Há 2 dias, depois de sair de uma prova de Tarifação de Seguros, ocorreu-me uma analogia que vou compartilhar com vocês. Uma seguradora hipotética dispõe de uma grande carteira de clientes (segurados) no ramo de automóvel. As características dos segurados e de seus automóveis são diversas: há idosos, jovens recém habilitados, carros importados de alto valor, carros populares, residentes em áreas de alto índice de roubo, pessoas que utilizam o carro só para levar os filhos à escola, pessoas que trabalham com o carro etc.
Obviamente, em uma carteira tão grande e diversa, há segurados com alta probabilidade de terem um sinistro (os ditos riscos ruins) e outros com baixa probabilidade de sinistro (riscos bons). Além do desafio de classificar corretamente os riscos com as informações disponíveis, a seguradora deve precificar corretamente o seguro de cada cliente. Cobrar um prêmio menor do que se deveria pode levar a seguradora à insolvência; e cobrar um prêmio caro demais pode tornar o produto não atrativo.
De forma bastante ilustrativa e ultra simplificada, imagine que, em um ano, essa seguradora arrecadou R$ 100 milhões em prêmios de seguro de automóvel e, para esses clientes, houve R$ 75 milhões em sinistros. Logo, a sinistralidade da carteira no ano foi de 75%. E, digamos, que essa seguradora acha esse percentual elevado demais, desejando possuir uma sinistralidade menor, de até 70%.
Um raciocínio natural para diminuir a sinistralidade da carteira é aumentar a tarifa (prêmio). Assim, os prêmios arrecadados serão maiores. Já os sinistros talvez não mudem muito, pois são eventos aleatórios provenientes dos mesmos segurados, cujo perfil também não deverá mudar muito. Logo, a sinistralidade cai.
Será que é isso mesmo que ocorre?
Esse método de ajuste de tarifa é bastante simples de ser implementado, mas possui desvantagens. Ao aumentar uma tarifa de forma “linear” a todos, talvez a sinistralidade não vá diminuir na proporção esperada. Os riscos bons – aqueles motoristas experientes, muito cuidadosos, ou que pouquíssimas vezes usam o carro – talvez acharão o produto caro demais e serão afastados, procurando outra seguradora ou deixando de ter seguro. Já os riscos ruins, para os quais o seguro é quase que imprescindível, estes talvez continuarão na carteira e absorverão o aumento tarifário.
Logo, um fenômeno possível é o afastamento dos riscos bons e a concentração dos riscos ruins na carteira, o que é indesejável.
Claro, um ajuste linear tarifário é bastante fácil de ser implementado. Se usado com parcimônia e sensatez, possui suas vantagens. Todavia, tomar decisões olhando somente para a massa agregada de informações, sem buscar investigar as características dos riscos individuais ou dos grupos em que eles estão inseridos, pode gerar consequências indesejáveis.
Por que fiz essa analogia?
Quando se fala de gestão de pessoal – ainda mais em se tratando de servidores públicos, onde os princípios da isonomia, da legalidade e da impessoalidade devem balizar e reger a gestão – por muitas vezes há a adoção de medidas lineares, analisando-se a massa agregada de informações e tomando-se decisões com base nela.
Se o gasto total é alto, corta-se uma determinada parcela remuneratória de todos; se há abusos por parte de servidores que mais passam o tempo fazendo cursos ou indo a congressos do que trabalhando, cortam-se as capacitações de todos; se há excessos de alguns com viagens injustificadas, criam-se procedimentos restritivos que, no fundo, quase inviabilizam a realização de serviços externos. Em suma, ao invés de investigar e tratar os casos de acordo com suas características, opta-se pelo caminho simples das medidas e ajustes gerais.
Na reforma administrativa, se ajustes lineares forem realizados sem parcimônia e sensatez na gestão de pessoas, o que poderá ocorrer é a concentração de “servidores ruins” e a fuga dos “servidores bons”, analogamente à carteira de seguros acima.
O “servidor ruim”, – aquele que pouco ou nada produz, não é dedicado com a coisa pública – esse já está tão desacostumado a trabalhar, e já está tão dependente do seu cargo público para subsistência, que vai entrar e sair inerte a qualquer reforma administrativa. Nenhum PDV irá atraí-lo; o mercado de trabalho, tampouco; as medidas restritivas para tentar fazê-lo produzir surtirão pouco efeito. Em anos de repouso inercial, praticamente só desenvolveu elasticidade para desviar de trabalho. E como pessoas de baixa produtividade geram tão pouca (ou nenhuma) evidência, até mesmo uma demissão fica impraticável – já que as demissões, via de regra no serviço público, quase sempre só ocorrem com evidência objetiva de roubo, improbidade administrativa, abandono de cargo etc., e quase nunca ocorrem por falta de evidências de produção. O “servidor ruim” continuará “na carteira de servidores”. Ele absorverá todas as mudanças da reforma administrativa.
Já “o servidor bom”, – que no dia-a-dia já se sente profundamente incomodado ao olhar para o lado e ver o “servidor ruim” ‘pagando o mesmo prêmio de seguro que ele’, mas nem por isso deixa de estudar, inovar, arregaçar as mangas e produzir – esse será afastado. A depender do grau das mudanças, estas podem levá-lo a um estado de reflexão e à conclusão de que, para ele, talvez valha mais a pena abrir seu próprio negócio, buscar recolocação no mercado ou até mesmo vir a prestar serviço ao próprio poder público do que continuar na condição de funcionário efetivo.
Igual à carteira de seguros, onde se queria diminuir a sinistralidade e houve insucesso, o Estado pode vir a não conseguir aumentar sua eficiência como esperado se a reforma administrativa for mal planejada e executada. Para cumprir seu objetivo, um estudo bastante criterioso deve ser realizado. Neste caso, a pressa é inimiga da perfeição.
Não importa o tamanho do Estado, se grande ou pequeno. O que importa mesmo é sua eficiência: se ele de fato entrega aquilo que propõe entregar, com qualidade, em pouco tempo e gastando o mínimo possível de recursos. Estado gigante ou Estado nanico, se ineficiente, são ambos inservíveis.
NOTA: Para se ter uma dimensão do volume de pessoal da União, confiram o Painel Estatístico de Pessoal (http://painel.pep.planejamento.gov.br). Lembrando que nele só há dados do Executivo Federal. Estão de fora deste site todo o pessoal dos poderes Executivos Estaduais e Municipais, bem como estão de fora os poderes Legislativo e Judiciário, tanto Federal como Estadual.
Crédito: Ricardo Ivanov – disponível na internet (linkedin) 16/12/2019
Parabéns pelo belo artigo. Excelente analogia e reflete muito bem o momento atual.