No coração de Beethoven

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Quando o mundo celebra os 250 anos do nascimento do compositor, médicos apontam que algumas de suas obras-primas foram influenciadas por uma arritmia cardíaca.

Muito se conjetura sobre o mistério do gênio do compositor Ludwig van Beethoven, seja lá o que termos como “mistério” e “gênio” possam ainda significar em tempos niilistas. O fato é que a ocasião de lembrá-lo se apresenta, pois 2020 já foi batizado de Ano Beethoven. Os 250 anos de seu nascimento são comemorados em todos os continentes com eventos, concertos, recitais, óperas, simpósios, lançamentos de livros e álbuns. Além disso, são divulgadas novas pesquisas sobre a personalidade, a obra e o processo de criação do mestre que subverteu o estilo clássico. Nem mesmo o seu coração escapa às especulações e à varredura científica. Segundo pesquisas recentes de médicos e musicólogos, o segredo mais oculto da arte de Beethoven reside literalmente dentro de seu coração.

A investigação com repercussão mais duradoura resulta da análise das composições tardias de Beethoven. Segundo um grupo formado por médicos e musicólogos americanos, Beethoven teria sofrido de arritmia cardíaca, fato comprovado em determinadas composições, em especial as pertencentes à fase tardia. 

DESCOBERTAS Os médicos Zachary D. Golberger (acima), da Universidade de Washington, e Sergio Timerman, do Instituto do Coração de São Paulo e da USP, analisaram os batimentos cardíacos de Beethoven em suas composições e sinfonias, nos últimos quartetos evidenciam arritmia (Crédito:Divulgação/Gabriel Reis)

A equipe é formada por John Howell, professor de Medicina da Universidade de Michigan, Zachary D. Goldberger, cardiologista da Escola Médica da Universidade de Washington em Seattle, e o musicólogo Steven M. Whiting. O trio assina o artigo “The heartfeld music of Ludwig van Beethoven” ( “A música de coração de Beethoven”, em tradução livre). O texto está publicado na revista “Perspectives in Biology and Medicine” (John Hopkins University Press) e examina o padrão rítmico de peças como a cavatina do “Quarteto em si bemol maior, op. 130” e a “Sonata para piano ‘Les adieux’, em mi bemol Maior, op. 81ª”. A conclusão da pesquisa demonstra que, mesmo diante da inexistência de diagnósticos da época, é possível observar que as alterações dos ritmos das músicas de Beethoven correspondem a batidas irregulares, que seguem o padrão de afecções do coração.

“Os trabalhos que descrevemos resultam da leitura do ritmo cardíaco expresso em notas musicais”, afirma Zachary D. Golberger. “Se essas arritmias musicais podem simplesmente manifestar a genialidade de Beethoven, existe a possibilidade de que, em certas peças, o seu batimento cardíaco pode estar no coração de algumas das maiores peças de arte de todos os tempos.” Seu colega Howell vai além e acredita que “a música de Beethoven pode ser, tanto do ponto de vista figurativo como físico, sentida com o coração”.

Não se trata de uma tese mirabolante. Antes pelo contrário, na opinião do cardiologista paulistano Sergio Timerman. “O coração é o órgão das emoções”, diz. “Uma emoção forte pode causar alterações nos batimentos cardíacos, e até um infarto. Um artista como Beethoven não poderia escapar de tal condição. Mais ainda, ele escreveu música ouvindo o próprio coração. O coração talvez tenha sido a sua maior inspiração.” Timerman trabalha no Instituto do Coração e na Universidade de São Paulo. As atividades não o impediram de se apaixonar por música erudita. “As composições de Beethoven sempre me surpreenderam por revelar frequências que guardavam semelhanças com as batidas do coração: pulsações aceleradas da arritmia e lentas típicas da braquicardia e finalmente a oscilação entre batidas lentas e aceleradas, encontrada nos episódios de fibrilação atrial.” Sua obsessão por escutar música com o estetoscópio para detectar o que ele chama de “eletrocardiograma de Beethoven’’ o incentivou a se debruçar sobre o assunto.

“Beethoven foi o primeiro músico de heavy metal. De modo implacável, levou aos ouvintes a sensação inesperada da pulsação irregular.” Roberto Minczuk, maestro

Embora não haja uma associação direta entre surdez e arritmia cardíaca, o fato de Beethoven sofrer de surdez progressiva o obrigou a prestar atenção às batidas do próprio coração. “Como não conseguia ouvir os sons externos, ele passou a dar importância às batidas internas”, diz Timerman. “Acabou traduzindo essas batidas em música.” Algumas peças, segundo o médico, indicam que ele teria passado por momentos de arritmia cardíaca, e mesmo por problemas que não foram detectados no início do século XIX. Os médicos que trataram do músico registraram que ele sofreu de diarreia, surdez e cirrose hepática. Beethoven bebia tanto – principalmente vinho, em seus longos momentos de solidão diante do piano, munido de sua corneta acústica e do caderno música – que os médicos determinaram a cirrose como a causa da morte, embora circulem especulações de que ela pode ter acontecido devido à sífilis ou à tuberculose.

Os músicos confirmam que tais distúrbios eventualmente influenciam os artistas e determinam suas obras. Muitos aspectos da introspecção e do isolamento de Beethoven derivam da condição física. “O estado físico influenciou a transposição de suas ideias e sensações para o som”, afirma o maestro Julio Medaglia. “O resultado é uma produção disruptiva. Não só porque revolucionou a forma, em especial o ritmo e os andamentos, mas porque levou a música pulsar com os sentimentos humanos, com suas alegrias e tristezas. Também imprimiu um conteúdo cultural e político a suas partituras.”

O deslocamento de ritmos e andamentos conduzido às últimas consequências é uma característica primordial do músico, conforme analisa o maestro Roberto Minczuk. “Beethoven foi o primeiro compositor de heavy metal”, diz. “Isso porque proporcionou aos ouvintes a sensação inesperada da pulsação irregular, de modo implacável, com passagens de até 20 compassos de ritmos cambiantes.” É algo tão natural que parece vir diretamente do batimento cardíaco. “Seu ouvido interno permitiu que concebesse obras impactantes até para os dias de hoje. Ele pôs para fora toda a tormenta interior.” Pela primeira vez, as conturbações interiores de um homem foram transferidas ao pentagrama. Daí o impacto. “Beethoven mexe com você”, diz Minczuk.

Nesse sentido, suas nove sinfonias, cinco concertos para piano, 32 sonatas para piano, 16 quartetos de cordas e tantas outras peças do cânone clássico podem refletir, refratar e até distorcer sua personalidade. O desfecho de tamanha aventura interior é que o coração de Beethoven continua a pulsar até hoje, em moto perpétuo.

Crédito: Luís Antônio Giron/ IstoÉ – disponível na internet 01/02/2020

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