Na manhã desta sexta-feira (11/9), o Supremo Tribunal Federal (STF) divulgou decisão do ministro Celso de Mello determinando que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) compareça em pessoa para prestar depoimento em um inquérito que tramita na Corte.
A investigação apura as acusações do ex-ministro da Justiça Sergio Moro, segundo quem Bolsonaro teria tentado intervir na Polícia Federal para proteger seus familiares e aliados de investigações.
A decisão de Celso de Mello irritou os apoiadores de Bolsonaro.
Vários deles lembraram que, em 2017, o mesmo STF permitiu ao então presidente Michel Temer (MDB) prestar depoimento por escrito em um dos vários dos inquéritos contra si — naquele caso, a apuração era sobre suspeitas de corrupção no setor portuário.
Se foi assim com o ex-presidente Temer, por que Bolsonaro não poderia agora se beneficiar da mesma regra e também prestar depoimento por escrito?
Segundo advogados criminalistas ouvidos pela BBC News Brasil, a regra sempre foi o depoimento presencial dos investigados — inclusive Presidentes da República. Em 2017, Fachin abriu uma exceção para Michel Temer.
Ele deixou o emedebista responder às perguntas por escrito porque nem o Ministério Público Federal e nem os outros investigados no processo tinham interesse em que o depoimento fosse presencial.
Já no caso de Bolsonaro, Celso de Mello entendeu que era importante dar aos advogados de Sergio Moro o direito de questionar o presidente — o ex-juiz da Lava Jato também é investigado no inquérito.
Em relação a Bolsonaro, o Ministério Público também tinha concordado com o depoimento por escrito: o procurador-geral da República, Augusto Aras, defendeu o direito de Bolsonaro de prestar depoimento por escrito, o que não deverá acontecer.
Agora, cabe à Polícia Federal determinar a data, horário e local do depoimento do Presidente da República.
Na condição de investigado, Bolsonaro tem o direito de permanecer calado. Como o inquérito no STF é público, é provável que o depoimento do presidente também seja divulgado.
Interpretação do STF segue a mesma, diz criminalista
A rigor, o entendimento do STF segue o mesmo pelo menos desde o ano 2000.
“Não acho que houve uma mudança de entendimento (do STF), e vou explicar o porquê. O Código de Processo Penal é muito claro em facultar para algumas autoridades, de alto escalão, a possibilidade de, na condição de testemunhas, prestarem depoimento por escrito. É uma opção dada a elas”, diz o advogado criminalista e professor Fernando Castelo Branco.
“Tanto Michel Temer (em 2017) quanto Bolsonaro não estão na condição de testemunhas. Mas por que então o Michel pôde prestar por escrito naquele momento? Na época, o ministro Fachin reconheceu a reconheceu a vigência e deu validade ao que dispõe o Código de Processo Penal”, diz ele.
“Mas, como o Ministério Público não se opôs, e ninguém se opôs naquele momento a que ele (Temer) prestasse o seu depoimento por escrito, ele (Fachin) excepcionalmente autorizou isso”, diz Castelo Branco, que é professor de processo penal no curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
No despacho sobre Temer, Fachin cita uma decisão anterior do próprio Celso de Mello — do ano de 2000 — para reafirmar o entendimento de que apenas testemunhas têm direito a responder por escrito.
“No que pertine à oitiva do Presidente da República, Michel Miguel Elias Temer Lulia, sabido que, no entendimento do Supremo Tribunal Federal, ‘a exceção estabelecida para testemunhas não se estende nem a investigado nem a réu, os quais, independentemente da posição funcional que ocupem, deverão comparecer, perante a autoridade competente, em dia, hora e local por esta unilateralmente designados'”, escreveu Fachin na ocasião.
“Não existe nenhuma prerrogativa do Presidente da República que autorize que ele seja ouvido por escrito. Ele detém essa prerrogativa caso seja testemunha em algum caso. O que não é a situação em tela, nem do Temer e nem do Bolsonaro”, reforça a advogada criminalista Fernanda de Almeida Carneiro.
