A Constituição de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, chega nesta sexta aos 30 anos em um momento pouco propício a comemorações. Em meio à grave crise econômica e política que se instalou no Brasil, não faltam propostas para substituí-la.
Um dos problemas que alimentam esse questionamento, e que terá que ser enfrentado pelo próximo presidente, é o desequilíbrio nas contas públicas. Após quatro anos de resultados negativos, a expectativa média de instituições financeiras consultadas pelo Ministério da Fazenda é que o governo federal fechará 2018 com rombo na casa de R$ 150 bilhões – e 2019 com mais um, de R$ 124 bilhões.
Diante desse quadro, há quem acuse o texto constitucional de ser generoso demais ao fixar direitos e gastos sociais.
De fato, a Constituição Cidadã é a décima do mundo em previsão de direitos – são 79, segundo o CPP (Comparative Constitutions Project), projeto coordenado por professores de universidades americanas (do Texas e de Chicago) e britânica (UCL) que compara as constituições de 190 países. Além de direitos individuais – como ao voto, à igualdade e à liberdade -, há previsão de acesso à saúde e educação públicas e benefícios sociais, entre outros.
Por outro lado, em 2016 o texto constitucional recebeu uma emenda considerada por muitos radical – a chamada PEC do Teto limitou por 20 anos o crescimento dos gastos à reposição da inflação. A saída não resolveu o problema porque gastos obrigatórios, como o pagamento de aposentadorias, seguem crescendo acima desse limite.
A culpa é mesmo da Constituição?
Apesar de prever mais direitos que a maioria das constituições, juristas e economistas ouvidos pela BBC News Brasil não consideram que a “generosidade” da Carta Magna brasileira seja determinante para o rombo de hoje.
Eles acreditam que alguns ajustes devem ser feitos por meio de emendas constitucionais (já foram aprovadas 99, aliás), mas destacam que as principais causas do desequilíbrio são decisões tomadas pelos governos ao longo das décadas. Tanto que, desde 1988, o Brasil registrou momentos de saldos positivos e negativos nas contas públicas.
Essa é a opinião, por exemplo, do pesquisador da FGV José Roberto Afonso. Ele participou do processo de redação da Constituição como assessor do hoje senador José Serra (PSDB-SP), que na ocasião era deputado constituinte e foi o relator da Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças.
Na sua avaliação, a Constituição traz tantos mecanismos que desestabilizam as contas públicas (a garantia de piso mínimo para aposentadorias, por exemplo) como também contempla o equilíbrio fiscal (exigindo limites para a dívida pública e até para despesas de pessoal).
“É na prática, na gestão do dia a dia dos atos e contas públicas, que se asseguram resultados fiscais mais frouxos ou mais austeros”, escreveu em artigo recente.
A avaliação é a mesma do constitucionalista André Rufino do Vale, professor do IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público). Ele ressalta que a Constituição brasileira é uma das poucas no mundo que estabelece que as operações de crédito da União não podem ser maiores que as despesas de capital (essencialmente investimentos), mecanismo chamado de “regra de ouro”.
Assim, evita-se que um governo se endivide para pagar despesas correntes (salários de servidores, contas de luz e telefone, entre outras), deixando a dívida para administrações seguintes.
“A Constituição que criou um catálogo generoso de direitos e um programa de seguridade social ambicioso também fornece os instrumentos necessários para o controle orçamentário e a responsabilidade fiscal. Não se pode culpá-la pela crise”, destaca.
Gastos sem obrigação constitucional também subiram
Um estudo publicado no ano passado por outros dois pesquisadores da FGV – Manoel Pires e Bráulio Borges – conclui que, se não fossem as despesas sem obrigação constitucional criadas pelos governos nessas três décadas, o gasto primário (sem contar pagamento de juros da dívida) estaria próximo ao de 1988, quando medido em proporção do Produto Interno Bruto (PIB).
Eles calculam que essas despesas do governo subiram de 12,6% do PIB potencial (medida que desconta os efeitos conjunturais de oscilação da economia) em 1988 para 18,1% em 2016, sendo que quase metade desse crescimento (44%), por exemplo, se deu devido aos reajustes do salário mínimo acima da inflação.
O restante decorreu de outras rubricas criadas, entre elas o Bolsa Família e gastos com Saúde e Educação para além do mínimo exigido na Constituição.
O aumento do salário mínimo impacta as contas públicas porque gastos como o piso das aposentadorias do INSS, o seguro-desemprego e os benefícios assistenciais para idosos e deficientes estão atrelados a ele, por determinação constitucional.
No entanto, a Constituição prevê que o piso salarial deve passar por reajustes que “preservem o poder aquisitivo” (correções de inflação). Os reajustes acima disso são decisão dos governos e foram praticados em todas as administrações desde 1995, destaca o estudo. A alta real acumulada desde 1988 supera 60%.
