Após venda para Boeing como será a ‘nova Embraer’

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Uma empresa com cerca de nove mil funcionários, três fábricas no País e outras duas nos Estados Unidos, além de uma receita anual na casa dos R$ 8 bilhões. Essa é a Embraer que sobrará aqui quando a Boeing levar seus 80% da divisão de aviões comerciais, a joia da coroa da fabricante brasileira de aeronaves. 
 
 A compra foi fechada há um ano e meio e a expectativa é que os órgãos reguladores concluam a análise do negócio até abril.
 

A Embraer remanescente passará longe de ser uma companhia irrelevante, mas não se compara à atual, com receita de R$ 18 bilhões e valor de mercado de R$ 15 bilhões. Para continuar ­– e sobreviver ­– sem sua divisão comercial, motor da companhia, a fabricante terá de se reinventar.

Fontes do mercado admitem que a Embraer remanescente será uma empresa menor, mas não são pessimistas com o futuro da companhia. As duas principais divisões da “nova Embraer” ­– a de fabricação de jatos executivos e a de aviões para uso militar –, que historicamente apresentam resultados inconsistentes, acabam de colocar novos e eficientes produtos no mercado. A perspectiva é que, a partir deste ano, a demanda por eles seja crescente.

No fim do ano passado, o banco UBS passou, inclusive, a recomendar as ações da Embraer para compra porque os braços de aviação executiva e militar da empresa haviam apresentado melhorias que estavam passando despercebidas. Entre elas, citava o potencial de venda dos novos modelos Praetor 600 e Praetor 500, aeronaves executivas de médio porte. Agora, em janeiro, após as ações subirem quase 10% e se aproximarem do valor que considera “justo”, o banco mudou sua recomendação para neutra. O Bradesco, em relatório de dezembro, afirmou ainda que “a perspectiva para a aviação executiva e de defesa está melhorando”.

O Praetor 600, que custa a partir de US$ 20 milhões, é uma das apostas da divisão de jatos executivos da Embraer, que começa a apresentar rentabilidade melhor.FOTO: DENIS BALIBOUSE/REUTERS – 21/5/2019

O PLANO DE VOO DA NOVA COMPANHIA

Como o negócio com a Boeing ainda não foi concluído, os executivos da companhia relutam em detalhar o que planejam para a nova Embraer. Dão apenas algumas dicas. A área de serviços, como manutenção de aeronaves, deve crescer. O segmento de defesa também vai avançar com as vendas do C-390 Millenium (cargueiro militar cujo projeto foi recém-concluído). E as novas tecnologias, como o carro voador e os microssatélites que poderão ser usados para monitorar produções agrícolas, podem apontar o futuro da empresa.

Segundo o vice-presidente de operações da Embraer, Nelson Salgado, a ideia é que os três braços remanescentes (executiva, defesa e serviços) sejam responsáveis, cada um, por 30% da receita da nova empresa. Isso implica em uma expansão acelerada dos serviços, que hoje correspondem a 19,1% e empregam 2.300 funcionários. “É uma área que tem muita possibilidade e não necessariamente só nos nossos aviões”, diz.

Para avançar na velocidade desejada, a divisão considera a possibilidade de aquisições, principalmente de empresas que já tenham licença para fazer manutenção de aeronaves de outras marcas. “Há pouco tempo, ampliamos nosso centro de manutenção em Fort Lauderdale, nos Estados Unidos. Não tenho dúvida de que vamos precisar ampliar mais os centros que já temos e também recorrer a aquisições”, diz o presidente da área de serviços e suporte de Embraer, Johann Bordais.

A Embraer já presta serviço de manutenção para aviões de outras fabricantes através da OGMA, empresa portuguesa em que tem 65% de participação – o restante é do governo português. A ideia da Embraer é replicar esse modelo de negócio.

O projeto de expansão dos serviços tem potencial, afirmam fontes próximas à companhia. Mesmo se fizesse apenas a manutenção de aviões Embraer, o mercado seria grande. Desde 2005, a companhia entregou uma média de cem aviões executivos por ano. Quanto mais antigas ficam essas aeronaves, maior a necessidade de reparos.

Centro de manutenção em Nashville, nos Estados Unidos, é um dos 80 que a empresa possui.FOTO: ERICH SHIBATA NISHIYAMA/EMBRAER

Outra alternativa é personalizar e modernizar jatos Embraer que são revendidos. “O avião Embraer é um sucesso na revenda. Aí temos uma oportunidade”, diz Bordais. A parte de manutenção de aviões comerciais, porém, irá com a Boeing, levando 60% das receitas atuais da divisão de serviços.

