No cenário de notícias boas e ruins para a educação brasileira, comecemos pela vertente negativa da coisa. Porque o lado positivo contado a seguir vai ser de pura mágica. Só que uma mágica concreta, real, transformadora de vidas… Fiquemos com ela na hora de desenvolver e encerrar esta coluna.
O principal elemento de crise na área fica por conta do próprio Ministério da Educação. Depois de seus quadros baterem cabeça por mais de três meses, com repetidas trocas de nomes em cargos da prateleira de cima (incluindo aí o do nº 1 da repartição), a pasta começa só agora a buscar um rumo, enquanto estudantes já concluem a primeira etapa letiva em colégios por todo o Brasil. Paralisia que deixa em compasso de espera, por exemplo, a realização do Enem, depois que a gráfica responsável pela impressão da prova desde a edição de 2009 declarou falência no início de abril.
Por falar em “atraso”, e em seu primo de primeiro grau, o “retrocesso”, outra nota preocupante é que professores vivenciam em toda parte um clima crescente de vigilância, de patrulhamento, que em alguns casos chegam às vias de demissão, como ocorrido dias atrás no Colégio Poliedro (São José dos Campos, SP). A instituição eliminou de seus quadros um professor, após divulgação de um vídeo em que ele criticava o presidente Jair Bolsonaro e seu governo. O clima de perseguição ganha eco pelo país, como também reverbera falas contundentes em defesa da liberdade de professoras e professores.
É na contramarcha dessa conjuntura árida e pouco animadora (pelo menos no curto prazo), que a gente passa para o lado mágico prometido lá em cima.
Vem da escola pública o maior motivo de orgulho brasileiro no segmento de educação em 2019. E esse orgulho tem nome de mulher. É Debora Garofalo, que alcançou a honra de adentrar o hall dos 10 melhores professores do mundo, como finalista do Global Teacher Prize, considerado o “Nobel da Educação”. A primeira mulher sul-americana na história a conseguir esse feito.
Formada em Letras e Pedagogia, e cursando agora o mestrado em Educação, Debora viu o sonho de ser professora surgir ainda menina. Ajudava os colegas nas lições e tarefas, com o auxílio de uma lousinha. Presente da mãe, dado a ela no contexto de uma infância difícil.
Debora, conte sobre o projeto que a levou à final do Global Teacher Prize.
Ele nasceu da vontade de transformar a vida de crianças e jovens, de 6 a 14 anos, que são os meus alunos, através do uso da tecnologia como uma propulsora para a aprendizagem.
Comecei a ouvir os alunos, e uma das dificuldades que eles levantavam e me traziam era a questão do lixo. Em dias de chuvas, esse lixo os “proibia” de ir à escola, e acarretava doenças, como dengue e leptospirose. Então, eu propus para uma das minha turmas que a gente fosse às ruas e fotografasse esse cenário, e que durante esse caminho nós conversássemos com os moradores, de porta em porta, sobre a questão da sustentabilidade, e também sobre o descarte desses materiais, podendo entender um pouco melhor esse contexto. E que, nesse percurso, nós recolhêssemos o lixo.
Assim nós fizemos. Nesse primeiro momento, nós achamos muito material reciclável e alguns eletrônicos. Com o material reciclável, eu propus que fizéssemos nosso primeiro protótipo utilizando lei de Newton, que foi um carrinho movido a balão de ar. Esse carrinho despertou nessas crianças, que não se sentiam capazes de construir algo com as suas mãos, um grande interesse pela escola, pela educação, e por aquilo que elas tinham acabado de produzir. E virou uma febre.
No dia seguinte, eu fui recepcionada por outros alunos, com muitos materiais recicláveis, querendo também fazer a mesma atividade que essa turma fez. Dessa forma então, eu estruturei o trabalho, que consiste em aulas públicas, sensibilização da comunidade sobre a questão da sustentabilidade, e também da reciclagem do descarte de materiais, percurso para que a gente possa recolher o lixo das ruas. Esse lixo é pesado, lavado e separado em sala de aula, para dar início então a um estudo de pesquisa e construção em grupo sobre protótipos. Desse trabalho, nós já retiramos das ruas mais de uma tonelada de materiais recicláveis, transformados em protótipos com sucata.
