O grupo de WhatsApp das mães dos alunos da professora Kátia dos Santos está mais agitado do que de costume. Desde o início da quarentena pelo coronavírus na cidade de São Paulo, a professora de educação infantil da rede municipal paulistana tem tentado ajudar informalmente as mães a entreter e desenvolver atividades com os pequenos – a turma de Katia tem entre 5 e 6 anos.
“A maioria mora em prédios com apartamentos bem pequenos. Então as mães estão enlouquecidas” por ficar confinadas com as crianças, conta Santos, professora no bairro de Cidade Tiradentes, extremo leste de São Paulo.
“Tenho mãe que tem dez filhos. É complicado. Os alunos estão bem conscientes quanto à higiene e à importância de lavar as mãos. Mas estão passando muito tempo dentro de ambientes muito pequenos. E são crianças muito ativas, acostumadas a irem todos os dias ao parque da escola.”
Jéssica Souza Silva Aquino, 22, é uma das mães que têm buscado apoio no grupo de WhatsApp para ocupar os dias de Rafael, 5, e Isabelle, 4, em seu apartamento de dois cômodos. “Estamos todos nos adaptando. A Katia tem ajudado muito, mandando dicas de brincadeiras. Há pouco fizemos massinha caseira, de farinha de trigo. A gente fica dividido entre a preocupação com o vírus e querer voltar logo para a rotina”, conta.
Entre filmes, videogames, legos e brincadeiras na cozinha, Fabiola Oliveira Davi, 33, também tenta manter ativo Nicollas, 5, “que tem uma energia que não acaba nunca”. A família (que inclui o marido e um bebê de 9 meses) não estava acostumada a passar tanto tempo dentro do apartamento no conjunto habitacional. “Está apertado, porque geralmente nós quatro só ficávamos aqui todos juntos durante a noite”, conta.
Diante do avanço do novo coronavírus no Brasil, tendo São Paulo como foco principal do contágio, famílias de todos os níveis de renda têm vivido as dificuldades de conciliar o teletrabalho e os cuidados com as crianças e a casa. Mas a situação se agrava em regiões mais carentes e periféricas, onde – em um momento em que as escolas estão fechadas – não há a mesma estrutura ou espaço para educar e entreter os pequenos e manter o isolamento social recomendado pelos especialistas.
Há ainda outras duas preocupações urgentes: primeiro, com a crescente insegurança financeira nessas regiões; segundo, com o fato de que a conscientização sobre o isolamento social parece não ter chegado a todos, particularmente aos adolescentes.
“Ainda vejo muita gente nas ruas, indo a bailes ou fazendo festas em casa”, diz Katia dos Santos, que mora perto do terminal de ônibus de Cidade Tiradentes. “Meus vizinhos fizeram uma festa que durou dois dias. Tem muitos adolescentes que acham que a doença afeta só os idosos. Só que é muito comum aqui ter idoso morando junto com a família.”
‘Estar em casa pode ser muito difícil’
Professor do Fundamental 1 e 2 e morador do Campo Limpo (zona sul de São Paulo) na rede pública, Daniel Machado de Oliveira também tem visto muitos jovens circulando nas ruas de seu bairro. “Pelo Facebook, vejo que uma parcela dos meus alunos está em quarentena e outra parcela está escorregando (no isolamento). Está falando do coronavírus, mas indo a baile à noite”, conta.
Para os adolescentes de regiões mais periféricas, diz Oliveira, “é de costume estar na rua e nem sempre tem muito diálogo em casa. Muita gente de comunidade vive em espaço minúsculo. É do cotidiano não ter (muita opção de) lazer, então ele sai e vai para baile funk. Falando com base nos problemas que escuto no dia a dia deles, estar em casa pode ser muito difícil. Às vezes tem violência, pai preso, falta de dinheiro e de estrutura.”
As estatísticas brasileiras também ajudam a explicar por que o confinamento é muito mais desafiador para crianças e adolescentes em regiões carentes.
