Especialistas explicam que mesmo sem nenhuma regulamentação para o home office, há um consenso sobre o que está sendo aplicado em meio à pandemia
Muitos profissionais já completaram um ano trabalhando no modelo home office por causa da pandemia de coronavírus. Entre erros e acertos, desafios a serem superados e os aprendizados que já ficaram, parte das pessoas conseguiu se adaptar, bem como algumas empresas, que já devolveram seus espaços físicos ou mesmo adotaram um formato híbrido, aquele em que o profissional trabalha de casa alguns dias, mas vai até o escritório em outros.
O InfoMoney procurou advogados trabalhistas para entender quais foram os avanços do ponto de vista jurídico desde que o home office começou a ser implementado de forma mais acelerada com a chegada da pandemia no ano passado. Confira os principais destaques.
Ainda falta regulamentação
Os advogados explicaram que do ponto de vista legislativo neste último ano foram criadas algumas medidas provisórias e recomendações do Ministério do Trabalho, mas não houve nenhuma nova lei regulamentando o home office nesse período. O que aconteceu na prática é que de lá para cá foi construído uma espécie de consenso em relação às regras a serem seguidas, mas apesar dos avanços, naturalmente, ainda há alguns desafios a serem superados.
Considerando a legislação já existente, o que se tem hoje regulamentado são dois formatos definidos pela CLT: o regime ordinário de trabalho, aquele totalmente presencial, em que o profissional trabalha no escritório da empresa, oito horas por dia, 44 horas semanais, com direito a férias, horas-extras e 13° salário; e também o teletrabalho (ou home office), quando os profissionais trabalham de suas casas, sem controle de jornada e sem pagamento de horas-extras.
Porém ainda há algumas discussões sobre a regulamentação do chamado modelo híbrido, quando o funcionário trabalha alguns dias em casa, mas também vai ao escritório alguns dias.
“O volume de locação de escritórios caiu muito no ano passado, e a maior tendência entre nossos clientes é a migração para um modelo híbrido, tentando adequar o melhor de dois mundos”, afirma Jadson Andrade, head de inteligência de mercado da Cushman & Wakefield.
A ultima pesquisa da consultoria mostra que 79% dos executivos das empresas contatadas pretendem retomar aos escritórios, sem abandonar a possibilidade de trabalhar em casa alguns dias da semana. O InfoMoney fez uma reportagem explicando os desafios do modelo híbrido.
Em março de 2020 foi criada a Medida Provisória (MP) n° 927, por exemplo, que flexibilizou algumas regras previstas na CLT, como férias coletivas, o próprio teletrabalho, antecipação de feriados, entre outros pontos. Porém, ela deixou de valer em 19 de julho, porque não foi convertida em lei pelo Congresso.
Ainda, no mesmo mês, foi criada a MP nº 936, que tratava da suspensão de contrato ou redução temporária de jornada e salário. A medida foi sancionada na Lei 14.020, que instituiu o BEm, benefício emergencial pago a trabalhadores que foram impactados pelos efeitos dessa MP. Porém, a medida estava vinculada ao Estado de Calamidade, que deixou de valer em dezembro de 2020. Portanto, a MP também perdeu sua validade.
Em outubro de 2020, o Ministério Público do Trabalho (MPT) publicou uma nota técnica com 17 recomendações sobre o home office para intensificar a fiscalização das condições dos trabalhadores que permanecerão nesse regime. A lista vai além das exigências da reforma trabalhista, ao detalhar questões como limitação de jornada, direito à desconexão e preservação da privacidade da família do trabalhador, e está sendo vista como um desincentivo a tornar o modelo permanente para as empresas.
Fora essas medidas e recomendações, há atualmente no Congresso alguns projetos de lei que pretendem preencher as lacunas do atual modelo de home office. Entre eles, o PL 3512/20, que obriga o empregador a fornecer e manter os equipamentos e a infraestrutura necessária e adequada à prestação do trabalho em regime de teletrabalho, ressalvado o disposto em acordo coletivo, bem como a reembolsar o empregado pelas despesas de energia elétrica, telefonia e internet.
Ainda, PL 3915/20 trata do reembolso aos funcionários devido às despesas com infraestrutura, por exemplo, entre outros projetos em andamento.
Porém, Daniela Yuassa, advogada trabalhista do escritório Stocche Forbes, afirma que não há muita expectativa sobre uma aprovação de alguma nova regulação em breve. “Seria muito bom para ajudar a orientar as decisões que empresas e funcionários tomam, mas não é a prioridade diante da piora da pandemia. Talvez demore para algum PL emplacar”, avalia.
