De Bem com a Vida: Brasil faz estudos de cloroquina em quase 6.000 pacientes

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Brasil faz estudos de cloroquina em quase 6.000 pacientes, com resultados previstos para o fim de maio

O Brasil submeterá quase 6.000 pessoas a estudos científicos com o objetivo de determinar se a cloroquina é útil no combate à covid-19, doença causada pelo novo coronavírus.

Até o momento, a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) autorizou 12 estudos com a substância em no país.

As primeiras pesquisas com o remédio só trarão resultados no fim de maio, segundo contaram à BBC News Brasil os cientistas responsáveis por alguns dos experimentos. Em outros casos, os resultados não chegarão antes de dois ou três meses.

Assim como os demais estudos sobre o novo coronavírus no país, as pesquisas com a cloroquina e a hidroxicloroquina se concentram no Estado de São Paulo, unidade da federação com o maior número de pessoas afetadas pela doença até agora.

Desde o começo da epidemia no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) vem defendendo o uso da substância no tratamento dos infectados pelo vírus SARS-CoV-2. O presidente chegou a dizer que a substância estava sendo empregada com sucesso “em tudo quanto é lugar”. Mas ainda não há nenhum estudo conclusivo sobre a eficácia do medicamento ao redor do mundo.

Em seu último pronunciamento em rede nacional, no dia 8/4, Bolsonaro disse que o medicamento podia ser usado “desde a fase inicial” da doença — o mandatário mencionou o caso do médico cardiologista Roberto Kalil Filho, que usou a droga em seu tratamento ao contrair o vírus.

“Há pouco conversei com o doutor Roberto Kalil. Cumprimentei-o pela honestidade e compromisso com o juramento de Hipócrates, ao assumir que não só usou a hidroxicloroquina bem como a ministrou para dezenas de pacientes. Todos estão salvos. Disse-me mais. Que mesmo não tendo finalizado o protocolo de testes, ministrou o medicamento agora para não se arrepender no futuro”, disse Bolsonaro, na ocasião.

A defesa do uso precoce da cloroquina e da hidroxicloroquina contraria o protocolo atual do Ministério da Saúde, segundo o qual estas drogas devem ser ministrada apenas a pacientes críticos. A divergência em relação à droga foi um dos principais motivos para a queda do ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.

Gráfico sobre estudos relacionados à covid-19 no Brasil
Até o momento, a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) autorizou 12 estudos com a substância cloroquina em todo o país. Direito de imagem REPRODUÇÃO/CONEP

A cloroquina é um medicamento utilizado no Brasil desde os anos 1950. É indicada para o tratamento de várias doenças, como artrite reumatóide, lúpus e malária. A hidroxicloroquina é a versão mais “moderna” da droga, com efeitos colaterais mais leves.

Estas drogas vêm sendo usadas de forma experimental no Brasil e em outros países, apesar de não existirem testes clínicos suficientes para garantir que sejam eficazes ou seguras no tratamento da Covid-19.

Os efeitos colaterais podem incluir arritmia cardíaca e possíveis danos à visão e à audição. Por isso, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) recomenda que sejam usadas com muito cuidado, pois podem ser letais em algumas circunstâncias.

Até esta segunda-feira (20), o Brasil somava 40,5 mil casos confirmados de infecção pelo novo coronavírus. A doença já tinha custado as vidas de 2.845 brasileiros, segundo a contagem do Ministério da Saúde.

Quais são as pesquisas com a cloroquina

Os 12 estudos já autorizados com a hidroxicloroquina e o difosfato de cloroquina (nome técnico da versão mais antiga da droga) fazem parte de um conjunto maior de pesquisas relacionadas ao novo coronavírus.

último boletim da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) menciona 112 estudos sobre o vírus aprovados até as 21h da última quinta-feira (16).

Destes, 24 são ensaios clínicos, que somam 12.508 pacientes. Além da cloroquina, também há dois ensaios com a nitazoxanida (comercializada como o vermífugo Annita); com corticoides, e até com a transfusão de plasma sanguíneo de pacientes convalescentes da Covid-19.

