Pense em Netuno.
À primeira vista, ele é invisível. Mesmo com um bom telescópio.
A uma distância de 4,3 bilhões de quilômetros da Terra, o oitavo planeta do nosso Sistema Solar é pouco mais que um pequeno ponto branco no céu.
É por isso que os planetas mais próximos da Terra, como Vênus ou Marte — que brilham intensamente no céu durante a noite — nos surpreendem desde os tempos antigos.
Por outro lado, só passamos a saber sobre a existência de Netuno no século 19.
Sua descoberta, no entanto, foi duplamente significativa.
Urano e Netuno
Não apenas encontramos um novo vizinho, mas “Netuno marcou a exploração do Sistema Solar, porque não foi encontrado olhando o céu com nossos olhos ou com a ajuda de um telescópio”, diz Lucie Green, uma astrofísica do Mullard Space Science Laboratory da University College London.
Netuno foi encontrado graças à matemática.
No século 19, as leis da gravidade de Newton eram bem entendidas e, com elas, as órbitas dos planetas ao redor do Sol podiam ser previstas.
Exceto a de Urano, que se desviou um pouco do caminho esperado.
Naquela época, Urano era o planeta conhecido que estava mais distante do Sol e alguns cientistas especularam que as leis da gravidade de Newton poderiam não funcionar a uma distância tão grande.
Outros, porém, acreditavam na matemática, o que os levou a pensar que havia um imenso objeto por perto, alterando o caminho de Urano ao redor do Sol.
“Eles calcularam o que, como e onde. E quando giraram o telescópio em direção à área que a matemática indicava, o planeta foi encontrado”, diz Green.
A descoberta de Netuno entrou na história como evidência de que a matemática não é inventada, mas existe.
E foi exatamente isso que intrigou um ouvinte do programa da BBC CrowdScience, Sergio Huarcaya, do Peru.
“De Galileu, que podia prever a velocidade de uma bola rolando ladeira abaixo, até, por exemplo, a existência do bóson de Higgs — que foi previsto com a matemática antes que a partícula fosse encontrada na realidade -, esse poder de prever a existência de coisas que ainda não tinham sido vistas é incrível”, escreveu ele.
“A matemática é um modelo, uma descrição, uma metáfora da realidade… ou é a própria realidade?”
Sergio não está sozinho. Os filósofos refletem sobre isso há milhares de anos. E a questão continua sendo uma causa de profundo debate.
Não há ‘bolo negativo’
É quase certo que os humanos começaram a brincar com a matemática por razões mundanas, como contar e medir as coisas, então vamos começar por aí.
E vamos usar um bolo como exemplo.
A matemática pode nos dizer todo tipo de coisa sobre esse bolo: suas dimensões, seu peso, como dividi-lo – tudo muito tangível.
E o bolo pode nos mostrar que a matemática pode ir aonde a realidade não chega.
Se você come um terço do bolo, você tem dois terços restantes.
Até aí, tudo bem.
E, se você comer os outros dois terços, ficará sem nada.
“Estamos descrevendo os pensamentos dos antigos”, diz Alex Bellos, autor de livros de matemática. “Eles usaram matemática prática para medir e contar, e não chegaram a números negativos”.
Se seu conceito de realidade consiste em objetos que você pode medir ou contar, é difícil imaginar algo que seja menor que zero.
Dívida e negativos
Assim que você come as migalhas do bolo, ele acaba: não há bolo negativo.
No entanto, diz Bellos, há uma área em que você usa números negativos e é completamente natural pensar neles. Ele está se referindo ao dinheiro: “Você pode ter dinheiro, mas também pode dever dinheiro”.
“O primeiro uso prático de números negativos foi no contexto de contas e dívidas”.
Se você deve R$ 5 e eu lhe der esse valor, você terá R$ 0. E essa é uma realidade que começa com um número negativo.
Hoje, é difícil pensar em matemática sem eles, e não apenas em termos de dívida.
Até aqui, continuamos enraizados na realidade.
Mas há coisas estranhas que acontecem quando você usa números negativos.
Enigma tremendo
Se você multiplicar dois números negativos, o resultado é um número positivo: -1 x -1 = 1, e isso traz um verdadeiro enigma.
“Se você começar a usar equações que têm números negativos e positivos, você poderá pensar ‘Como assim? Como você pode encontrar algo que, quando você coloca ao quadrado, é igual a -1?'”, diz Bellos.
“Não pode ser um número positivo, porque quando você os soma, ou multiplica por ele mesmo, o resultado é um número positivo. E nem pode ser um número negativo, pela mesma razão”, diz ele. “Quando se tratou disso pela primeira vez, as pessoas pensaram que era um absurdo”.
