Apesar da decisão do Senado, falta garantir proteção de dados dos cidadãos

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Na semana passada, uma reviravolta no Senado Federal surpreendeu muita gente. Após muitas idas e vindas, a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018) finalmente entrará em vigor, após a casa legislativa acatar a questão de ordem apresentada por Eduardo Braga (MDB-AM). O senador destacou que o trecho da Medida Provisória 959/2020 que postergava o início da vigência da LGPD para maio de 2020 não poderia ser avaliado – ou seja, estava prejudicado – porque o Senado já havia decidido, em abril, que o período de vacância não deveria ser novamente estendido. 

Um dia histórico para a garantia de direitos dos cidadãos, especialmente no atual contexto de alta capacidade de processamento de dados e disseminação de ferramentas de coleta de dados pessoais. Em alguns dias a LGPD entrará em vigor. Mas se para chegar até aqui foi percorrida uma maratona, o que nos espera agora é um triathlon.

O desfecho da semana passada foi especialmente surpreendente, porque diversos setores econômicos estavam unidos em uma frente empresarial (que segundo eles representava cerca de 70% do PIB nacional) com o objetivo de impor a prorrogação do início da vigência da LGPD mais uma vez –  apesar de já estar aprovada há dois anos e o Congresso Nacionalter votado a prorrogação do início da vigência das sanções para agosto de 2021.

Estávamos certos. Na noite da aprovação da MP 959/2020 sem a prorrogação da vigência da LGPD, foi publicado o Decreto 10.474/2020, que aprova a estrutura regimental e o quadro demonstrativo dos cargos em comissão e das funções de confiança da ANPD, bem como remaneja e transforma cargos em comissão e funções de confiança.

O decreto, para não destoar de outras ações recentes do governo federal, limita a participação da sociedade civil organizada e das empresas em relação ao conselho consultivo da ANPD. De acordo com o texto, caberá ao Conselho Diretor do órgão selecionar, em lista tríplice, os indicados para representar esses dois setores, e ao presidente da República a seleção final. O modelo vai na contramão do proposto quando se previu um conselho consultivo para a Autoridade, que previa a participação real da sociedade civil. Quando cabe ao chefe do Executivo selecionar os indicados a partir de uma pré-seleção de profissionais que ocupam cargo de confiança no governo, esta participação passa pelo filtro do setor governamental. É um problema grande, mas não o único.

Ao indicar a composição dos servidores que comporão o órgão, o decreto também demonstra quão pouco eficiente o Executivo pretende que a ANPD seja. O número de funcionários previstos (menos de 40) é notadamente insuficiente para o desafio de proteção de dados dos cidadãos e para produção de normas detalhadas que possam materializar os princípios da LGPD.

Próximas batalhas

 Há poucos dias tivemos o que pode ser considerada a primeira manifestação social de larga escala contra um algoritmo – ótimo exemplo do que poderemos ver com cada vez mais frequência no futuro. No Reino Unido, em virtude do cancelamento da prova que organiza o ingresso dos jovens nas universidades, o governo optou por criar um método de cálculo de uma nota, automatizado, com este fim. Os critérios e processos eram pouco transparentes. Estudantes, então, denunciaram que “o sistema” privilegiou alunos de escolas mais caras e deixou de fora os jovens de famílias de baixa renda. Estima-se que pelo menos 40% dos alunos tenham sido prejudicados neste sentido. Diante da revolta pública dos estudantes e da comunidade escolar, o governo decidiu abandonar o algoritmo.

A Lei Geral de Proteção de Dados certamente não é perfeita e não resolve todos os problemas do tratamento de dados pessoais em um país de histórico escravocrata não enfrentado. Os processos discriminatórios ignorados pelas autoridades públicas convencidas pelo marketing das empresas de software, por exemplo, podem continuar não questionados. Foram anos de muito embate, em consultas e audiências públicas, e nem tudo saiu como a sociedade civil e os pesquisadores independentes desejavam em relação à lei. Perdemos, por exemplo, que estivesse explícito na lei que os cidadãos tivessem direito à revisão por pessoa natural em caso de decisão tomada de forma automatizada. Algo que, observando o acontecido no Reino Unido, parece tão razoável e necessário. Mas um passo importante foi dado e, mesmo que com lacunas e limites, ainda pode haver ajustes nas disputas que virão.

Agora a sociedade deve se organizar para produzir interpretações da lei, no sistema de Justiça, que favoreçam a democracia e fortaleçam os direitos fundamentais. E cabe também às organizações da sociedade civil que lutam pela redução da desigualdade estarem atentas aos próximos passos do Executivo na indicação dos membros da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).

A batalha agora é garantir que qualquer indicação para composição da ANPD seja técnica, de pessoa qualificada para ocupar a posição. As pessoas indicadas passarão por sabatina no Senado e é muito importante que a sociedade acompanhe e pressione os representantes dos cidadãos a serem críticos e exigentes nos questionamentos.

Além disso, temos um árduo trabalho para assegurar a independência e autonomia da ANPD. Por lei, a Autoridade terá natureza transitória, podendo ser transformada em autarquia vinculada à Presidência da República após dois anos, a critério do governo. Em tese, ou pela redação da lei, teria desde já autonomia técnica. Mas, desta gestão – cujo Ministério da Justiça criou um dossiê com servidores antifascistas, incluindo fotografias e endereços de redes sociais das pessoas monitoradas por serem críticas ao governo Bolsonaro – não se pode esperar nada senão o pior. Seguimos atentos.

O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].

  /Congresso em Foco – disponível na internet 05/09/2020

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