A partir de 2015, cerca de três milhões de pessoas que conseguiam pagar planos de saúde passaram a rescindir contratos ou optar por planos com preços menores. Esse contingente agora depende parcial ou integralmente do Sistema Único de Saúde (SUS). Se essa parcela da população perdeu poder de compra em razão da crise econômica, as operadoras alegam que também foram prejudicadas.
Na tentativa de chegar ao que consideram um equilíbrio, as empresas apresentaram em outubro um conjunto de ideias que gostariam de ver incorporadas às normas que regem a saúde suplementar. O documento veio à luz em uma reunião da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) com outras entidades sob o título de “Uma nova saúde suplementar para mais brasileiros”.
Antes do seminário, as linhas gerais e alguns detalhes da proposta circularam pela imprensa com o rótulo de “Novo Mundo”.
O intuito da federação é incorporar ao sistema camadas da população que supostamente nunca tiveram acesso ao serviço. Isso seria feito pela chamada modulação das coberturas, que acarretaria mais opções, a preços menores. Ao encontro de outubro esteve presente o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que elogiou o papel dos planos: “sem a participação do setor privado, não é possível enfrentar o desafio de garantir a toda a população brasileira o direito constitucional de acesso a serviços de saúde de qualidade”.
Debate
Em audiência pública nessa terça-feira (26), no Senado, o presidente da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), João Alceu Amoroso Lima, reforçou algumas das propostas contidas no “Novo Mundo”. Sugeriu que o poder público autorize as operadoras a oferecerem convênios que foquem “apenas na atenção primária”, isto é, que cubram somente consultas médicas e exames mais simples, excluindo procedimentos complexos, como cirurgias e internações.
Outra forma sugerida por Lima para baratear as mensalidades é o escalonamento gradual dos preços para os clientes com mais de 59 anos. Atualmente, o último reajuste permitido pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) ocorre nessa idade.
— Por que não escalonar mais essa faixa também, ao longo dos 20 anos seguintes, em períodos? Isso vai evitar que muitos saiam dos planos por não terem renda para pagar — propôs ele na Comissão de Transparência, Governança, Fiscalização e Controle e Defesa do Consumidor (CTFC).
O presidente da FenaSaúde também reclamou dos limites de reajuste de mensalidade impostos aos planos de saúde individuais pela ANS, responsáveis, segundo ele, por praticamente tirar os planos individuais do mercado, deixando os planos coletivos, que praticamente não sofrem interferências da agência reguladora.
Em contraponto, a diretora do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Marilena Lazzarini, lembrou situações “esdrúxulas e abusivas” envolvendo planos de saúde antes do Código de Defesa do Consumidor. Ela disse que, graças ao avanço das leis, os planos passaram a ser obrigados a aceitar clientes idosos e a cobrir todas as doenças listadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
De acordo com Marilena, não há igualdade de forças entre as partes no contrato, isto é, operadoras e clientes:
— Os planos falsos coletivos têm reajustes absurdos. É uma coisa que fica completamente sem controle.
De acordo com Britto, o usuário do plano de saúde é quem escolherá quais tipos de serviço quer pagar. É como se o consumidor tivesse que adivinhar quais doenças terá. O diretor do Idec diz que isso é igualmente negativo para as empresas:
— A operadora terá que oferecer todos os tipos de serviço para que o consumidor possa escolher. O operador corre o risco com as despesas [da oferta do serviço] e o consumidor com a sua saúde, porque as operadoras estão oferecendo e o consumidor pode não utilizar. Isso é muito perigoso, isso não é um plano de saúde, um seguro, isso é um miniplano, um contrato de serviço que vai induzir as pessoas ao erro.
O consultor legislativo do Senado Marcos Paulo Eirado considera até natural que as empresas tentem aumentar ao máximo as suas margens de lucro, mas julga ser improvável que a proposta seja sequer apresentada por algum parlamentar. E mais difícil ainda que a aprovação ocorra.
Segundo a FenaSaúde, o setor se preocupa com o debate amplo da saúde suplementar. Sobre a crítica quanto à má qualidade dos novos produtos, a federação responde que a proposição deve ser debatida em conjunto com a sociedade para se chegar à sustentabilidade do sistema.
O Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) fez um manifesto público contra a proposta das seguradoras. Esse documento obteve, até agora, a assinatura de mais de 30 entidades ligadas à medicina e à proteção do consumidor. No manifesto, o Idec denuncia os chamados “planos pay-per-view” (pagar para ver). Conforme o órgão, as operadoras pretendem deixar de fora da cobertura atendimentos mais caros e doenças frequentes como câncer e problemas cardíacos.