Na decisão sobre Bolsonaro, Celso de Mello frisou a necessidade de preservar o direito do outro investigado no inquérito (Sergio Moro) de questionar o presidente da República sobre o assunto.
“O Senhor Presidente da República, por ostentar a condição de investigado, não dispõe de qualquer das prerrogativas (próprias e exclusivas de quem apenas figure como testemunha ou vítima) a que se refere o art. 221 (do Código de Processo Penal), a significar que a inquirição do Chefe de Estado, no caso ora em exame, deverá observar o procedimento normal de interrogatório”, escreveu Celso de Mello na decisão sobre Bolsonaro.
Regra deveria garantir direitos do investigado, diz criminalista
A interpretação do STF foi necessária porque o Código de Processo Penal (CPP) permite a algumas autoridades prestar depoimento por escrito quando forem testemunhas.
Mas o CPP não traz uma regra explícita para o caso dessas autoridades serem investigadas. E nem todos os advogados criminalistas ouvidos pela BBC News Brasil concordam com essa interpretação.
“É preciso olhar de forma ampliativa as garantias dos investigados, e não de forma restritiva. Significa que, especialmente quando há prerrogativas funcionais (decorrentes do cargo), não se pode restringir as garantias do investigado. Deve-se ampliá-las, porque esse é o espírito do texto constitucional”, diz o advogado criminalista Thiago Turbay, sócio do escritório Turbay Boaventura Advogados.
“Lá (no Código de Processo Penal) há a menção à palavrinha ‘inquirição’ (depoimento). O texto não discriminou se seria na qualidade de investigado ou não. E quando está na qualidade de investigado, aí sim que tem que haver mais garantias ainda”, diz Turbay.
“Mas tem mais coisas. O Regimento Interno do STF e a Lei 8.038 (de 1990, que determina normas para investigações no STJ e no STF) também trazem essa prerrogativa relacionada à inquirição. Então, se temos essas normas dizendo que a inquirição policial deve ser organizada de forma a ampliar garantias (…), eu não posso interpretar isso de forma restritiva”, complementa Turbay.
Do que Bolsonaro é acusado?
Sergio Moro — que também é investigado no inquérito — já prestou depoimento à Polícia Federal.
Ele falou à PF durante quase nove horas seguidas na Superintendência da corporação em Curitiba (PR), em maio deste ano.
Ao deixar o cargo de ministro da Justiça, Moro acusou Bolsonaro de querer remover do cargo o ex-diretor-geral da Polícia Federal Maurício Valeixo para proteger seus familiares e aliados de investigações.
Bolsonaro nega que fosse essa a intenção.
Em seu discurso de despedida do governo, Moro disse que o presidente reclamou mais de uma vez sobre a necessidade de ter alguém no comando da PF que lhe passasse informações.
“O presidente me disse, mais de uma vez, que ele queria ter uma pessoa do contato dele que ele pudesse ligar, que ele pudesse colher informações, colher relatórios de inteligência”, disse Moro à época, ponderando que não é apropriado que o Presidente da República tenha acesso direto a esse tipo de informação.
No mesmo dia em que pediu demissão, Moro encaminhou ao Jornal Nacional, da TV Globo, trechos de uma conversa dele com Bolsonaro em um aplicativo de mensagens. Na imagem, o presidente envia um link de uma reportagem segundo a qual a PF está “na cola” de 10 a 12 deputados bolsonaristas.
“Mais um motivo para a troca”, disse Bolsonaro, se referindo à mudança na direção da instituição.
Logo depois do discurso de despedida de Moro, Jair Bolsonaro fez um pronunciamento no Palácio do Planalto para rebater as acusações formuladas pelo ex-ministro.
Em seu discurso, Bolsonaro reafirmou que queria trocar o comando da Polícia Federal, mas disse que as mudanças eram necessárias por que a PF o estaria deixando mal informado.
Além disso, o presidente disse temer pela segurança de seus familiares.
Sob Sergio Moro, a Policia Federal também teria negligenciado as investigações a respeito do atentado a faca sofrido por ele em Juiz de Fora (MG), durante a campanha eleitoral.