Tanto a cloroquina quanto a hidroxicloroquina estão sendo testadas. Há também testes com a cloroquina associada à azitromicina, um antibiótico usado geralmente contra infecções bacterianas. A maioria das pesquisas acontece em São Paulo, mas há também estudos em curso em Manaus (AM) e em Fortaleza (CE).

Parte dos estudos emprega técnicas como grupos de controle (quando uma parte dos participantes recebe o medicamento e a outra, não); e randomização (quando os participantes dos dois grupos são definidos de forma aleatória). Alguns outros não usam estas técnicas — e são chamadas de estudos observacionais.

Atendimento de emergência em paciente com covid-19 em Porto Alegre
Atendimento de emergência em paciente com covid-19 em Porto Alegre; Fiocruz recomenda que cloroquina seja usada com cautela, por causa dos efeitos colaterais. Direito de imagem REUTERS

A randomização e o uso de grupos de controle são alguns dos requisitos para atestar a validade de uma droga no tratamento de uma doença.

Um dos principais estudos em curso com a substância é o conduzido pelo Hospital Alemão Oswaldo Cruz (HAOC), sediado em São Paulo (SP). Os primeiros pacientes começaram a ser incluídos no estudo no fim da semana passada, de acordo com os responsáveis. Ao todo, serão 1,300 pacientes de Covid-19, que não foram hospitalizados.

“A eficácia e segurança (de uma droga) só podem ser confirmadas se você faz o estudo comparativo, o estudo clínico randomizado. Vários países estão conduzindo (testes deste tipo)”, diz à BBC News Brasil Álvaro Avezum, diretor do Centro Internacional de Pesquisa do Hospital Alemão Oswaldo Cruz e um dos responsáveis pelo estudo.

“Se eu trato 100 pacientes com a hidroxicloroquina, mas não comparo com pacientes que não foram tratados, não posso falar em eficácia e segurança. Quando eu pego e trato um número de pacientes, posso descrever o que aconteceu, mas não posso falar que tem eficácia. No nosso estudo, 650 vão tomar a hidroxicloroquina; e 650 não vão tomar.”

“O que vamos tentar demonstrar é se a hidroxicloroquina é útil e eficaz para evitar que o paciente se hospitalize”, afirma ele.

Embora seja coordenado pelo HAOC, o estudo faz parte do esforço de uma coalizão de oito instituições, que inclui os hospitais Sírio-Libanês, Albert Einstein, Hospital do Coração (HCor), Beneficência Portuguesa, Hospital Moinhos de Vento (de Porto Alegre), e outros.

O HAOC convidou 100 hospitais, distribuídos por 50 cidades de 14 Estados brasileiros, para incluir pacientes de Covid-19 no estudo. Os resultados devem começar a chegar dentro de dois a três meses, segundo Avezum.

Além da pesquisa coordenada pelo HAOC, hospitais da coalizão coordenam outros dois estudos clínicos com a hidroxicloroquina. O mais adiantado deles é chefiado pelo Hospital Albert Einstein e incluirá 400 participantes.

Um segundo estudo será coordenado pelo Hospital Sírio-Libanês, com 630 pacientes.

Testagem de medicamentos, em foto de arquivo
“A eficácia e segurança (de uma droga) só podem ser confirmadas se você faz o estudo comparativo, o estudo clínico randomizado”. Direito de imagem REUTERS

Estes dois últimos são apoiados pelo laboratório farmacêutico EMS — além dos medicamentos, a empresa fez uma doação de R$ 1 milhão para apoiar os estudos, segundo contou à BBC News Brasil o médico Roberto Amazonas, diretor médico-científico do laboratório. A EMS é uma das empresas que produz a cloroquina no Brasil.

Ao contrário do estudo coordenado pelo HAOC, estes dois últimos são focados no tratamento de pacientes da Covid-19 em estado grave. O mais adiantado deles deve apresentar resultados já no fim de maio, segundo Roberto Amazonas.

