Introdução
O Inmetro é uma referência nacional; onde quer que atue é um órgão de reconhecida credibilidade no cenário nacional e internacional, fruto de anos de trabalho, onde a busca da excelência sempre foi a tônica.
Em relação à governança das organizações, no entanto, há grande defasagem do setor governamental brasileiro em geral, e também do Inmetro, em relação ao estado da arte.
Neste artigo, o primeiro sobre governança, abordaremos um empecilho à correta aplicação deste conceito, inclusive no Inmetro: a questão terminológica. Com base principalmente nos meus trabalhos no Comitê Técnico da ISO sobre o tema, quatro expressões serão rapidamente abordadas: governança, board of directors, compliance (e sua relação com integridade) e accountability. Futuramente abordaremos outros aspectos da governança e de compliance, adiantando que o Inmetro, injustificadamente, não aplica essa última tendência, muito relacionada ao momento atual de combate à corrupção no mundo inteiro. Aliás, todo o trabalho da ISO sobre governança está intimamente relacionado ao enfrentamento da corrupção.
Os argumentos deste artigo foram apresentados ao Inmetro em diversas ocasiões, por e-mail ou de outras formas, antes de minha aposentadoria, porém agora foram reunidos em um só documento.
Governança
Governança é um conceito anglo-americano, de difícil compreensão em outros contextos. Tanto é assim, que alguns dos termos a ela relacionados expressos em inglês, além de difícil compreensão, são até mesmo de difícil tradução ou de tradução… dita “impossível” para outros idiomas.
A própria palavra inglesa governance, facilmente traduzida do inglês para o português como “governança” gera mal entendidos. Tanto que, quando o conceito aportou em nosso país, décadas após ter sido desenvolvido nos EUA e no Reino Unido, os órgãos de governança passaram a ser chamados de conselhos de administração, termo muito semelhante à gestão.
Esse é o primeiro grande erro que, como veremos em outros artigos, persiste: confundir governança com gestão. Trata-se, porém, mais de um problema conceitual do que de terminologia. Se bem conceituada, se a diferença entre governança e gestão for bem estabelecida, podemos conviver com a palavra governança.
Embora essa diferenciação não seja objeto deste artigo, é imperioso tecermos algumas considerações sobre ela, o que faremos a partir de breves citações de Bob Tricker:
“For many years, I have said that the major focus of business throughout the 20th century was professional management – new management theories, management schools, management consultants, and management gurus – whereas the focus for the 21st century would be governance. I think we can safely say that this has happened.”
“The concepts and the responsibilities of management and governance are quite different. To conflate the two invites confusion.”
“The board is responsible for its governance, ensuring that the corporate strategy is appropriate and being achieved, that corporate policies are in place, overseeing management’s performance (…).”
A governança, portanto, é exercida pelo board, ou board of directors, que dá a direção e controla a gestão. No entanto, o board não possui pessoal próprio, valendo-se de informações fornecidas pela gestão, surgindo daí o risco de captura da governança pela gestão, sendo este mais um motivo de separação entre governança e gestão.
Board of directors
Como vimos, quando o conceito de governança chegou ao Brasil, o órgão de governança, ou board, ou melhor ainda o board of directors, passou a ser denominado conselho de administração, que foi uma má escolha, já que a palavra administração é muito semelhante à gestão, contribuindo para a confusão entre governança e gestão
Veremos agora muito rapidamente que a tradução de board of directors por conselho de administração gera problemas adicionais. Conselho em português, pode ser tanto conselho consultivo, como conselho deliberativo e conselheiro pode significar aquele que dá conselhos. Já board of directors em inglês é sempre deliberativo, tendo atribuições inclusive de nomear ou demitir o presidente, em inglês normalmente denominado de CEO – Chief Executive Officer.
Além disso, aqueles que procuram informações em inglês, podem ser induzidos a erro ao se depararem com a palavra directors na expressão board of directors, uma vez que director tem vários significados em inglês. Normalmente em governança e especificamente em board of directors, director não se confunde com a palavra diretor em português. Um director, conforme o significado em inglês nesse contexto, é um membro do comitê da governança, já um diretor, conforme o significado em português, é um membro da alta administração, ou seja, da gestão. A tabela abaixo esclarece essa questão.
Terminologia comum em governança | ||
Inglês | Português | |
Governança | Board of directors (normalmente nas organizações privadas) | Conselho de administração (normalmente nas organizações privadas) |
Director | Membro do Conselho de administração | |
Gestão | Executive managers ou top management: CEO (chief executive officer), CFO (chief financial officer), CIO (chief information officer), etc. | Alta administração: presidente e diretores. |
No entanto, um director, ou seja, um membro do board, pode ser um executive director e simultaneamente ter uma posição executiva na organização. Comumente em um board há um número limitado de executive directors, conforme figura abaixo:
Como vimos também, uma das funções do board é supervisionar a gestão, o que não deveria ser novidade nenhuma, já que esta é uma questão básica, presente em todos os textos importantes sobre governança.