Enquanto uma legislação mais direcionada ao home office não vem, as empresas estão negociando com os seus funcionários os principais detalhes e essa é a principal recomendação, segundo a advogada. “As empresas estão atentas à Justiça do Trabalho. Por mais que ainda existam algumas dúvidas, nenhuma empresa quer problema trabalhista. Estou observando uma convergência grande em prol da resolução de conflitos por meio de negociações e políticas internas”, avalia.
André Ribeiro, advogado trabalhista sócio do escritório Dias Carneiro Advogados, também entende que a melhor opção para ambas as partes é negociar. “O funcionário tem o direito de perguntar e entender o formato do seu trabalho, questionar a posição do empregador. E a empresa deve seguir as leis e recomendações que temos atualmente para evitar qualquer problema jurídico no futuro”, diz.
Contrato de trabalho
Considerando o contexto, a recomendação dos especialistas é para que as empresas definam qual é o formato de trabalho do profissional na atual situação.
“Defina se vai manter o formato de controle de horas mesmo com o funcionário à distância, ou se vai fazer uma transição para um formato de teletrabalho ou se vai adotar um modelo híbrido. Seja qual for a decisão da empresa, a recomendação é sempre avisar o empregado e formalizar a mudança se existir, por meio de um aditivo do contrato”, explica Daniela.
Pela CLT, a empresa tem um prazo de 15 dias para efetivar uma transição, no caso da mudança do presencial para o teletrabalho, por exemplo. “Ano passado, com vigência da MP 927 o prazo tinha sido reduzido para 48 horas, mas isso não vale mais. Ou seja, o funcionário deve ser avisado da mudança com 15 dias de antecedência”, diz Luis Mendes, advogado trabalhista do escritório Pinheiro Neto.
Controle de horas
Cássia Pizzotti, advogada e sócia da área trabalhista do escritório Demarest, explica que o empregado que trabalha de casa não está sujeito a controle de horário de trabalho, banco de horas e pagamento de horas extras.
Porém, é preciso prestar atenção para não caracterizar como teletrabalho um formato que seria o do modelo híbrido. “Por definição, não há uma quantidade de dias que define o que é teletrabalho e o que não é. Não tem uma definição legal: três dias por semana em casa é teletrabalho. Não é isso que vai definir, é um conceito de preponderância”, diz.
Então, segundo ela, a recomendação é que a empresa acerte com o funcionário ou faça um acordo coletivo com o sindicado sobre qual é o local de trabalho e qual é a exceção.
“No caso de haver o controle de horas a ser definido entre as partes ou não, o que se recomenda é o respeito à Constituição, tomando os cuidados necessários para que a duração do trabalho não ultrapasse 8 horas diárias ou a jornada prevista por instrumentos de negociação coletiva”, afirma Leila Dissenha, advogada trabalhista e professora da PUC-PR.
A recomendação do Ministério Público do Trabalho é que as empresas que têm empregados com controle regular de jornada permaneçam desse jeito durante o home office, e que fiquem isentos de controle de jornada aqueles que já não se enquadravam nessa categoria antes da crise. Mas a decisão é da empresa, segundo Ribeiro.
Daniela pontua que se o funcionário tem reuniões ou outros compromissos regulares na empresa, o ideal é seguir as regras do presencial.
“Fica mais difícil avaliar o controle de jornada à distância, mas as empresas podem ter um sistema de marcação de ponto online. É um desafio porque exige uma troca de confiança entre empresa e empregador, mas diante de uma pandemia e uma outros fatores acontecendo em casa, como o cuidado com os filhos, é o que se espera da relação, além de compreensão e transparência entre as partes”, explica.
Home office dá direito a todos benefícios?
Daniela, do Stocche Forbes, explica que, sobre os benefícios há consenso bem definido. “Plano de saúde e vale alimentação não deveriam ser alterados. Se a empresa já fornece, a regra é manter ainda mais em situação de crise sanitária”, diz.
Agora, no caso de vale transporte a maioria das empresas deixou de conceder aos funcionários dada a situação da pandemia. “Com os funcionários trabalhando de casa, não há a necessidade desse benefício. Se o empregado voltar ao trabalho, mesmo que de forma híbrida, a empresa pode voltar a dar o benefício de forma proporcional”.
O vale refeição é um benefício opcional, na visão da advogada. “Em tese, as empresas que cortaram o benefício têm respaldo jurídico, afinal o vale refeição seria usado para os intervalos de almoço no enquanto estiver no escritório. Com os funcionários em casa, teoricamente não usariam o vale”, diz.
