Na rua do desemprego no centro de São Paulo, você pode até tropeçar em uma delas sem querer, a “caixinha da esperança” no calçadão de pedras portuguesas. Os recipientes de plástico, espalhados pela Barão de Itapetininga, fazem um convite a quem não tem um salário à vista: coloque seu currículo aqui.
Daí para frente, surge um fio de possibilidades: um recrutador pode pescar sua ficha, encontrar um serviço perfeito para você e, de repente, te chamar para uma entrevista. Nunca se sabe.
Não é que a Barão e suas caixas ofereçam empregos garantidos, daqueles em que é só chegar, assinar uns papéis e começar na segunda-feira — dizem que até já foi assim nos anos 80. Mas o fato é que historicamente essa rua é uma espécie de Meca para parte dos paulistanos pobres, sem serviço e sem grandes qualificações.
De um lado os desempregados e, do outro, uma dúzia de agências oferecendo trabalhos que não exigem lá muita formação.
Parte dessas empresas é representada pelos chamados plaqueiros, homens e mulheres cuja única função é ficar sentado no meio da rua, segurando cartazes com anúncios de vagas e recebendo os currículos nas caixas de plástico.
Um deles é Jonas Luis dos Santos, de 72 anos, 15 deles como plaqueiro — ganha R$ 50 por dia. Todos as manhãs, ele chega na Barão por volta das 7h, compra duas caixas por R$ 0,50 cada uma e coloca panos vermelhos em cima delas, onde está escrito: “Temos vagas: vendedor, vigilante, porteiro, motorista”.
Em dias bons, conta, recebe até 300 currículos (duas cópias por pessoa), que depois leva para duas agências por ali. Porém, segundo ele, dezembro costuma ser um “mês fraco” — tem juntado só 70 folhas por dia. “Nessa época do ano, as pessoas não querem trabalhar, não. Povo quer ir para praia, quer namorar”, diz.
Mas Jonas não fala isso como uma crítica aos desempregados, pois ele mesmo sonha com uma aposentadoria mais tranquila, longe do agito do centro paulistano. Para isso, tem jogado na loteria todas as semanas nos últimos 30 anos. Ainda não está rico, obviamente.
“Quando eu ganhar, vou comprar uma fazendinha no meio do mato, para ficar na rede o dia inteiro, assando uma carninha na brasa e pedindo a Deus uns dias a mais no meu contrato”, diz.
Tanta experiência no trato com o desemprego faz ele arriscar um cenário melancólico para quem está na pindaíba: “Se você tem trabalho e dinheiro, as pessoas se aglomeram perto de você, viram seus amigos. Mas, se você está duro, o povo quer distância, atravessa a rua para não ter de pagar um cafezinho pra você.”
‘Falo a verdade desse país’
Além de receber currículos, os plaqueiros da Barão também vendem guias com endereços e e-mails de agências de emprego e consultorias de recursos humanos.
Nas folhas de Aldo Braga, 72, por exemplo, há 486 contatos de locais de recrutamento pela cidade. “Todos mês, atualizo a lista, checo uma por uma. É o melhor guia dessa rua”, diz. Custa R$ 3, mas, se você chorar, ele faz por R$ 2.
Aldo é plaqueiro há 10 anos, diariamente sentado ao lado de uma banca de jornais. De óculos Chilli Beans e jaqueta de um couro surrado, ele sempre termina um pensamento fazendo uma pergunta ao interlocutor, como se pedisse uma confirmação para o que acabou de dizer. “Costumo falar que desde que me entendi nessa vida, esse país não tem conserto. Você acha que tem conserto?”, questiona.
“Tem gente que vem da casa do chapéu para essa rua, chega aqui morrendo de fome e sem ter o que comer. Quantas vezes não paguei um café para o povo? Eu falo a verdade desse país, sei o que o povo sofre. Se você trouxer um político aqui, falo isso na cara dele. E o que você acha que o político vai fazer se eu disser a verdade? Vai fazer nada. Você acha que ele vai me matar aqui no meio da rua?”.