Observe-se que o Inmetro estabeleceu um comitê de governança (que corresponde ao board), atendendo à legislação (IN MP CGU 01/2016), composto apenas pelo seu presidente e pelos chefes de UP (Unidades Principais), entre eles diretores, todos membros da alta administração, o que tornou o comitê de governança, na realidade, um comitê de gestão, impossibilitando-o de seguir a prática consagrada de supervisionar a gestão, já que, se o fizesse, estaria supervisionando a si próprio.
Era de se esperar que o Inmetro, como órgão de excelência, estivesse mais atualizado com o estado da arte internacional sobre governança e que alertasse os altos escalões do governo sobre descompassos existentes.
Há inclusive um mecanismo para isso. De fato, o Decreto 9.203/2017, nos seus artigos 13-A e 9-A afirmam que “compete aos órgãos e às entidades integrantes da administração pública federal direta, autárquica e fundacional” propor os instrumentos de implementação da governança na administração pública federal.
Em resumo, vimos até agora que se a diferença entre governança e gestão for bem estabelecida, podemos conviver com a palavra governança, e que bem ou mal convivemos com a tradução de board of directors por conselho de administração. Podemos até melhorá-la e a futura ISO 37000 (Governança das Organizações) é uma boa oportunidade para isso, ao introduzir, com o sentido de board of directors, a expressão governing body, ou, em português, orgão de governança.
No entanto, outros dois termos, que acompanham o conceito de governança, precisam de outra abordagem. Trata-se de accountability e de compliance, este relacionado à integridade.
Compliance e integridade
Compliance não parece ter encontrado ainda um termo equivalente em português, sendo que inicialmente foi (mal) traduzido por conformidade. Decididamente não é a mesma coisa e, provavelmente por isso, passou a ser usado em português sem tradução, emprestado do inglês, de acordo com o fenômeno denominado anglicismo. Foi uma boa solução, já que é um conceito de fácil entendimento. A palavra já consta inclusive de pelo menos um documento legal: a IN MP CGU 01/2016, Instrução Normativa Conjunta do antigo Ministério do Planejamento e da CGU, que “dispõe sobre controles internos, gestão de riscos e governança no âmbito do Poder Executivo federal”.
Compliance significa cumprimento de requisitos voluntários (compromisso de compliance) ou compulsórios (requisito de compliance), mesmo que ambos sejam implícitos ou tácitos.
Compliance não é sinônimo de conformidade, já que este último conceito se refere ao cumprimento de requisitos.
Já integridade, no universo das organizações, está relacionada à cultura organizacional e refere-se ao alinhamento consistente e à adesão a valores, princípios e normas éticas, mesmo que estes não façam parte das obrigações de compliance. Neste sentido integridade é mais ampla do que compliance.
A integridade depende da integridade pessoal daqueles que atuam nos conselhos e na administração. A confiança na integridade pessoal não pode estar baseada apenas no cumprimento de requisitos da legislação. No entanto, a confiança na organização pode ser melhorada, se esta divulga claramente em seu código de conduta o que considera práticas aceitáveis para seus diretores, altos executivos e colaboradores.
Compliance pode se relacionar a valores éticos ou não (por exemplo compliance fiscal, compliance legal). Integridade refere-se sempre a valores éticos. Nesse sentido compliance é mais ampla do que integridade.
Compliance é objetivo, integridade pode ser subjetivo. Compliance é sempre auditável, integridade nem sempre.
O compliance é feito de forma sustentável, incorporando-o na cultura da organização e no comportamento e atitude de pessoas que trabalham para ela. Quando isso acontece os dois conceitos (compliance e integridade) se aproximam. Idealmente compliance e integridade deveriam compor um só conceito.
Accountability
Outro termo encontra dificuldade maior ainda, trata-se de accountability, palavra reconhecidamente de difícil conceituação e tradução em idiomas de inúmeros países. Neste caso, o anglicismo, embora útil, não resolve de todo o problema, porque o seu conceito não é de fácil entendimento, fora dos EUA, do Reino Unido e dos países de língua inglesa, de uma maneira geral.
Diversos artigos nacionais e estrangeiros atestam isso. Como exemplo, cito artigo com o sugestivo titulo “A impossível tradução do conceito de accountability para português”, facilmente encontrável na Internet.
De fato, não há uma palavra em português que possa expressar o conjunto de seus significados e, se houvesse, definitivamente essa palavra não seria responsabilidade.
Sobre o tema já foram escrito centenas de páginas, de modo que seria inimaginável que aqui o assunto fosse completamente elucidado. No entanto, para quem não foi ainda confrontado com essa questão, este artigo pode servir de primeira introdução ao tema.
Realmente, esse termo é bem entendido em países de língua inglesa, mas não nos demais. Aliás, fui eu quem em uma reunião do Grupo de Trabalho da ISO do qual participo (WG1 doTC309), e que está produzindo a norma internacional sobre Governança das Organizações (ISO 37000), levantou a necessidade da conceituação de accountability, no que fui apoiado até pelos representantes de países que falam inglês como idioma materno.