Na divisão de defesa, a aposta é que a joint venture criada entre Embraer e Boeing para vender o cargueiro C-390 Millenium, da qual a Embraer é controladora, impulsione a área. “Com a joint venture, a expectativa é aumentar as vendas do C-390 e vender para o mercado americano”, diz o presidente de defesa da companhia, Jackson Schneider.

Por enquanto, apenas o governo brasileiro e o português fizeram encomendas do avião, cuja primeira unidade foi entregue em setembro. Mas a parceria da Boeing com a Embraer para comercializar o cargueiro (o maior avião já produzido pela brasileira) “pode ser transformacional”, escreveu o analista Victor Mizusaki, no fim do ano passado, em relatório do Bradesco BBI. A possibilidade de, através da Boeing, compras serem financiadas pelo governo americano e a força de vendas da Boeing ampliam o potencial da divisão de defesa da Embraer.

“A partir de 2022 ou 2023, quando a produção ganhar cadência, devemos ter um crescimento acelerado e a área militar deve se aproximar da executiva (em faturamento)”, diz Salgado. Em 2018, a receita líquida da aviação executiva foi de R$ 4,2 bilhões, enquanto a de defesa ficou em R$ 2,2 bilhões.

Parceria com Boeing para vender o cargueiro C-390 Millenium deve impulsionar divisão de defesa da Embraer.FOTO: CLAUDIO CAPUCHO/EMBRAER

A área de defesa será ainda essencial para manter a Embraer como uma empresa desenvolvedora de tecnologia de ponta, dizem fontes. Encomendas de equipamentos militares feitas por governos já costumam ser o principal propulsor de novas tecnologias no setor aéreo, mas, sem a divisão comercial – que também cria demandas tecnológicas –, isso deve se tornar ainda mais preponderante.

O próprio vice-presidente de engenharia da Embraer, Daniel Moczydlower, admite a dependência. “Hoje conseguimos balancear as apostas conforme um mercado está em alta e outro em baixa. À medida em que reduz a área comercial, o peso do governo como indutor da indústria aeronáutica se torna muito relevante”, diz.

A preocupação é que novos contingenciamentos do governo reduzam as encomendas feitas para a Embraer. Em dezembro, no entanto, a assinatura de um memorando de entendimento entre a empresa e a Força Aérea Brasileira (FAB) para o estudo de um potencial desenvolvimento de uma nova aeronave leve de transporte militar foi vista como um bom sinal.

Ainda que haja alguma redução nos pedidos de pesquisas do governo, a Embraer não deve reduzir seus investimentos na área, garante o vice-presidente de operações, Nelson Salgado. Segundo o executivo, o programa permanente de desenvolvimento de tecnologias continuará recebendo entre 5% e 7% das receitas da empresa.

Dos novos projetos tecnológicos que já estão avançados, o do eVtol (espécie de helicóptero, mas elétrico, e que decola e pousa verticalmente, popularmente chamado de carro voador) está entre os que melhor podem indicar o futuro da companhia no médio prazo.

“É uma das avenidas de crescimento mais interessantes para a empresa hoje. Muitas startups estão desenvolvendo eVtols, mas, para poder operá-los, será preciso de certificação (concedida por autoridades do setor). Acreditamos que temos possibilidade de chegarmos antes que os concorrentes nisso”, acrescenta Salgado.

Carro voador pode ser um dos principais produtos da Embraer no médio prazo.FOTO: DIVULGAÇÃO

Outro projeto que pode ser promissor é o desenvolvido pela Visiona, empresa da qual a Embraer é sócia, ao lado da Telebrás. Juntas, as companhias trabalham na criação de nanossatélites, que poderão ser usados, por exemplo, no monitoramento de produções agrícolas. Parcerias como a feita com a Telebras, aliás, podem voltar a acontecer a partir de 2021, de acordo com Moczydlower.

“Aplicar soluções aeronáuticas em outros mercados é uma tendência grande. De 2021 para frente, devemos olhar oportunidades de aquisição de empresas. O que não para até lá é o investimento através de fundo de venture capital”, diz o vice-presidente de engenharia.

DE CASA NOVA

Para não perder seu DNA de inovação, a Embraer também está se modernizando. Como a unidade principal da empresa, a fábrica na Avenida Brigadeiro Faria Lima, em São José dos Campos, ficará com a Boeing, uma nova sede está sendo construída com R$ 120 milhões em investimentos. Com a mudança, ficarão para trás os escritórios antigos e entrará em cena o modelo que lembra startups, com ambientes abertos – sem lugares marcados – que estimulam o trabalho em grupo e dão maior agilidade.