Há um mês, Aldo perdeu sua companheira, que morreu depois de uma cirurgia mal sucedida no SUS, conta. Era seu quinto casamento. Ele tem 13 filhos “no mundo”, mas hoje vive sozinho em casa. Na rua, tem a companhia dos desempregados que param para conversar. “É claro que estou triste, amigo. Você acha que se eu estivesse feliz, estaria aqui falando com um repórter há tanto tempo?”.
Por que tanto ‘não’?
É na caixa dos currículos de Aldo que Nívea Amanajás, 44, despeja sua esperança de conseguir um salário em breve, pois está parada desde que saiu de Macapá, há nove meses. Mas, para ela, São Paulo tem sido mais difícil do que a promessa de emprego fácil. Até agora, ela só recebeu respostas negativas em dezenas de processos seletivos. Para sobreviver, depende do salário da filha, da ajuda dos pais e de bicos eventuais como faxineira.
Duas vezes por semana, Nívea sai da Vila Sônia (zona oeste) até a Barão de Itapetininga para checar as novas vagas que pipocaram na rua — leva lanches na bolsa para não ter de gastar com o almoço. “Já fiz seleção com seis fases. Tem questionário sobre sua vida, prova de lógica, de matemática, português e até um vídeo. Sim, tive que fazer um vídeo. Aí te pergunto: para que tudo isso se era uma vaga de assistente administrativo?”
Ela tenta encontrar respostas para tantos “nãos”. “Às vezes, penso que é por causa da minha idade: as pessoas podem achar que, com 44 anos, já estou pensando em aposentadoria, que vou fazer corpo mole, que não tenho mais gás”, afirma. “Também pode haver um problema com meu peso. Muitos questionários para atendimento ao público pedem para você colocar seu peso. Ou, quando chego na entrevista, parece que eles preferem mulheres mais magras e mais bonitas.”
‘Uber era o meu ganha-pão’
Na Barão, você pode encontrar pessoas que, para além da esperança de um serviço novo, demonstram mais o desespero de ter perdido o anterior. É o caso do ex-entregador Roberto Helmer Barros, 37, que pede para conversar sentado em uma padaria. “Vamos tomar um café senão vou infartar de nervoso”, diz.
Ele conta que veio à rua por dois motivos: procurar emprego e encontrar um advogado trabalhista para processar o Uber, aplicativo de entregas para o qual ele trabalhou por cinco meses. Fazia entregas a pé (sem uso de bicicletas ou motos).
Roberto ganhava até R$ 4 por um pedido em que precisava caminhar por, no máximo, 1,2 quilômetro, diz. “Para mim estava ótimo, porque gosto de andar. Tirava uns R$ 90 por dia, andando uns 20 km no total. Mas, depois, o Uber começou a me mandar corridas de 5 km. Eu precisava pegar ônibus ou metrô”, afirma, mostrando prints das corridas mais longas, que guardou “por segurança.”
“Um dia, caiu um pedido de 9 km. Precisava pegar um pote de açaí no centro e levá-lo até à Lapa. Pensei: ‘assim não dá, como vou andar 9 km pra fazer uma entrega?’. Comecei a recusar essas corridas mais longas, porque não era isso que a Uber prometia quando entrei na plataforma. Então eles me excluíram do sistema e não consigo mais trabalhar. Estou há 11 dias parado”, diz.
“Fiz 1.353 viagens, e nunca recebi uma reclamação”, diz, despejando açúcar no café.
Como ser um ‘fiscal de piso’
Por causa desse ecossistema do (des)emprego, talvez os prédios da Barão sejam dos poucos da cidade em que não é preciso se identificar na portaria, pois você pode ser apenas mais um em busca de trabalho em alguma empresa de recrutamento por ali. É possível subir escadas, pegar elevadores, ir ao banheiro e abrir portas de salas comerciais sem nenhum questionamento.
