“Batom na cueca”

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Como se fosse hoje, recordo de uma família conservadora, cuja filha adolescente “espevitada”, como se dizia na época, tinha permissão para namorar de dia (à noite, os lobos são pardos). Certo dia, retornando da escola, a mãe zelosa reuniu os uniformes para lavanderia e se deparou com uma sujidade estranha na barra da saia, questionando a jovem sobre “aquilo”. Numa resposta assertiva “vai ver que é”, nada além foi discutido e dito sobre o que poderia ser “aquilo”. Naquele momento se instaurava uma dúvida pela desconfiança sempre presente, pelas atitudes e comportamentos depreendidos e que, sem maiores alardes (o que seria bizarro), deixara de ser estranho pelo simples retrucar àquela acusação maliciosa.

Concluí que, desde aquela época, afirmações ou respostas sem rodeios ou de quem não titubeia em explicações são normalmente aceitas, se não questionadas logo a seguir. No momento, continuamos a vivenciar esse comportamento na ilogicidade das mensagens, nas entrevistas e declarações oficiais. 

Centenas de afirmações absurdas têm sido veiculadas como verdades, ou simplesmente desditas, sobre os desmatamentos espontâneos, os brigadistas incendiários, as queimadas naturais, o desprezo a determinados estados nordestinos, as rejeições aos direitos humanos, às políticas de ciência e tecnologia, os ataques aos programas educacionais, as desconfianças sobre quaisquer dados oficiais, as acusações infundadas sobre origem das manchas de óleo no litoral ou responsabilização ideológica de culpados, os cortes de investimentos públicos, a aversão à cultura, as ameaças sutis e subliminares à democracia acompanhadas da dignificação de algozes e exaltação aos tempos ditatoriais e suas regras de exceção, sempre soltadas irresponsavelmente ao léu, sem refutação, investigação e que são aceitas jornalisticamente como banalidades, ou seja, sem maiores perplexidades, quando deveriam ser contestadas, contraditadas cientificamente, desmentidas ou juridicamente ilididas.

A “vaza jato”, assim chamada a divulgação de conversas “estranhas” entre agentes da lei predispostos a combater a corrupção, autointitulados de grupo-tarefa, é um exemplo de desvelamento de absurdos que são escanteados ao se afirmar “na cara dura” que o conteúdo, ou melhor, o teor das revelações (ditas “supostas” pela mídia corporativa) não pode ser considerado em se tratando de revelações obtidas de modo ilegal, sem autorizações judiciais pertinentes, quando os próprios envolvidos nos vazamentos fizeram uso político (lawfare) de “escutas” espúrias de autoridades, obtendo resultados assemelhados, o que em qualquer país sério seria tratado como traição de Estado. No entanto, entre nós, desculpas cordiais por enganos casuais servem para reparar o malfeito.
Quando não, os fatos a descoberto levam ao indulto dos data venias pela impossibilidade de serem considerados, apesar de claros e incriminatórios, e se dissimulam em respostas “aluadas”, sem explicações como “o batom da cueca”, aceitas pela sociedade como simples deslizes resultantes do preceito de que “os fins justificam os meios”, isto é, mesmo que por meios por vezes inescrupulosos para o atingimento de fins de conveniência parcial e duvidosa, o que contraria o Estado Democrático de Direito.

Luiz Fernando Mirault Pinto: Físico e administrador – pesquisador aposentado do Inmetro. [email protected]

As cenas se repetem, são tratadas superficialmente, ou melhor, ocultadas pela simples “retirada do sofá da sala”, solução encontrada numa expressão de anedota popular em que se procura sanear os deslizes, esquecendo a narrativa, os comportamentos e as atitudes dos seus responsáveis ou autores dos enredos, transferindo-os a um objeto qualquer, facilmente esquecido ou descartado, como as desculpas seguidas da prática contumaz de caixa dois admitida, tornando uma ação criminosa de réu confesso numa trivialidade. 

Os fatos concretos tornam-se abstratos; a literalidade de textos é interpretada em função de uma vantagem ou solução conveniente; alegações e delações não necessitam de provas desde que atendam às convicções ou às argumentações; informações sem lastro ou estudos, divulgadas como “balão” para inferir a opinião pública e que influem no “humor econômico” e na estabilidade do mercado, e quem sabe (?) patrocinando ganhos nas variações da moeda daqueles que têm a responsabilidade de guardar sigilo sobre informações privilegiadas. Vamos nos acostumando às respostas afirmativas ou negativas com: “É isso aí bicho”, ou “não estou nem aí”

Crédito: Luiz Fernando Mirault Pinto/Correio do Estado – disponível na internet 24/12/2019

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