Mas, pouco a pouco, os matemáticos disseram, segundo Bellos: “Sim, é um absurdo, mas quando o uso no meu trabalho, chego à resposta certa. Vamos deixar para os filósofos descobrirem o que pode ser. Nós, matemáticos, precisamos de respostas e, se isso nos ajudar a encontrá-los, tudo bem.”
E é assim que saímos da realidade.
Mas, de qualquer forma, a matemática ainda serve para explicá-la.
O imaginário
“A raiz quadrada de -1 é chamada de ‘número imaginário’, que é um nome terrível, porque dá a impressão de que a matemática era real e de repente se tornou imaginária”, diz Bellos.
“Não, a matemática é imaginária desde o início. Podemos falar de três bolos, mas o que estamos vendo são bolos, não estamos vendo ‘três’: três é uma abstração”, enfatiza.
“Isso vale para quando você tem números imaginários. Parece totalmente louco, mas uma vez que você começa a entender como eles se encaixam, é muito lógico. E o comportamento do que chamamos de números reais, com números imaginários – ao que chamamos de números complexos -, é uma linguagem brilhante para descrever coisas como rotação”.
“Hoje em dia, a raiz quadrada de -1 é tão real quanto o próprio -1”, mesmo que seja tão difícil para nós entender como foi -1 para nossos ancestrais.
Não se assuste
Se você estiver perdido, não se preocupe – continue lendo e tudo ficará claro. Sério.
Números complexos permitem soluções para certas equações que não têm soluções em números reais.
Eles são incrivelmente práticos para entender a realidade e funcionam como uma ferramenta em quase tudo que envolve rotação ou ondas.
Eles são usados em engenharia elétrica, radares, imagens médicas e podem ser aplicados para entender o comportamento de partículas subatômicas.
Mas como pode ser que algo que parece existir apenas em sonhos matemáticos acaba sendo tão útil no mundo real?
Para alguns, como o físico húngaro do século 20 Eugene Wigner é quase um milagre.
Wigner se referiu a números complexos em um influente ensaio de 1960 chamado “The unreasonable effectiveness of mathematics in the physical sciences” (“A eficiência irracional da matemática nas ciências naturais”).
Eficácia irracional
Mas se a matemática é projetada pelos humanos exatamente para descrever a realidade, não é lógico que sirva para isso? O que há de irracional nisso?
Vamos nos voltar para alguém que se move entre os campos da filosofia e da matemática: uma especialista em filosofia da física, Eleanor Knox.
“É verdade que, se inventamos a matemática para nos ajudar a entender os sistemas físicos, é muito lógico que o faça. Mas a matemática parece não ter se desenvolvido dessa maneira”, explica ela.
“Há muitos casos em que os matemáticos fizeram algo apenas porque estão interessados nele, e acaba sendo exatamente o que é necessário em algum momento posterior para uma descoberta crucial na física”.
“Um exemplo famoso é a geometria não euclidiana”, diz Knox, referindo-se a um ramo da geometria em que muitos matemáticos trabalharam no final do século 19, sobretudo porque pensavam que parecia interessante.
“Pensava-se que nosso mundo inteiro pudesse ser descrito com a geometria euclidiana, a que você aprende na escola. As regras para um ângulo reto, que os ângulos de um triângulo somam 180 graus, por exemplo.”
Os matemáticos dos anos 1800 não estavam no processo de derrubar a geometria euclidiana. Eles estavam simplesmente explorando e encontraram estruturas matemáticas interessantes.
“No século 20, quando Albert Einstein precisou de uma teoria para descrever as regras do espaço e do tempo para a relatividade geral, o que o ajudou foi a geometria não-euclidiana – ele não teria conseguido sem ela”, acrescenta Knox.
“Hoje em dia, pensamos que o mundo tem a estrutura dessa geometria que antes era estranha, mas nenhum dos matemáticos que começaram a trabalhar nela previu essa descoberta específica”, conclui ela.
Casos como esse nos fazem pensar que, se não milagrosa, a relação da matemática com a realidade é, no mínimo, surpreendente.
A realidade fundamental
À medida que a física moderna avança, é difícil para nós, meros mortais, entender a matemática complicada e a estranha realidade que ela descreve.
O que é surpreendente é que, com a matemática, parece possível explorar muito mais do que nossos sentidos permitem.
No entanto, na busca de uma realidade fundamental, será que a matemática atingirá um limite em sua capacidade de descrevê-la?