No Edifício Claudina, por exemplo, há pequenas agências (“faça aqui seu cadastro”), dezenas de escritórios de direito trabalhista (“Problemas com seu FGTS, INSS, pensão, seguro-desemprego?”), lan-houses (“faça seu currículo por R$ 2), lojas de empréstimo consignado (“contas a pagar? Aqui você tem dinheiro fácil”), além de cursos profissionalizantes.
Uma delas é a Discimus (“aprendemos”, em latim), que oferece treinamento para porteiro, recepcionista, controlador de acesso e fiscal de piso (aquele funcionário do shopping para quem você pergunta onde fica a praça de alimentação).
Um dia de curso, com as quatros modalidades, custa R$ 120. “As pessoas nos procuram porque não conseguem nada há anos, estão despreparadas para a maioria dos empregos, têm só o ensino fundamental. Elas estão desesperadas para colocar alguma coisa no currículo”, diz Fábio de Oliveira, 48, um dos donos da Discimus.
Ele mesmo não precisou de curso algum quando conseguiu seu primeiro emprego na Barão, nos anos 80. “Antes você vinha aqui e conseguia um trabalho no primeiro dia. Era muito fácil. Virei office boy com 14 anos. Hoje, falta vaga e as empresas exigem muita formação, cursos, experiência. Até para ser faxineiro você precisa de um curso”, diz.
‘Seja proativo’
Em um outro prédio funciona uma das maiores agências de recrutamento da cidade, a Luandre, há 49 anos na Barão de Itapetininga. Todos os dias, ela recebe até 1.500 currículos por meio de um aplicativo, de seu site e de visitas presenciais. Só nesse ano, a empresa diz que participou da seleção de 34.348 vagas em suas 11 unidades no país.
Na recepção, uma dúzia de desempregados à espera de uma entrevista lê, na TV pendurada na parede, algumas dicas para ser efetivado em uma vaga até então temporária: “mostre capacidade, conhecimento e interesse pela função, faça cursos, vá a eventos, absorva conhecimento, seja proativo.”
Como outras consultorias de RH, a Luandre é contratada por outras empresas (de serviços terceirizados, em sua maioria), recebe as fichas dos candidatos e faz as entrevistas. Na unidade da Barão, a agência recruta pessoal para vagas que exigem menos qualificação, como vendedores, seguranças, faxineiros, auxiliar administrativo.
Porém, mesmo sem grandes exigências, os desempregados da Barão precisam mais do que apenas sorte. “Na entrevista, nós analisamos se a pessoa tem experiência, pontualidade, proatividade e casos de sucesso para apresentar”, diz Andreia Marques, especialista em recursos humanos da Luandre. “Depois, se ela passar, ainda precisa fazer uma entrevista com o gestor da empresa.”
Sobrevivendo à crise na Barão de Itapetininga
Na Barão, há também aqueles que usam a própria rua para sobreviver à correnteza da crise econômica e do desemprego.
No calçadão, você vai ver dezenas de entregadores em frente a cinco redes de fast food, todos esperando por um pedido de entrega que renda mais uns R$ 5; uma mulher cantando Elis Regina para ganhar alguns trocados; moradores de rua pedindo uma moeda para o almoço; mulheres na frente de uma loja que compra cabelo humano para fazer perucas; dezenas de camelôs vendendo de tecidos africanos a piões com lâmpadas de led; velhinhos com cartazes anunciando a compra de ouro e de vales-refeição.
No meio da rua, um grupo faz uma pesquisa de campo sobre sucos em pó (dá para ganhar R$ 60 opinando sobre refrescos variados). Mais à frente, é possível diminuir a fome respondendo a outro levantamento, dessa vez sobre a diferença entre marcas de batata chips: “Essa batata está mais ou menos salgada que a primeira? Ela grudou no seu dente? Você acha que uma loja que venda essa batata se preocupa com o cliente?”
Então ela ressurge no meio do calçadão, renovando as possibilidades: a caixa de currículos em frente a outro plaqueiro, a caixa onde os desempregados depositam hoje a esperança de dias melhores.