A indústria farmacêutica está financiando outros estudos relacionados à Covid-19: o laboratório Aché está bancando estudos com corticoides, coordenados pelo Hospital Albert Einstein.

Apesar do grande número de pesquisas em curso, os próprios médicos que atuam nos estudos ressaltam que é preciso cautela: não há garantias que um protocolo para tratamento da doença estará disponível nas próximas semanas.

“Ciência é uma coisa muito complexa. E ciência apressada por uma pandemia é ainda mais imprevisível. O que a gente tem, não só no Brasil como no mundo inteiro, é muita opinião. Muito achismo. E o achismo não funciona com pacientes”, diz o médico Luciano Cesar Azevedo, superintendente de ensino do Hospital Sírio-Libanês.

“‘Eu acho que tal remédio funciona, porque eu dei para três pacientes e os três melhoraram’. Como você pode ter certeza que foi o remédio que você deu que causou a melhora? Eles podem ter melhorado porque a imensa maioria dos pacientes com covid-19 melhora. Com remédio, sem remédio ou apesar do remédio”, diz ele.

Azevedo coordenará um dos estudos da coalizão de hospitais, que investigará o uso do corticoide dexametasona em pacientes da Covid-19.

Como funciona a aprovação das pesquisas

Desde o fim de janeiro, todos os projetos de pesquisa relacionados à covid-19 e que envolvem pacientes humanos estão sendo analisados pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, a Conep. A comissão é ligada ao Conselho Nacional de Saúde (CNS), e é integrada por professores universitários e cientistas.

Desde o início da pandemia, os integrantes da comissão têm se reunido de forma remota todos os dias para analisar os projetos — inclusive aos domingos e feriados, segundo conta à BBC News Brasil o coordenador do grupo, o médico Jorge Alves Venâncio.

“O foco da Conep é a proteção de quem participa das pesquisas. (…) Muito frequentemente, quando uma pessoa é convidada a participar de uma pesquisa, ela está numa situação muito fragilizada. Você imagina uma pessoa que acabou de receber um diagnóstico de câncer e é convidada a participar de uma pesquisa: a última coisa que ela vai se preocupar é se os direitos dela estão sendo respeitados, tudo certinho”, diz ele à BBC News Brasil.

“Ela está brigando pela vida. E é justamente por causa disso que no mundo inteiro existem sistemas destinados a proteger quem está participando de pesquisas”, diz.

Quando um projeto de pesquisa chega à comissão, é remetido a um grupo de cerca de 80 técnicos do Ministério da Saúde que analisam a proposta e preparam um parecer preliminar.

O texto é então enviado a um dos pouco mais de 50 cientistas que formam a comissão — este prepara um relatório e submete a alguns de seus pares em um pequeno grupo chamado “câmara”. É a câmara que dá o veredito final sobre o pedido de pesquisa.

Morte de pacientes com alta dosagem

Um dos estudos aprovados pela Conep com a cloroquina se encerrou com a morte de 11 pacientes em Manaus — o grupo estava tomando doses mais altas do antimalárico, e faleceram até o sexto dia de tratamento com o remédio.

Segundo Venâncio, a comissão não tinha como prever este resultado, e o projeto da equipe de Manaus seguia os critérios técnicos adequados.

“Eles interromperam foi um braço da pesquisa, não o estudo inteiro. O braço que foi interrompido era o que tinha uma concentração maior (da droga). A cloroquina sabidamente provoca arritmia cardíaca e uma série de outros problemas também”, disse.

“Essa questão de pesar risco e benefício, que é a coisa básica nessa tarefa de proteção aos participantes, muitas vezes é uma coisa delicada. Não é uma coisa simples e matemática, porque você tem que procurar o máximo de benefício para um dado risco. E tem uma zona cinzenta, na fronteira”, comenta ele.

“Esse braço que foi suspenso, a minha impressão é que caiu nessa zona cinzenta. E eles fizeram a suspensão (do estudo) com rapidez. Nos comunicaram imediatamente e tudo mais. E estão continuando a pesquisa só com o braço que envolve uma dose menor”, disse.

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