O economista Rodrigo Orair, um dos diretores da IFF (Instituição Fiscal Independente, do Senado), ressalta que a elevação do salário mínimo contribuiu para redução da pobreza e da desigualdade social e refletiu uma demanda da população.
Tanto que, destaca ele, políticos de diferentes partidos vêm prometendo isso eleição após eleição.
Neste ano, o candidato a presidente Geraldo Alckmin (PSDB) já se comprometeu a aumentar o piso salarial acima da inflação caso eleito.
A proposta também está no plano de governo do candidato petista, Fernando Haddad. Questionado sobre o assunto em entrevista ao canal Globonews, o candidato líder nas pesquisas, Jair Bolsonaro (PSL), sinalizou que também manterá a política de valorização ao responder que “não podemos ir condenando, ano após ano, os proventos dos aposentados (a ir) diminuindo”.
Manoel Pires, da FGV, ressalta que o salário mínimo, após subir nos anos 50 e 60, caiu nos anos 70 e 80. Dessa forma, sua elevação após o Plano Real (1994) representou uma recomposição do seu valor. Agora, ele defende que o ritmo de valorização deve diminuir.
“Essa recomposição do salário mínimo foi uma demanda democrática da sociedade. Diante do rombo fiscal, temos que discutir se faz sentido continuar”, defende.
Redução de gastos x elevação de impostos
Ainda que a Constituição não seja a causa determinante do rombo fiscal nos últimos 30 anos, os economistas entrevistados concordam que é preciso reformá-la para evitar que o déficit persista e se agrave.
O economista-chefe do BNDES, Fabio Giambiagi, defende que sejam modificadas as regras da Previdência Social, tendo em vista o acelerado envelhecimento da população. Como se dará essa reforma, porém, é motivo de ampla controvérsia na sociedade.
“Não faz sentido ter parâmetros que mudam com o tempo no texto constitucional. A demografia é transgressora e está nem aí para a Constituição”, resume Giambiagi.
Já a constitucionalista Adriana Ancona, professora da PUC-SP, defende que não se deve combater a crise fiscal com cortes de gastos que afetem os mais pobres. Crítica do novo teto constitucional, que, na sua avaliação, congela os recursos para Saúde e Educação, ela defende uma reforma tributária que reduza os impostos sobre consumo e eleve sobre a renda dos mais ricos.
A Constituição, por exemplo, prevê imposto sobre herança, mas a regulamentação definiu como alíquota máxima 8%, enquanto em países desenvolvidos ela chega a 50%.
“Se a gente minimamente atacar o sistema tributário, enfrentamos muito melhor a crise fiscal do que retirando direitos essenciais”, defende.
Por que tão grande?
De acordo com o CPP (Comparative Constitutions Project), citado no início da reportagem, o Brasil tem a terceira maior Constituição do mundo. Seu texto totaliza 64.488 palavras, perdendo apenas para Índia (146.385 palavras) e Nigéria (66.263). A média de texto das 190 constituições é de 22.291 palavras.
Já em quantidade de direitos previstos, a Constituição Cidadã aparece em décimo lugar, com 79. Os primeiros no ranking são Equador (99), Bolívia (88), Sérvia (88) e Portugal (87), enquanto a média do planeta fica em 50.
Críticos do gigantismo brasileiro muitas vezes citam a Constituição dos Estados Unidos, que tem apenas 7.762 palavras, como exemplo a ser seguido. Constitucionalistas americanos ouvidos pela BBC Brasil, por sua vez, ressaltam que os dois textos nascem em contextos muito diferentes.
Como destaca o juiz americano Peter Messitte, estudioso do sistema legal brasileiro, o texto dos Estados Unidos foi escrito em 1789, pouco depois da independência do país, por um pequeno grupo de lideranças políticas, e está em vigor até hoje, tendo recebido apenas 27 emendas.
Já a do Brasil é muito mais recente e foi adotada após duas décadas de ditadura militar (1964-85), período em que houve muita violação de direitos. Seu texto foi debatido por dois anos, em Assembleia Constituinte, composta por 559 parlamentares eleitos.
“É mais longa e complicada do que deveria, mas, diante das circunstâncias em que foi escrita, muito diferentes da americana, é uma Constituição útil”, defende.
Um dos diretores do CPP, o professor da Universidade do Texas Zachary Elkins, ressalta ainda que, durante a redação da Constituição brasileira, houve constantes contribuições e pressões de diferentes grupos sociais. “As constituições modernas tendem a ser longas e, de certa forma, são um produto de sua geração. Vejo a Constituição brasileira como produto de um processo inclusivo, necessário como terapia após 20 anos de ditadura militar”, ressalta.
No atual contexto internacional de ascensão de forças políticas que questionam direitos de minorias, ele considera positivo que a Constituição traga uma longa lista de direitos.
“Dada a próxima eleição no Brasil e, na verdade, eleições em outros lugares, fica claro que não se pode contar com os governantes para respeitar os direitos de todos os membros da sociedade”, disse.