Em nota, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) reconhece que entidades podem promover o debate setorial. Mas esclarece também que discute medidas para o enfrentamento dos desafios do setor. Alguns desses temas estão definidos na Agenda Regulatória da ANS. Dois deles são a garantia de acesso da população aos planos de saúde e as melhorias relacionadas à cobertura assistencial.
Problemas atuais
O brasileiro tem dificuldade para bancar um plano de saúde. Redes sociais e colunas de leitores na imprensa estão repletos de reclamações sobre reajustes, muitas vezes aplicados de forma arbitrária, o que leva à rescisão de contratos. Além disso, a cobertura oferecida nem sempre é satisfatória. E muitas vezes não engloba serviços complexos.
Justamente para dar maior poder aos consumidores, tramita no Senado o Projeto de Lei (PL) 1.855/2019, do senador Weverton (PDT-MA), que obriga as operadoras a ofertarem testes de detecção do zika vírus a gestantes. A matéria aguarda emendas na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE).
Em agosto, a Comissão de Transparência, Governança, Fiscalização e Controle e Defesa do Consumidor (CTFC) do Senado realizou uma audiência pública para debater exclusivamente o tema dos preços e reajustes, sob a presidência do senador Rodrigo Cunha (PSDB-AL). Segundo o parlamentar, fica cada vez mais clara a necessidade de buscar uma solução para que os usuários do plano de saúde não fiquem desamparados quando ultrapassam os 60 anos. Nessa faixa etária, muitos brasileiros desistem de pagar um plano por causa dos preços elevados.
— Aquele que completa 60 anos é convidado a sair do plano. Seja pelos reajustes, por faixa etária aos 59 [anos], que ultrapassam o nível de razoabilidade na grande maioria dos casos, seja também pela dificuldade de ingressar com mais de 60 anos — disse Cunha.
A chamada inflação dos planos de saúde é maior que a inflação geral desde 2005. Na avaliação do consultor Marcos Paulo Eirado, isso ocorre porque o setor inova muito e sempre aparecem medicamentos e tecnologias com preços mais altos.
— As operadoras reclamam porque as despesas aumentam, é claro, mas as novas tecnologias devem ser oferecidas. Porque, apesar de caras, elas previnem despesas maiores — pondera, por sua vez, Igor Britto, diretor do Idec.
O economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Carlos Octávio afirmou na audiência de agosto ser importante que a discussão sobre a cobertura dos planos ganhe uma “natureza estrutural”. Para ele, “o mercado dos planos de saúde é extremamente subsidiado”. Não deveria ser natural que as taxas de inflação dos planos fossem maiores do que a média nacional.
Como os contribuintes recebem de volta, na restituição do imposto de renda, parte do que pagaram aos planos durante o ano, o Estado abre mão dessa parcela arrecadada em benefício das operadoras. Segundo o economista do Ipea, em 2017, a Receita Federal teve um “gasto tributário” de R$ 20,2 bilhões em saúde.
Para o senador Reguffe (Podemos-DF), o custo de um plano de saúde é proibitivo para a maioria das pessoas:
— Eu acho que os consumidores pagam mensalidades muito caras e não têm uma segurança nos serviços que são prestados. Por isso é preciso o aperfeiçoamento da legislação.
O parlamentar é autor do Projeto de Lei do Senado (PLS) 133/2015, que dá tratamento jurídico de plano individual aos planos coletivos com menos de cem beneficiários, e do PLS 153/2017, que impõe às operadoras a condição de oferecer planos individuais para conseguirem obter registro na ANS. O parlamentar observa que as empresas se recusam a vender planos individuais, pois as restrições impostas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) são mais frouxas para planos coletivos.
— Os planos coletivos podem ser rescindidos unilateralmente e não têm o reajuste controlado pela ANS. Quando uma pessoa contrai um câncer, por exemplo, pode aquela operadora achar que aquilo não dá mais lucro e cancelar aquele plano. Isso acontece principalmente nos planos de poucas vidas [planos coletivos com menos de cem pessoas] — explica o senador.
Para consultor legislativo Marcos Paulo Eirado, os planos coletivos têm mais poder de barganha porque geralmente são contratados por grandes organizações:
— As regras do plano coletivo não são tão apertadas quanto as do plano individual. O plano individual parte de outro pressuposto. Um indivíduo ou uma família está contratando um plano de saúde e ele é frágil nessa relação contratual. Como ele é frágil, não tem todas as condições de negociar. Para uma operadora grande ele é ninguém.
Nota: Matéria publicada pela agencia senado em 26/11/2019
Agência Senado de Notícias 11/01/2020