A outra face de Marcos Pontes, o ministro astronauta.
À frente do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Marcos Pontes não usa o título de ministro em primeiro lugar. Em comunicações oficiais e eventos, ainda é o “astronauta Marcos Pontes”. Depois vem o “ministro”. Quando ele não está viajando pelo exterior, há quem aguarde ansiosamente na frente de seu gabinete para fazer um selfie, muitos servidores do ministério, inclusive. O ministro tem fãs.
Em 2017, Jair Bolsonaro era um deputado federal filiado ao PSC, já decidido a concorrer à Presidência da República. Não sabia qual seria o partido que bancaria a empreitada, mas já dizia a aliados que seu ministro de Ciência e Tecnologia seria Marcos Pontes, o primeiro brasileiro astronauta.
Jair Bolsonaro o conheceu quando era integrante da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados. “( Pontes ) é um sujeito muito cativante. Fala mais como educador do que como cientista, porque conta que era um menino pobre que queria voar, e os amigos diziam que pobre não pode voar. É empolgante”, disse o senador Major Olimpio (PSL-SP), de quem Pontes é suplente, a respeito do fascínio que o astronauta exerce sobre o presidente da República.
Filho de um servente e de uma funcionária da rede ferroviária, Pontes nasceu em 1963 e ainda criança nutria fascinação pelo espaço. Nos cadernos da escola, desenhava helicópteros, aviões e foguetes. Além de interesse, era admiração que sentia por seu tio, Oswaldo Canova, sargento da equipe de manutenção de aeronaves de esquadrilha da Força Aérea Brasileira (FAB) em Pirassununga, a três horas de viagem de Bauru. Anos depois, cruzava a cidade com o pai para estudar à tarde em uma escola de eletricista. À noite, fazia outro curso de eletrônica, no Liceu Noroeste.
Nos anos 80, entrou na Academia da Força Aérea e se tornou piloto de caça da FAB. Quando voltava a Bauru, trancava-se no quarto para estudar, mesmo quando a família fazia churrascos animados no quintal de casa.
Em serviço pela Força Aérea em Natal, no Rio Grande do Norte, Pontes conheceu sua esposa, Fátima. Em 1989, ele ingressou no disputado curso de engenharia aeronáutica do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos. Depois das aulas, explicava a matéria para os amigos, esbanjando didatismo. Era visto como dotado de inteligência excepcional, apesar do jeito humilde. Quando ia bem em uma prova difícil, ficava envergonhado de mostrar sua nota. “Ele já tinha uma preocupação com o ser humano, um sentido de brasilidade, um senso de dever com a escola pública”, opinou Victor Hugo Margraf, colega de turma, sobre interesses de Marcos que culminariam, mais tarde, na política.
Antes de cativar Bolsonaro, Pontes também impressionou Lula, que topou que o governo pagasse US$ 10 milhões pelo convênio que alçou Pontes ao espaço. Quando estava na Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês), em 2006, o astronauta conversou com o petista via teleconferência. “Em poucos momentos da história do Brasil, tivemos orgulho de um brasileiro como estamos tendo de você. Você, quando partiu, me lembrava o Ayrton Senna com a bandeira nacional”, disse Lula.
“BOLSONARO SEMPRE AFIRMOU QUERER DAR UM MINISTÉRIO A PONTES. FOI DESACONSELHADO POR MILITARES A ESCOLHÊ-LO. PARA ALÉM DA RIXA HISTÓRICA DO EXÉRCITO COM A FAB, A IDA PRECOCE DE PONTES PARA A RESERVA CAUSAVA UMA MÁ IMPRESSÃO”
A cifra volumosa de gastos foi questionada por alguns, mas funcionários da Agência Espacial Brasileira (AEB) argumentaram que os valores foram investidos na indústria nacional. Em 2006, retornou de sua missão na nave Soyuz, da Agência Espacial da Federação Russa, e foi para a reserva militar. Ainda antes de sair da Força Aérea, foi alvo de uma investigação do Ministério Público Militar pela venda de produtos em seu nome.
No site Conexão Especial, eram vendidas camisetas, livros, relógios, mousepads, adesivos, chaveiros, bonés, canetas, cadernos, cartazes, maquetes e bonequinhos de Pontes. Hoje, o endereço está fora do ar. À época, o astronauta dizia não ter relação com o site, já que militares da ativa são proibidos de ter atividade comercial. Mas a página estava em nome de uma empresa de Christiane Corrêa, sua assessora há 20 anos.
Na época, Corrêa também era dona do site Clube do Astronauta, um fã-clube de Pontes. Corrêa e Pontes são, inclusive, sócios de diversas empresas juntos (e frequentam festas de família um do outro). “A loja é da Fundação Marcos Pontes”, disse Corrêa após a investigação do possível crime ser arquivada no Supremo Tribunal Federal (STF). “O que arrecada é para ajudar a fundação.”
Em 2011, o astronauta também criou uma agência de turismo com um sócio, Marcos Palhares, a Agência Marcos Pontes. Além de viagens convencionais, vendeu excursões pelo espaço sideral que custam em torno de R$ 800 mil e que estão previstas para 2020, em parceria com uma empresa americana. Palhares sonha em ser o segundo astronauta brasileiro e diz que o amigo está afastado das atividades da agência. Pontes e Corrêa ainda constam como sócios na base da Receita Federal.