Que criança vê entrar nesse projeto, e que criança vê dele sair?
Bom, eu sempre falei para os alunos que não era só aprender robótica. Era aprender a intervir na sociedade. Como educadora, sempre busquei transformar temas sociais em grandes currículos, para que realmente o aprendizado pudesse ser de forma significativa.
O que em comum eu vi nessas crianças: no começo, elas não se sentiam capazes de construir algo. Elas não acreditavam que o ensino de robótica poderia ser para elas, porque havia então essa concepção, de que ensino de robótica era coisa de escola particular. E aí houve toda uma mudança cultural, de trabalhar essas crianças, resgatar esse potencial transformador de criatividade e inventividade, para que elas pudessem ser protagonistas da própria história. E fazer elas entenderem que também são agentes da transformação dentro da comunidade delas. Que elas poderiam então sensibilizar, tornarem-se multiplicadoras desse aprendizado, e sensibilizar a comunidade sobre essa questão. Foi toda uma mudança cultural, principalmente de autoestima, que resultou na mudança dessas crianças, que hoje se sentem capazes, se sentem entusiasmadas, se sentem realizadas, e sabem que elas têm um lugar no mundo. Que não é o lugar que determina o que elas podem ser. Que são elas mesmas.
Houve também resultados positivos na redução da evasão escolar, certo?
Os resultados desse trabalho são 93% de redução da evasão escolar, 95% de ganho no combate ao trabalho infantil e a retirada das ruas de uma tonelada de material, transformada em protótipos com sucata, mas também uma reorganização do lixo na comunidade, com instalação de novas caçambas. A gente vê hoje uma maior sensibilização. A gente não vê o lixo, principalmente nos arredores da escola, onde ele era muito presente.
Penso que qualquer pessoa que leia dois parágrafos sobre o prêmio irá perceber de imediato o quão importante ele é, e o quão significativo foi ter você lá. Eu te vi em diversos veículos de imprensa, mas fico pensando se a repercussão do que alcançou é proporcional ao o tamanho do feito. É possível pensar em um tempo em que professoras e professores serão tão reverenciados publicamente quanto o são jogadores de futebol e artistas de novela, por exemplo?
Quando eu cheguei em Dubai, tinha muita expectativa da imprensa internacional para conversar comigo, pelo impacto do trabalho. Em relação aos professores, eu fui muito bem acolhida por todos. Todos tinham grande interesse. Os 50 melhores professores estavam lá também, interessados em conversar comigo, saber um pouco mais do trabalho, poder levar esse trabalho para outras pessoas, para outras nacionalidades, e foi tudo muito bonito, né, participar de todo o evento. Depois, nós ficamos muito isolados, só os 10, que foram considerados os 10 melhores do mundo, porque tivemos vários eventos, e todo evento era no sentido de valorizar essa prática dos professores. Tivemos um show. Fomos ao palco. Nós subimos, tivemos o ator Hugh Jackman, que ficou conosco dois dias, que conhecia a fundo o nosso trabalho, que conversou muito com cada um de nós. Tudo pra mostrar o quanto o trabalho do professor é importante. O prêmio tem essa premissa: de que o professor precisa ser valorizado, precisa ser respeitado.
Foi muito bonito ver e estar vivenciando toda essa repercussão do trabalho. Porque nós tivemos outras pessoas [em outras edições do prêmio], e eu não me lembro do impacto do trabalhos dos outros professores ser algo tão grandioso como foi dessa vez. Eu acho que um pouco é pela questão do trabalho – por ter esse aspecto muito do social -, mas principalmente porque as pessoas enxergaram realmente uma transformação na educação, que esse era o maior propósito realmente.
Eu não espero que sejamos referendados. Eu espero que sejamos valorizados, que sejamos respeitados, e que acima de tudo as políticas públicas valorizem as práticas de professores, porque infelizmente ainda temos no Brasil uma cultura de se ter um trabalho bom, mas esse trabalho bom ficar guardadinho. A gente precisa mudar essa cultura: pegar esses trabalhos de excelência e realmente transformá-los em políticas públicas. Muitas das soluções que já existem na educação podem estar em alguma sala de aula. Então a gente precisa valorizar o docente.