“Para uma empresa industrial, estamos dando um salto. A nova sede é um símbolo da cultura que queremos”, diz o vice-presidente de pessoal, Carlos Griner.

 

A nova sede ficará no distrito de Eugênio de Melo, também em São José dos Campos, onde já trabalham 1.300 pessoas. Após a reforma, a unidade passa a ter capacidade para 4.000 empregados. A partir da próxima semana, funcionários que foram selecionados para permanecer na Embraer já começam a atuar nesses novos escritórios.

A divisão dos trabalhadores entre Embraer e Boeing foi um dos pontos mais delicados durante esse processo de transformação. Segundo Griner, cada chefe foi responsável por fazer a separação de suas equipes, num trabalho que envolveu 130 funcionários. Os trabalhadores foram ouvidos, mas nem sempre foi possível atender as opções deles. “Era preciso manter capacidade dos dois lados (Embraer e Boeing). Para isso, contava a experiência de cada trabalhador”, diz.

Segundo funcionários ouvidos pelo Estado, no entanto, os critérios adotados para dividi-los entre as companhia não ficaram claros, assim como não foram esclarecidas dúvidas sobre o futuro da Embraer. De acordo com relatos, tanto os que permanecem na empresa brasileira como os que vão para a americana estão preocupados.

Entre os que ficam, o principal motivo de apreensão é a possibilidade de que cortes drásticos de custos resultem em demissões. “Os jatos comerciais eram que davam lucro. Sem eles, vai ser preciso cortar custo”, diz um engenheiro.

Nova sede da empresa não terá lugar marcado, e espelho d’água será construído em área externa, onde funcionários também poderão trabalhar.FOTO: TABA BENEDICTO/ESTADÃO – 19/12/2019

Em relatório de dezembro, o Bradesco destacou justamente a intenção da empresa em se tornar mais eficiente: “A Embraer sinalizou que seu novo CEO, Francisco Gomes (ex-presidente da Marcopolo), e que Nelson Salgado, atual diretor financeiro e futuro diretor de operações, focarão em aumentar a eficiência do processo industrial, reduzindo o nível de inventário, por exemplo”.

Outra preocupação é com o fim do ciclo de grandes projetos tanto na área executiva como na de defesa. “Os principais projetos foram concluídos. Estamos com pouco trabalho ultimamente”, acrescenta outro engenheiro.

Já os funcionários que vão para a Boeing estão reticentes com os possíveis desdobramentos da crise da empresa, que acaba de perder o título de maior fabricante de aeronaves do mundo para a Airbus. A companhia atravessa o pior período de sua história desde que dois aviões 737 MAX caíram, em outubro de 2018 e em março de 2019, matando 346 pessoas.

Aviões 737 MAX, da Boeing, estão proibidos de voar pela FAA, órgão que regulamenta a aviação civil nos Estados Unidos.FOTO: LINDSEY WASSON/REUTERS – 1/7/2019

Há ainda uma tensão com a possibilidade de a Boeing transformar sua unidade brasileira em apenas uma planta de fabricação, sem valorizar o time de engenharia e concentrando todos os desenvolvimentos nos Estados Unidos. Essa possibilidade, no entanto, é mais remota, segundo analistas, pois a americana está em um momento em que necessita profissionais para desenvolver novos projetos.

A questão da crise decorrente das quedas do 737, no entanto, é vista como mais relevante pelos especialistas. A Embraer não comenta o assunto e a Boeing afirma que não haverá impacto no Brasil. A situação da empresa americana, porém, se deteriora a cada dia enquanto não consegue a liberação dos aviões pelas autoridades americanas.

Por enquanto, nenhum analista considera que o acordo possa ser cancelado, mas alguns ponderam que vendas futuras dos aviões comerciais da Embraer podem ser prejudicadas em um primeiro momento. Como a “nova Embraer” tem 20% de participação nessas vendas, acabaria sendo afetada também – e aí a brasileira teria de provar que suas divisões remanescentes são suficientes para levá-la adiante.

Por outro lado, a Boeing precisa de um produto bom para comercializar, diz um executivo do setor. Pode ser a chance de o avião brasileiro ganhar mais popularidade globalmente e alavancar a Embraer remanescente.

Crédito: Luciana Dyniewicz/O Estado de São Paulo – disponível na internet 27/01/2020

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