, a Lei Maria da Penha é considerada pelo Banco Mundial referência global no combate à violência contra a mulher no ambiente familiar e doméstico.

Pitanguy fala “conseguimos” porque foi uma das responsáveis pelas conquistas na Constituição de 1988. Como presidente do então recém-criado Conselho Nacional dos Direitos da Mulheres (CNDM), ela coordenou a campanha nacional Mulher e Constituinte, que uniu mulheres de diversos setores da sociedade para debater quais direitos a Constituição deveria contemplar.

“O CNDM fez um trabalho ininterrupto de 1985, antes da eleição para a Assembleia Constituinte, até a promulgação da Constituição, em outubro de 1988. Durante quatro anos, minha vida esteve diretamente ligada ao processo constituinte”, lembra a socióloga.

Por 20 meses, o CNDM pediu a mulheres de todo o país que enviassem propostas que gostariam de ver na Constituição. “Numa época sem internet, recebemos milhares de cartas e telegramas”, lembra a feminista. Com a ajuda de juristas, o conselho transformou essas propostas na Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes, que serviu de base para o trabalho dos constituintes.

Em março de 1987, as integrantes do CNDM e deputadas entregaram a Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes ao presidente da Assembleia Nacional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães.

“Tenho várias lembranças marcantes desse período, como o sentimento de solidariedade dos mais diversos movimentos de mulheres de todo o país. Mas também lembro de sentir o peso das forças contrárias ao nosso avanço”, recorda Pitanguy.

Graças à pressão das mulheres, cerca de 80% da Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes foi incluída na Constituição de 1988.

Lobby do Batom

Com os slogans “Constituinte para valer tem que ter palavra de mulher”, “Constituinte para valer tem que ter direitos da mulher” e “Constituinte sem mulher fica pela metade”, a campanha Mulher e Constituinte era uma resposta à baixa representação feminina na política institucional: em 1935, a elaboração do texto constitucional teve a participação de somente uma mulher, a deputada paulista Carlota Pereira de Queiroz. Em 1988, a situação era melhor, mas ainda muito desigual: dos 559 parlamentares da Constituinte, 26 eram mulheres.

“Quando os parlamentares iniciaram os trabalhos da Constituinte, eu e grupos de mulheres íamos diariamente ao Congresso para visitar lideranças de todos os partidos”, conta Pitanguy. “Para cada capítulo que era discutido, e que era de interesse das mulheres, apresentávamos nossas propostas. Se era um tema de direitos trabalhistas e benefícios sociais, por exemplo, íamos acompanhadas de empregadas domésticas, trabalhadoras e sindicalistas.”

Essa articulação do CNDM e de demais mulheres da sociedade civil em geral no Congresso ficou conhecida como Lobby do Batom. “Alguns congressistas tentaram nos diminuir e diziam pejorativamente ‘lá vem as mulheres de batom’. Então decidimos assumir o título de O Lobby do Batom como uma estratégia de luta pelos direitos das mulheres e começamos a usar esse nome nos nossos materiais, campanha e publicações.”

“O Lobby do Batom era uma forma irônica de as mulheres se identificarem fora da Câmara dos Deputados. Dentro da Câmara, a pauta das mulheres era representada pelas deputadas, conhecidas como Bancada Feminina”, lembra a historiadora Celi Pinto. “É muito significativo que mulheres de vários partidos e ideologias tenham se unido e buscado, num ambiente tão masculino e machista como a Câmara, uma representação a partir da própria condição de ser mulher”, analisa.

Os avanços de 88

Para Pitanguy, uma das maiores contribuições da Constituição de 1988 para a população feminina é que o texto serviu de base para que fossem criadas legislações que abordassem especificamente os crimes contra a mulher, tipificando esses crimes.

Antes da Lei Maria da Penha, por exemplo, era comum que os agressores fossem punidos com penas alternativas, como o pagamento de cestas básicas, e não fossem presos. Com a nova lei, penas alternativas à prisão foram proibidas, e uma série de medidas de proteção à vítima e seus filhos foram criadas.

“Avançamos em várias áreas: nos direitos reprodutivos, conseguimos que se reconhecesse o direito de a mulher de decidir sem coerção sobre o número de filhos que deseja ter e que é dever do Estado fornecer meios e informações para tal decisão. Na área familiar, eliminamos a necessidade de um certificado de casamento para que se reconhecesse uma família”, explica a socióloga, lembrando que, até a Constituição de 1988, vigorava o Estatuto da Mulher Casada, que previa a necessidade de autorização do marido para as mulheres poderem trabalhar.

Na área trabalhista, Pitanguy lembra que a licença maternidade foi estendida de 84 dias para 4 meses e que a licença paternidade foi instituída. “Também avançamos na afirmação de direitos trabalhistas e previdenciários para empregadas domésticas, que foram consolidados com a PEC das Domésticas de 2012.”

A feminista também destaca a conquista para as mulheres rurais do direito à titularidade da terra e, para as mulheres presidiárias, o direito de amamentar os filhos.

Celi Pinto aponta, no entanto, que questões como o direito ao aborto e o reconhecimento do direito à livre expressão sexual para lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros não foram contemplados até hoje.

Para a historiadora, o movimento das mulheres em 1987 e 1988 em torno da Constituinte havia sido a maior mobilização feminina na história do Brasil – até 2018. “Ou melhor, até as eleições presidenciais de 2018, já que a maior mobilização política das mulheres no Brasil está acontecendo neste momento, com o movimento #elenão.”

“Mais uma vez, vemos uma mobilização de mulheres acima das diferenças de classe e de raça, pois é uma luta contra o autoritarismo”, afirma Pinto. “O #elenão já mudou a relação das mulheres com a política nacional e terá efeitos muito impactantes nas próximas eleições. Acredito que a política brasileira não será mais a mesma após esta mobilização.”

Crédito:  Deutsche Welle Brasil – disponível na internet 05/10/2018

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