Das 18,4 milhões de crianças que o Brasil tinha em 2017, 41,3% moravam em lares com ao menos uma inadequação de saneamento – seja ausência de esgoto, abastecimento de água ou coleta de lixo, segundo dados levantados em outubro passado pelo economista Naercio Menezes Filho, do Insper, para a BBC News Brasil.
Quase um quarto das casas dessas crianças tinha ao menos uma inadequação de moradia, ou seja, sem banheiro próprio, paredes de materiais não resistentes, adensamento excessivo (mais de três pessoas dividindo cada dormitório) ou custos de aluguel que não cabiam no bolso da família.
Em São Paulo, maior cidade do país, alguns dos bairros mais carentes chegam a ter de 25% a 50% de sua população morando em favelas, segundo dados compilados em 2019 pela Rede Nossa São Paulo.
Os mais jovens, em particular, têm dificuldade em ficar em casa em ambientes que podem ser “opressores”, diz Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da USP e membro da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação.
“Tomando as precauções sanitárias, eu estive com educadores do Jardim São Luiz (um dos bairros mais carentes da zona sul paulistana) e vi as pessoas circulando nas ruas. O comércio foi reduzido, mas não é uma situação de isolamento”, conta Cara.
“As casas não têm internet de banda larga, e às vezes o pacote de dados de internet é dividido entre vizinhos. E muitos jovens estão convictos do que disse (o presidente) Jair Bolsonaro, de que não vai acontecer nada com eles se pegarem o vírus. O discurso do Bolsonaro (contrariando autoridades de saúde e criticando o isolamento social) acabou sendo conveniente para esses jovens.”
O que mais o assusta, diz Cara, é ver aumentar a escassez de dinheiro em regiões onde o desemprego e a informalidade já eram altos e a renda, mais baixa que a média da cidade.
Jéssica Aquino, de Cidade Tiradentes, mantém o bom humor e a disposição para brincar com os filhos e protegê-los da pandemia, mas está receosa quanto à renda da família em meio à quarentena. Passando o dia inteiro com as crianças no apartamento, ela vê os gastos com luz, água e alimentação aumentarem, em um momento em que o orçamento já estava apertado.
Ela trabalha como operadora de telemarketing (está licenciada durante a quarentena) e seu marido segue trabalhando durante o isolamento, mas sem registro em carteira. “Ainda não sabemos como vai ser no mês que vem”, conta.
Renda e merenda
Os professores Daniel Oliveira e Katia Santos demonstram preocupação também com outra parcela de seus estudantes: os que podem ser mais duramente afetados pela ausência da merenda durante o período sem aulas. Santos diz que alguns alunos “vão sentir muita falta da merenda, porque vão para a escola para se alimentar”.
Para Daniel Cara, o temor é que, em casos extremos, o “esgotamento da renda aumente os conflitos sociais”.
Os efeitos disso podem se refletir particularmente nas crianças e adolescentes, mais suscetíveis ao estresse tóxico causado pelas tensões. “O estresse tóxico é um problema que independe de classes sociais, mas em uma família de classe média, a casa tende a ser maior e a estrutura de apoio, também. Entre a população de baixa renda a situação é pior.”
Em caráter emergencial, o governo do Estado de São Paulo anunciou na quarta-feira (25) que vai dar, a partir de abril, R$ 55 para cerca de 700 mil estudantes (20% do total) matriculados na rede estadual que estejam em situação de extrema pobreza. O dinheiro é para ser usado para a compra de alimentos enquanto as aulas estiverem suspensas.
Pelo Twitter, o secretário estadual de Educação, Rossieli Soares, afirmou que, a partir de 21 de abril, os alunos da rede terão aulas à distância, com professores ensinando em estúdios e os estudantes acompanhando em casa.
Na rede municipal, assim como na estadual, houve adiantamento das férias escolares para o período da quarentena. Segundo a assessoria da Secretaria Municipal de Educação, estão sendo estudadas medidas para oferecer atividades aos alunos a partir de 9 de abril, caso a quarentena se mantenha, e também para ofertar vale-alimentação às crianças.
