Até o fim de 2020, a paisagem no Supremo Tribunal Federal (STF) vai mudar bastante: o equilíbrio da corte deve pender em favor da ala “pró Lava-Jato”, em detrimento do grupo chamado de “garantista”, que, defenderia de forma mais rígida os direitos dos réus e investigados.
Do outro lado da Praça dos Três Poderes, no Congresso, políticos de todas as cores ideológicas observam o calendário e se preocupam com as possíveis mudanças no STF, e dão impulso, no Senado, a projetos que podem mudar a forma de funcionamento da Corte.
Um dos projetos limita os mandatos dos ministros a dez anos, e tira do presidente da República a exclusividade na indicação. A outra proposta limita o poder dos ministros de conceder decisões individuais.
Apesar do temor em relação às mudanças no STF, os políticos ainda não chegaram a um consenso sobre alterações no funcionamento da Suprema Corte, segundo apurou a BBC News Brasil com articuladores.
Os próprios integrantes do STF têm dúvidas sobre as possíveis alterações.
“É uma opção política normativa. Agora, o Supremo (brasileiro) foi criado à imagem da Suprema Corte americana, onde inexiste o mandato. O que surge no contexto (é que haverão) repercussões. Na jurisprudência, pela modificação do colegiado, e quanto à aposentadoria. Depois dos dez anos, o integrante se aposentaria? Não se sabe”, disse o ministro. “É sempre temerário, mas cabe ao Congresso a opção”, disse ele.
Mudanças no STF no fim do ano
No segundo semestre deste ano, ocorrerão mudanças no Supremo Tribunal Federal.
Em setembro, o ministro Dias Toffoli concluirá seu mandato de dois anos como presidente da Corte, passando o bastão a Luiz Fux — é o presidente da Corte que decide a pauta de julgamentos, além de decidir sobre os casos que chegam ao tribunal durante o recesso.
Fux tem adotado posições que coincidem com o que defendem os procuradores da Lava Jato.
Um dos exemplos mais recentes foi o julgamento sobre prisão em segunda instância, em novembro — Fux votou por manter as regras vigentes até então, como defendiam os investigadores.
No fim de janeiro, o próximo presidente do STF também decidiu suspender, por tempo indeterminado, a aplicação do chamado “juiz das garantias” — um magistrado que seria responsável pela fase de coleta de provas de um processo.
Esta figura jurídica tinha sido criada meses antes pelo Congresso, durante a tramitação do chamado “pacote anticrime” proposto por Sergio Moro. A decisão de Fux veio após procuradores da Lava Jato fazerem campanha contra o dispositivo.
No dia 1º de novembro, o ministro mais antigo do STF, Celso de Mello, deixará o cargo em favor de um nome indicado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
O chefe do Executivo já mencionou os ministros Sergio Moro (Justiça), Jorge Oliveira (Secretaria-Geral da Presidência) e André Mendonça (Advocacia-Geral da União) como escolhas possíveis para primeira vaga no Supremo.
Bolsonaro não tem prazo para decidir sobre quem indicará — mas como o nome precisa ser aprovado pelo Senado, a indicação deverá ocorrer meses antes da saída de Celso de Mello.
“Sem dúvida que nos últimos anos o Supremo Tribunal têm ficado dividido. Basta ver as decisões que se dão na Primeira Turma (integrada pelos ministros Marco Aurélio, Luiz Fux Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e Rosa Weber), normalmente estão em conflito, em algumas questões, com as da Segunda Turma (formada pelos ministros Celso de Mello, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Edson Fachin e Cármen Lúcia). A segunda turma têm tido um posicionamento mais garantista, digamos assim”, diz o advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay.
O criminalista, que atua em alguns dos principais casos do STF, diz não estar preocupado com a mudança na composição da Corte. A história recente mostra que os magistrados tendem a agir de forma independente uma vez que vestem a toga, diz ele.
“A saída do ministro Celso de Mello será sentida, pois ele é um grande humanista, um conhecedor profundo da jurisprudência da Corte e que (decide) sempre no sentido de fazer cumprir a Constituição acima de todas as coisas”, disse Kakay à BBC News Brasil. “Mas acho que, quem quer que seja o (novo) ministro nomeado, ele terá de honrar a tradição do Supremo Tribunal Federal”, diz ele.
O que está em estudo no Congresso
Há duas propostas adiantadas no Senado que podem alterar o funcionamento do Supremo.
O primeiro é um projeto de lei relatado pelo senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR) e que está pronto para ser votado no Plenário do Senado — a proposta tira dos ministros o poder de decidir de forma individual em alguns tipos de processos (ADI e ADPF).