Virou lugar-comum, principalmente entre políticos em campanha, a máxima de que a educação é o único caminho para o país crescer, e as últimas revoluções industriais pelo mundo “civilizado” de fato provam isso, mas o que vemos na vida real brasileira é um descolamento entre esse discurso e a prática de governos e de governantes, quando lá chegam. Falando com propriedade de quem vive e respira educação (e, mais do que isso, educação pública), por onde acha que gestores públicos deveriam começar a atacar verdadeiramente o problema?
Neste momento, nós temos muito o que falar de educação. Colocar o Brasil num ranking internacional é o grande desafio. A gente precisa realmente repensar a nossa educação. Trazer a tecnologia para dentro da sala de aula é essencial. Ela não pode mais ficar do lado de fora. Mas neste momento, é necessário ter planos para alfabetização, para implementar a tecnologia dentro das escolas, liberar o Fundeb, que está para vencer no ano que vem (as escolas precisam desse recurso), e fazer planos concretos no ensino médio, na educação básica. Fazer prioridades. E dar suporte para que o professor possa trabalhar de forma interdisciplinar, alocando novas tecnologias dentro da sala de aula.
A gente precisa de propostas concretas, e precisa ter investimento: que se invista realmente em formação inicial do docente, porque o professor sai extremamente despreparado para enfrentar uma sala de aula, e que se invista também em formação continuada desses professores. Professor é uma pessoa que precisa estar em constante formação. As coisas mudam. O professor precisa se atualizar. Então, pensar em políticas públicas, diminuição da quantidade de alunos por sala, repensar o ensino, fazer a proposta do ensino integral (nossas crianças precisam muito dela, o único aporte que muitas têm na vida é na escola). A gente precisa realmente atacar esses problemas com mais clareza e com mais sensatez.
Numa outra vertente dos desafios da educação brasileira, temos a questão crônica da falta de reconhecimento e de valorização de professoras e professores. O que mais ouvimos da e sobre a categoria (principalmente na educação básica) são relatos de baixos salários, sobrecarga de trabalho e falta de condições para o exercício. Numa conjuntura profissional por regra tão desfavorável assim, como atrair e motivar pessoas ao ingresso no magistério?
Não tem muito segredo. Para termos professores, é fundamental que se invista em carreira docente, em valorização. Que exista realmente um plano de carreira docente. E isso tem que ser em nível nacional. Todos os países com que eu pude ter contato em Dubai, inclusive falando com gestores públicos conhecidos, todos eles clamam por investimentos em educação. Não existe transformação da sociedade, se a gente não valorizar esse profissional.
Para terminar, Debora, sinto que professoras e professores nunca estiveram em uma posição tão delicada como hoje, no que diz respeito ao patrulhamento do que vocês dizem em sala de aula. Qual a sua percepção disso, e de iniciativas como o projeto Escola Sem Partido?
Acredito que a gente não deva mais perder tempo falando disso. Considero muito que o partido é a escola. O Escola Sem Partido prega que somos doutrinadores. E não é verdade. A escola é laica. A função do professor e formar seres críticos e reflexivos. E para isso é necessário que haja o diálogo, não colocando o nosso ponto de vista, colocando o ponto de vista de que é necessário fomentar o diálogo, e fazer rodas de discussão sobre os diversos assuntos que permeiam a sociedade. Não tem que mandar assuntos para debaixo do tapete. E é mais um gasto que poderia ser revertido em educação.
Então, acho que isso é um sonho, e a gente tem que parar de sonhar com esse tipo de coisa, e realmente atacar o que necessita de ser atacado neste momento, que é priorizar a educação, priorizar a alfabetização, priorizar o ensino médio, priorizar que essas crianças sejam realmente formadas da melhor maneira possível, no chão de uma escola pública. A gente precisa ter uma escola pública com altas expectativas para os alunos, que seja capaz de ter qualidade e equidade para essas crianças.
Crédito: Heitor Peixoto/Congresso em Foco – disponível na internet 22/04/2019