Uma mudança radical
A mitologia nazista sobre a origem de Hitler enfatizava o fato de ele ter crescido na pobreza e sem um lar, o que explicaria seu desdém por comodidades.
Mas, quando Hitler se tornou chanceler, sobretudo depois que os direitos autorais de Mein Kampf (o livro “Minha Luta”) fizeram dele um homem rico, passou a gastar muita energia para reprojetar e redecorar suas residências: a antiga chancelaria nazista em Berlim, seu apartamento em Munique e a casa na montanha em Obersalzberg.
Esse período, em meados da década de 1930, coincidiu com a mudança da imagem pública de Hitler como estadista e diplomático, uma transformação que também foi promovida pelas peças de propaganda nazista de Leni Riefenstahl.
As facetas mais ásperas do extremista antissemita foram suavizadas, criando uma personalidade nova e sofisticada forjada em um ambiente doméstico cuidadosamente projetado.
Com cortinas de seda e vasos de porcelana, os designers de Hitler sugeriam a existência de um mundo particular refinado e pacífico.
Gerdy Troost, a arquiteta de interiores de Hitler, desempenhou um papel importante em transmitir uma imagem de seu cliente como homem culto e de bom gosto.
Inspirada nos movimentos da reforma do design britânico, colocou ênfase na qualidade dos materiais e nos trabalhos manuais em lugar de algo mais exibicionista ou mais chamativo.
Hitler era um cliente comprometido e admirava o gosto da decoradora, ainda que o seu muitas vezes se inclinasse para algo mais grandioso.
Os relatos sobre esse período praticamente ignoram sua existência, mas Troost foi uma mulher respeitada e temida na Alemanha nazista. Novos documentos revelam uma surpreendente influência sobre Hitler e sua importância dentro dos círculos da elite nazista.
O chalé de Hitler
Com vista para a Alemanha de um lado da montanha e para a Áustria de outro, Berghof era a propriedade mais pública entre as casas privadas de Hitler e exercia uma poderosa influência no imaginário nazista do império.
Hitler e seus publicistas se inspiraram nas imagens das montanhas dos movimentos literários e artísticos da Alemanha, em especial o romantismo, para mitificar o Führer e convertê-lo em um líder místico que às vezes submergia e encarnava as terríveis e magníficas forças da natureza.
Ao mesmo tempo, a montanha serviu como ferramenta para humanizar o líder alemão através do contato com animais e com crianças. Por meio de cartões postais, revistas e livros oficiais, os alemães consumiram fantasias sobre uma vida doméstica ideal enraizada em uma paisagem natural.
Entre a expansão do Lebensraum (“espaço vital”) e o ar puro da montanha, um lugar em que o sol brilhava e crianças loiras brincavam, os nazistas encorajaram os alemães a sonharem com um futuro maravilhoso, disponível a quem se dispusesse a sacrificar o bolso e a liberdade.
Para a imprensa estrangeira, um cavalheiro bávaro
O auge da cultura das celebridades nas décadas de 1920 e 1930 desencadeou um apetite voraz por informações sobre a vida cotidiana de ricos e famosos.
A equipe que Hitler percebeu isso rapidamente e aproveitou o apetite do público para promover estratégias de relações públicas muito comuns hoje.
Os jornalistas que escreviam para a imprensa em inglês engoliram a propaganda, alimentando uma imagem falsa de Hitler ao publicar histórias elogiosas sobre o Führer, inclusive quando elas contrastavam com uma realidade bem diferente e inquietante.
Em 30 de maio de 1937, um mês depois que aviões alemães haviam bombardeado Guernica, na Espanha, a revista The New York Times Magazine publicou uma reportagem de primeira página sobre o retiro idílico de Hitler nas montanhas.
Em um texto recheado de admiração, escrita pelo correspondente Otto Tolischus, o céu não foi apresentado como um meio de permitir a destruição, mas como um local que ensejava a meditação, a beleza e a vida simples.
A reportagem descrevia como o líder da Alemanha, rodeado pelos alpes e em comunhão com a natureza, contemplava o Reich e se deleitava comendo chocolate. Não se mencionam os ataques de Hitler contra Guernica ou o sofrimento das vítimas, algo que seria retratado e imortalizado pelo pintor Pablo Picasso mais tarde.
Em novembro de 1938, pouco depois da anexação da Região dos Sudetas na Tchecoslováquia e no mesmo mês em que ocorreu a Noite dos Cristais (pogrom contra a população de judeus que vivia na Alemanha), a revista Homes and Gardens publicou uma reportagem com o título A Casa da Montanha de Hitler, na qual atribui ao Führer o projeto de Berghof.
O texto elogiava seu bom gosto e descrevia sua vida privada como um entorno de refinamento, de cenas pacíficas e amizades agradáveis.
Dias antes da assinatura do pacto nazista-soviético em agosto de 1939, a The New York Times Magazine publicou uma outra reportagem entusiasmada sobre a residência, na qual se ressaltava, mais uma vez, a vida doméstica saudável do Führer, sua hospitalidade sem pretensões e sua paixão por doces.
Life, Vogue e outras revistas bastante conhecidas também deram a seus leitores a oportunidade de ver ensaios fotográficos que mostravam os cômodos de Hitler.
Na imprensa britânica, porém, as histórias sobre o bom gosto e as atividades nobres do líder alemão evaporaram logo que as hostilidades começaram.
Com aviões de guerra alemães bombardeando cidades e vilarejos, os britânicos perderam rapidamente o interesse em como Hitler tomava seu chá.
O público americano demorou em admitir que havia sido enganado, refletindo sua ambivalência em relação à participação do país em outra guerra.
Durante as últimas semanas do conflito na Europa, as forças aéreas aliadas bombardearam Berghof e as tropas da SS de Hitler o incendiaram enquanto batiam em retirada. Residentes da região e soldados franceses e americanos saquearam o que restou.
Em 1947, as ruínas acabaram se tornando um destino para multidões de turistas curiosos.
As autoridades começaram a se preocupar com o fato de que seguidores de Hitler passaram a ir ao local para render homenagens ao antigo líder.
Assim, com a aprovação do Exército americano, que ocupou Obersalzberg, o governo bávaro demoliu o que restava de Berghof e, posteriormente, plantou árvores no local.
Em 2008, foi colocada uma placa que identifica a localização da antiga casa de Hitler. Nela há uma breve história sobre a residência em inglês e alemão que põe por terra a visão simplista e amplamente difundida de sua função doméstica.
“Hitler passou aqui mais de um terço do tempo em que esteve no poder. Aqui ocorreram importantes discussões e negociações políticas e foram tomadas decisões cruciais, que conduziram às catástrofes da Segunda Guerra Mundial e ao Holocausto, causando a morte de milhões de pessoas”, diz o texto.
Nunca mais
O êxito na construção da imagem de um Hitler “caseiro” naquela época destaca a necessidade de uma postura crítica por parte das indústrias que vendem notícias sobre casa ou estilo de vida, que podem ter enorme influência sobre a opinião pública.
Nos últimos anos, os meios de comunicação ocidentais vinham adulando Asma al-Assad, a primeira-dama síria, chegando a dizer que ela exerce uma influência refinada e doméstica sobre o marido.
Ainda que alguns desses veículos, incluindo a revista Vogue, tenham tentado eliminar os rastros dessas reportagens na internet, as histórias seguem sendo reproduzidas com orgulho na página do presidente Bashar al-Assad na internet.
Mas não devemos esquecer que, por trás do lar de uma pessoa frequentemente há muito mais do que parece.
Este artigo foi publicado originalmente no portal The Conversation. Para ler a versão original, clique aqui.