A decisão de Luiz Fux sobre o “juiz das garantias”, por exemplo, ocorreu em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI).
Pelo projeto, medidas cautelares nestes tipos de processos só poderiam acontecer com o aval da maioria absoluta dos ministros. A exceção seriam as decisões tomadas durante o recesso — quando apenas o presidente da Corte dá expediente, em regime de plantão. Mas mesmo nestes casos o tema precisaria ser examinado pelo plenário depois.
À BBC News Brasil, Oriovisto defendeu a aprovação da medida, mas disse que ainda não recebeu uma sinalização do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), de quando o tema será pautado no plenário da Casa.
Ao contrário do projeto relatado por Oriovisto, a segunda ideia recebeu uma demonstração clara de Alcolumbre. Na semana passada, o chefe do Senado disse que o projeto de criar um mandato fixo de 10 anos para os ministros do STF é uma de suas prioridades para este ano.
Hoje, o cargo de ministro do STF é vitalício, com a aposentadoria obrigatória aos 75 anos de idade.
A PEC apresentada por Lasier Martins (Podemos-RS) também muda a forma de escolha dos ministros, com o presidente da República escolhendo dentro de uma lista de três nomes.
Os integrantes desta lista seriam escolhidos pelo próprio STF, pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), de acordo com o substitutivo elaborado pelo senador Antonio Anastasia (PSD-MG).
À BBC News Brasil, Lasier Martins disse que não é seu objetivo tirar de Jair Bolsonaro o direito de indicar os próximos dois ministros do STF — o texto atual da PEC determina que ela só passe a valer depois de 2022.
Na opinião do senador, o PT conseguiu “aparelhar” o STF, ao indicar a maioria dos ministros que hoje compõem a Corte.
“Vamos supor que o Bolsonaro escolha dois. Serão apenas dois indicados por ele. Agora, se ele se reeleger, já no mandato subsequente, já vai ser pela forma do colegiado (caso a PEC seja aprovada). Mas ele vai ter o direito de indicar (os próximos dois ministros). É o direito que ele adquiriu. Não é justo alguém que está em plena gestão ser interceptado em um direito que os outros (presidentes) tiveram”, diz Lasier.
Neste momento, a PEC aguarda votação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado — a presidente do colegiado, senadora Simone Tebet (MDB-MS), disse a Lasier Martins que colocaria o projeto em votação “no começo do ano”.
Para Lasier, a forma atual de escolha dos ministros do STF acaba limitando a autonomia do Judiciário.
Recentemente, ele disse a uma rádio de São Paulo que o Supremo tem sido “constituído nos últimos tempos por amizades pessoais, gostos pessoais, por afinidades partidárias, ideológicas ou por assessores e ocupantes de antessalas”.
À BBC News Brasil, o senador disse que “a experiência tem mostrado que o Supremo não é o que deveria ser, nos últimos anos. Os ministros têm algum saber jurídico, mas não o ‘notório saber jurídico’ do qual fala a Constituição”.
Questão ainda não é consenso, dizem líderes
Nos últimos dias, a reportagem da BBC News Brasil confirmou com os líderes de alguns dos principais partidos — tanto na Câmara quanto no Senado — a existência de uma inquietação quanto às mudanças no Supremo.
“O que eu posso te dizer é que há esta preocupação (com as mudanças no STF). Tanto entre os partidos da esquerda quanto alguns da direita”, disse à reportagem da BBC News Brasil o líder de uma das maiores bancadas da Câmara.
Apesar disso, ainda não há consenso sobre quais medidas deveriam ser adotadas.
“Na Câmara também houve uma proposta que mudava a composição do Supremo, do deputado Arthur Lira (PP-AL), e que não avançou. Não teve ainda uma discussão entre os líderes, para tocar esse projeto. Não sei se terá respaldo na Câmara (a PEC de Lasier Martins)”, diz o líder de um partido do Centrão.
“Para tocar um projeto desses, não adianta só a vontade do Senado ou da Câmara. Seria preciso dar uma articulada com o Supremo também, entendeu? Para ver o que eles acham”, diz o líder.
“Lá atrás, quando a gente fez a PEC da Bengala (em 2015, o Congresso aprovou uma PEC que aumentava a idade de aposentadoria dos ministros do STF), foi articulado com o próprio Supremo. Agora, eu não sei se existe alguma articulação lá. E, se não tiver, você cria um conflito que eu acho que é desnecessário”, diz ele, sob anonimato.