Em âmbito nacional, o Plenário da Câmara dos aprovou na quarta-feira (26) um projeto de lei que prevê a distribuição dos alimentos da merenda às famílias de estudantes que tiveram aulas suspensas na rede pública. O texto agora vai ao Senado.
Para Priscila Cruz, presidente-executiva do movimento Todos Pela Educação, a reação dos órgãos públicos de educação foi lenta ao coronavírus, deixando muitas crianças e adolescentes e seus pais sem orientação ou sem ter o que fazer em casa nos primeiros dias ou semanas de recesso.
Considerando que grande parte dos alunos não terá banda larga em casa para acompanhar aulas virtuais, Cruz acha que a estratégia adequada agora é as secretarias de Educação se organizarem para reforçar o ensino quando as aulas presenciais puderem ser retomadas.
“Para cumprir as 800 horas de aula obrigatórias, teremos alunos que precisarão de aulas em tempo integral, e deverá ser feita uma busca ativa de alunos que vão acabar não voltando para a escola, porque vão sentir que perderam o ano ou porque vão precisar trabalhar para ajudar os pais em tempos de crise econômica”, diz à BBC News Brasil.
“O melhor agora é as secretarias se estruturarem para garantir o cumprimento do currículo na volta às aulas, viabilizar o ensino integral e minimizar as consequências educacionais (da quarentena). Apostando que as aulas voltem em agosto, as escolas terão que fazer um ano em um semestre.”
Manter a rotina
Instituições particulares que atendem jovens de periferia também estão preocupadas em manter a rotina dos estudantes durante a quarentena e a suspensão das escolas. A escola Alef Peretz, que mantém uma unidade dentro do clube Hebraica, no bairro nobre do Jardim Paulistano, e outra na favela de Paraisópolis, começou, no dia 23, a dar aulas virtuais para os alunos de ensino médio de ambas as unidades.
Para os cem alunos da unidade de Paraisópolis, foi criada uma estrutura especial: um doador ofereceu tablet com teclados e chips de internet para que os estudantes pudessem acompanhar as aulas.
“É uma situação delicada, não é fácil, porque muitos moram em casas muito pequenas, com idosos junto às famílias. Neste momento, é muito importante manter a rotina e ocupar a mente com provas, em vez de com coronavírus”, diz Marcelo Davidovici, presidente da instituição.
Ele afirma que os alunos estão “felizes em estudar”. Na turma que se formou no ano passado, muitos conseguiram vagas em universidades públicas, motivando os que cursam os anos seguintes. “São estudantes que veem a escola como uma chance de mudança social. Temos lá em Paraisópolis mentes tão brilhantes como em qualquer outro lugar do mundo”, conclui Davidovici.
Angústias
Nas proximidades da represa Guarapiranga, no extremo sul de São Paulo, o professor Edney Bonfim perguntou pela internet a seus alunos da rede pública, a pedido da BBC News Brasil, como estão encarando o pedido de confinamento e a ausência de aulas.
Muitos contam já sentir saudades da escola, dos colegas e dos professores. Eles dizem estar se esforçando para se manter em casa e cumprir a quarentena, saindo só quando estritamente necessário. Se entretêm com videogames, maratonas de séries e atividades domésticas. Alguns se queixam de estarem confinados em espaços pequenos, mas a maioria diz entender a importância em se isolar para proteger-se a si e aos demais da covid-19.
No outro extremo da capital, em Cidade Tiradentes, Katia Santos acha que seus pequenos alunos de 5 e 6 anos também estão bem conscientes sobre os cuidados com a saúde, mas se angustia com a incerteza do momento atual para crianças ainda tão pequenas e pede notícias constantemente às famílias via WhatsApp.
“É difícil até para adultos manter uma rotina agora. Quanto tempo a gente vai ficar longe delas (crianças)? Na educação infantil, é difícil fazer coisas online, porque o foco na educação é o brincar. Como vamos saber se eles estão se desenvolvendo?”