“O século 20 nos deu duas de nossas teorias físicas mais bem-sucedidas: a da mecânica quântica (o mundo na escala do ultra-pequeno, dos átomos e subátomos) e a da relatividade geral”, diz Knox.
“Acontece que fazer as contas dessas duas teorias para trabalharem juntas é incrivelmente complicado.”
“Não temos uma abordagem coerente para entender como essas duas teorias podem existir no mesmo mundo – como elas podem descrever a mesma realidade”, diz. “Você precisa lidar com níveis impressionantes de complexidade sem poder, no momento, conectar o que está pensando às experiências”.
No entanto, como vimos antes, muita coisa começou assim: uma ideia em busca de sua função prática. Mas talvez tenhamos chegado a um limite?
“Nesse ponto, talvez se possa concluir que, até agora, tivemos muita, muita sorte pelo fato de a matemática descrever nosso universo”, diz Knox.
“Outra opção é pensar que a matemática descreve partes do mundo, não sua totalidade. Ou que entender o mundo em sua totalidade é realmente complicado. Ou que a matemática é diabolicamente complicada e demais para nós, ou que ainda não a entendemos, mas que eventualmente entenderemos”, diz ela.
Uma grande diferença
Talvez não nos surpreenda que às vezes seja incrivelmente difícil fazer com que as leis da matemática coincidam com as leis da realidade física. Afinal, não são a mesma coisa.
Como Einstein disse: “Quanto mais se referem à realidade, mais incertas as leis matemáticas se tornam, e quanto mais precisas elas são, menos se referem à realidade”.
“A matemática tem uma característica particular: é absolutamente verdadeira ou falsa. Se eu provar algo em matemática, ninguém pode duvidar desse fato”, Knox explica. “As leis da física não são assim. Essa é uma das grandes diferenças.”
“Muitas vezes erramos com nossas leis. As leis de Newton são bonitas, elegantes e, em alguns casos, válidas, mas não são toda a verdade. Não há dúvida de que, no futuro, será provado que as leis de Einstein também são aproximadas”, diz a filósofa da física.
Descoberta ou inventada?
De onde vem a matemática?
Esta é uma pergunta para um matemático.
Eugenia Cheng é cientista residente na Escola do Art Institute, em Chicago.
Ela pode responder se a matemática é algo que é descoberto ou inventado.
“Eu realmente sinto que descubro conceitos e invento maneiras de pensar sobre eles. Quando faço pesquisas abstratas, sinto que estou vagando por uma selva abstrata em busca de coisas e então invento uma maneira de falar e teorizar sobre elas para conseguir organizar meus pensamentos e comunicá-los”, diz ela.
Cheng trabalha no campo da teoria das categorias (às vezes chamada de “matemática da matemática”), que tenta construir pontes entre diferentes áreas da matemática.
“O que é real, afinal?”
É difícil pensar em algo mais abstrato, por isso perguntamos se ela sente que a matemática que estuda também está relacionada à realidade.
“Quando as pessoas me perguntam sobre a realidade, quero responder: ‘o que é real, afinal?’. O que chamamos de ‘realidade’ são alucinações que assumimos como reais porque todos tendemos a percebê-las da mesma maneira.”
“As pessoas dizem que os números não são reais porque você não pode tocá-los. Mas há muitas coisas reais que eu não consigo tocar, como a fome”, exemplifica ela.
“É por isso que prefiro falar sobre coisas concretas, aquelas que podemos tocar e com as quais podemos interagir diretamente, e coisas abstratas, com as quais interagimos em nosso cérebro”, diz. “A matemática é abstrata, mas uma ideia abstrata pode ser tão real quanto qualquer outra coisa.”
O que é real?
Por um lado, pode-se afirmar que a matemática é realidade.
Pense, por exemplo, em nossa biologia, que é baseada na química, que é essencialmente governada pelas leis da física… e aí chegamos a números.
Ou pense no céu azul, que é explicado pelos comprimentos de onda da luz refratada… e tudo isso são números.
Parece que, se você se aprofundar o suficiente, a realidade física é matemática.
No entanto, a matemática parece não ser capaz de nos dizer algo significativo sobre algumas das coisas mais importantes da vida, como amor, fome ou moralidade.
Portanto, de todas as perguntas realmente grandes, só podemos responder uma com alguma certeza: talvez não encontremos respostas definitivas para a pergunta que Sergio Huarcaya enviou do Peru à BBC.
Bem, agora podemos dizer que certamente não as encontraremos. Mas ainda valia a pena procurar.
Crédito: BBC Brasil – disponível na internet 18/11/2019