Quando o Brasil buscava alguém para representar o país na Estação Espacial Internacional, em 1997, Pontes estudava na Califórnia e soube do processo seletivo pelo irmão mais velho, Luiz Carlos. Ficou entre os cinco entrevistados na etapa final da seleção da Agência Espacial Brasileira. Segundo uma pessoa que acompanhou a entrevista, foi o único que manteve a calma, com “sangue absolutamente frio”. Mudou-se para Houston, nos Estados Unidos, com a mulher.
Já de volta ao Brasil, em 2014, convidado por Eduardo Campos, Pontes se candidatou a deputado federal pelo PSB, eleição em que terminou derrotado com pouco mais de 50 mil votos. “Ele nunca falou de política, foi uma coisa recente”, contou a irmã, Rosa Pontes. “Quando ele se candidatou, a gente apoiou, mas não fiquei muito feliz. Política no Brasil é sempre meio complicado.”
A pretensão de ser ministro já aparecia em 2012, no livro infantil O menino do espaço — A história do primeiro astronauta brasileiro , escrito em parceria com Corrêa. “Com sua grande experiência profissional, ele poderia ser designado, por exemplo, para assumir a presidência da Agência Espacial Brasileira. Ou, até mesmo, o Comando da Aeronáutica, o Ministério da Defesa, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação ou o Ministério da Educação”, dizia o texto.
Bolsonaro internalizou a ideia. Durante a gestão de Gilberto Kassab, responsável pela pasta no governo Temer, Pontes já sondava o terreno, fazendo visitas frequentes ao ministério. “Bolsonaro dizia o tempo todo que, se fosse presidente, colocaria o Marcos Pontes como ministro”, contou Major Olimpio. Os generais que aconselham o presidente não tinham a melhor das impressões sobre Pontes. Para além da rixa histórica do Exército com a FAB, a ida precoce de Pontes para a reserva (ele se aposentou aos 43 anos) causa má impressão em setores das Forças Armadas. É comum a crítica de que, depois de passar pela NASA, ele deveria retribuir o investimento milionário do poder público em sua formação continuando em serviço.
“PONTES PASSOU QUASE METADE DOS DIAS ÚTEIS NA PASTA EM VIAGENS INTERNACIONAIS E DELEGOU FUNÇÕES DE GESTÃO A SUA ASSESSORA, CHRISTIANE CORRÊA, QUE TAMBÉM É SÓCIA DE UM SITE DE VENDAS DE PRODUTOS DO ASTRONAUTA NA INTERNET”
Christiane Corrêa foi empregada na pasta como assessora especial de assuntos institucionais. Segundo servidores, ela dá as cartas no ministério, especialmente na relação com as entidades vinculadas, como a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e outras dezenas de siglas. Os gestores das instituições frequentemente passam pelo crivo da assessora e até são barrados antes de falar com o ministro. “Ela é a ministra”, disse uma funcionária.
Para Petrônio Noronha de Souza, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Marcos Pontes tem uma função simbólica importante no governo. “Ele incorpora a história de alguém com origem humilde que chegou aonde chegou graças à educação e ao esforço.” A gestão, porém, é em grande parte terceirizada a militares, como o secretário-executivo, Carlos Alberto Baptistucci, da FAB, e o chefe de gabinete Celestino Todesco, brigadeiro do ar. Pontes comunga a ideia, comum entre militares de cunho desenvolvimentista, de que se invista em tecnologia nacional e se privatize apenas o que for estritamente necessário. Em entrevista recente, o secretário de privatizações do governo, Salim Mattar, afirmou ter recebido a informação de que Pontes não estava disposto a privatizar nenhuma de suas estatais. Pontes disse não ser contra privatizar, mas afirmou que o ato deve ser executado sem “precipitação”.
O ministro passou 28 dos primeiros 70 dias úteis do ano em viagens. Foi duas vezes a Israel, armando seu principal projeto, o de dessalinização da água no Nordeste, ficou uma semana em uma feira de tecnologia em Barcelona e passou um tempo em Houston, no Texas, onde ainda moram seus filhos, em reuniões com a NASA para negociar o acordo da base de Alcântara, um projeto concebido na gestão Dilma Rousseff. Procurada, Christiane Corrêa afirmou que as viagens são essenciais ao serviço do ministério, especialmente no caso de Israel. Na segunda viagem de Marcos Pontes para o Oriente Médio, o intuito era anunciar a abertura de um escritório comercial em Jerusalém, “para promoção do comércio, investimentos e intercâmbio de inovação e tecnologia”.
Nos corredores do ministério, há queixas de que Pontes se ausenta demais dos afazeres executivos e de que ele não montou uma equipe própria. Cargos ainda estão povoados por indicados de Gilberto Kassab, ex-chefe da pasta. No gabinete do ministro, por exemplo, há duas assessoras de confiança do ex-gestor. Funcionários da Telebras, estatal vinculada ao ministério, fizeram uma denúncia em fevereiro em que acusam a existência de dezenas de nomeações políticas. “Enquanto servidores concursados recebem salários médios de R$ 6 mil, os ‘agente públicos’ de indicação política recebem acima de R$ 18 mil para ser funcionários-fantasma de corpo presente”, diz a denúncia enviada à ouvidoria do Ministério da Economia. “Votamos em Bolsonaro acreditando na limpeza moral das instituições, na valorização do mérito, no combate à corrupção, mas a nova gestão silencia e mantém a corja de funcionários lixo.”
Crédito: Natália Portinari/Revista Época.Globo 1086 – disponível na internet 26/04/2019