Como resultado, na sequência das reuniões, fui encarregado de coordenar um grupo dentro do WG1 do TC309 composto por representantes de oito países, a saber: EUA, Reino Unido, Austrália, Malásia, Argentina, China, Nigéria e Brasil, evidentemente. Esse grupo produziu um texto que posteriormente traduzi para o português, tendo feito algumas adaptações, para contextualizá-lo melhor à realidade brasileira. Este encontra-se a seguir:
Descrição de accountability (tradução e adaptação de texto original em inglês preparado no âmbito de grupo de trabalho da ISO)
Accountability e responsibility são normalmente traduzidos para o português por “responsabilidade”. De forma semelhante, em vários outros idiomas esses dois termos em inglês são traduzidos por um único termo, equivalente à “responsabilidade” em português. Similarmente, accountable for e responsible for são, em geral, traduzidos para o português por “responsável por”.
No entanto, em inglês, esses termos (accountability e responsibility) têm significações diferentes, difíceis de serem expressas em outros idiomas.
Na tentativa de captar essa diferenciação, em alguns contextos accountability é traduzida por “prestação de contas”, ou por “responsabilização”. Essas traduções, no entanto, captam apenas partes do sentido de accountability” e mesmo em conjunto (“prestação de contas” e “responsabilização”) não cobrem todo o significado de accountability.
No mundo das organizações, accountability exige a formação de relacionamentos; deve ser orientado para resultados e deve envolver relatórios sobre esses resultados. A aplicação desse conceito deve ter consequências e deve melhorar o desempenho de uma organização.
Quando uma organização se mantém totalmente accountable, ela procura envolver os stakeholders (ou seja, as “partes interessadas”, aquelas que afetam ou são afetadas pela organização) na identificação, compreensão e resposta a tópicos e preocupações relevantes, além de se comunicar e responder a essas partes interessadas em relação a suas decisões, ações e desempenho.
Assim, accountability envolve fornecer explicações e assumir as consequências pelas ações ou inações. Accountability envolve a obrigação da organização de prestar contas perante seu órgão de governança e o órgão de governança de prestar contas perante os stakeholders, bem como perante a sociedade em geral.
O grau de accountability pode variar de acordo com as circunstâncias, mas deve sempre corresponder à extensão de autoridade recebida.
Em uma pirâmide hipotética de accountability, a accountability pessoal é a base e a fundação. Ela impulsiona a accountability da equipe que impulsiona o desempenho corporativo no nível da accountability organizacional. É a essência para se obter um indicador positivo de impacto social, ambiental e econômico para qualquer organização no nível da stakeholder accountability, que é o ápice da pirâmide.
Quando uma pessoa ou um grupo tem capacidade, autoridade e recursos necessários, além de responsável, essa pessoa ou grupo pode ser considerada accountable por uma tarefa.
Embora uma pessoa possa ser considerada accountable e um grupo possa ser considerado responsável por algo perante alguém, na maioria dos casos, a responsabilidade carrega um elemento pessoal, enquanto que accountability pode ser considerada como responsabilidades coletivas ou cumulativas, incluindo todas as decisões ou ações dentro do escopo de autoridade de uma pessoa.
Em outras palavras, uma pessoa é responsável por suas ações e por quem ela lidera e é accountable perante aqueles que lhe concedem a autoridade e os recursos para agir, ou seja, em sentido ascendente na hierarquia até órgão de governança e finalmente, até os stakeholders.
Conclusão
Assim como ocorre em relação a outras áreas de sua atuação, o Inmetro deveria ser referência no Brasil também em relação à governança, já que naturalmente é isso que a sociedade espera do Instituto.
Adicionalmente o Inmetro deveria alertar o setor governamental brasileiro sobre o descompasso entre sua atuação quanto à governança e o estado da arte internacional. Há mecanismo legal para isso: Decreto 9.203/2017, artigos 13-A e 9-A.
Autor: Luiz Carlos Arigony – 10/07/2020
Luiz Carlos Arigony ([email protected]) é servidor do Inmetro, aposentado em abril de 2020. É também CQE (Certified Quality Engineer, retired) pela ASQ (American Society for Quality), senior member da ASQ e mestre em engenharia ambiental pela UFRJ. Em sua vida profissional atuou sempre no que hoje se denomina Infraestrutura da Qualidade. Dessa forma trabalhou na Eletronuclear, tendo sido chefe da Divisão de Controle da Qualidade. Nesse período atuou na Alemanha por dois anos e meio na KWU, subsidiária da Siemens, em função do Programa Nuclear Brasileiro. Posteriormente, como engenheiro da Eletrobrás, atuou na ISO e na ABNT por longos períodos. Desde 2017 é o representante brasileiro no ISO/TC 309/WG1, Grupo de Trabalho da ISO que desenvolve a norma ISO 37001 – Governança das Organizações.