“Por outro lado, se a pessoa não tem tempo de cozinhar, pode pedir algo com o benefício. Ainda, se a empresa tinha refeitório e fornecia a refeição no local de trabalho, deixa de ser obrigada a fornecer a refeição com os empregados em casa. Por fim, algumas empresas que já davam o benefício o mantiveram, enquanto outras cortaram. Nesse caso, há argumento para os dois lados”, complementa.
Ajuda de custo
Com os funcionários em casa, muito se falou nesse um ano de uma ajuda de custo extra por parte das empresas em relação às despesas do home office, como internet, mesa, cadeira, iluminação, entre outros pontos.
Sobre esse tema, Leila, da PUC, explica que nos termos da lei, caso o empregado não possua os recursos necessários, a empresa deve arcar com as despesas de equipamento.
“O artigo 75-D da CLT é claro no sentido de que é do empregador a responsabilidade ‘pela aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos’. Cabe a ele, portanto, no caso do teletrabalho, providenciar a infraestrutura necessária para que o empregado possa executar suas atividades, incluindo o reembolso de valores por ele despedidos para tanto”, explica.
Ribeiro lembra, no entanto, que não existe uma lei ou regra que obrigue o empregador pagar nada no que diz respeito a reembolso de despesas ou ajuda de custo ao funcionário. “As empresas que tinham orçamento para isso optaram por dar algum tipo de ajuda dada a situação anormal que enfrentamos”, diz.
Daniela acrescenta que em casos do modelo híbrido ou mesmo para as empresas que mantiveram as regras do presencial a recomendação é alinhar com os funcionários conforme a necessidade e se a empresa optar por arcar com algum custo, que seja em valor compatível com a despesa.
“O mínimo necessário para o profissional estar online é recomendado, mas o fornecimento de iluminação, mesa, internet, plano de celular, por exemplo, é opcional. Se a empresa optar por fornecer precisa fazer um aditivo no contrato mostrando o valor que vai ser pago ou reembolsado. Só vale lembrar que é sempre preciso oferecer valores compatíveis com o que está sendo coberto: não adianta dizer que vai pagar parte da internet ou mesmo o plano todo e dar R$ 10 por mês. Sabemos que o valor do plano, na média, é bem maior que isso, por exemplo”, afirma.
Cássia reitera que essas questões devem ser endereçadas sempre em documento escrito, cujas condições variarão caso a caso, conforme as práticas de cada empresa.
Vale ainda comentar que a legislação define que os equipamentos fornecidos e despesas pagas pelo empregador não terão natureza salarial e, portanto, não integrarão a remuneração dos empregados para o cálculo de férias + 1/3, 13º salário, FGTS, contribuições previdenciárias, entre outros.
Segurança
Sobre segurança, as recomendações se mantêm as mesmas desde o início da pandemia e giram em torno de alguns aspectos como a ergonomia, os acidentes laborais e os protocolos de segurança da pandemia, nos casos de volta ao trabalho.
Ribeiro ressalta que as empresas devem se preocupar com a ergonomia dos funcionários ao adotar o modelo híbrido. Isso porque no modelo presencial é obrigatório o fornecimento de cadeira ergonômica para o funcionário, além de o empregador precisar garantir que o funcionário se adapte, de modo a proporcionar conforto, segurança e desempenho.
No teletrabalho, por outro lado, embora a recomendação seja instruir os empregados de maneira expressa e ostensiva sobre como evitar doenças e acidentes de trabalho, não há obrigatoriedade de fornecimento de equipamentos como cadeiras ergonômicas. “Por isso, a recomendação é que as empresas adotem as regras de ergonomia no modelo híbrido, como fornecer a cadeira para o funcionário”, diz Ribeiro.
Mendes, do Pinheiro Neto, lembra que pela CLT o funcionário em regime teletrabalho precisa receber orientações em relação à segurança do trabalho. “O empregador deve instruir os empregados quanto às precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho, exigindo que o empregado assine termo de responsabilidade quanto ao cumprimento dessas orientações no teletrabalho e também no formato híbrido”, diz.
Por fim, Ribeiro explica que para as empresas que planejam voltar aos escritórios é crucial seguir os protocolos de distanciamento que surgiram com a pandemia.
“As empresas devem seguir todos os protocolos de segurança: federais, estaduais e municipais. E nossa recomendação é para que as empresas tenham uma área de saúde do trabalho que acompanhe de perto todas essas questões para que o ambiente esteja apto a receber os funcionários”, diz.
Alerta para as empresas
Mendes, do Pinheiro Neto, lembra que a pandemia forçou todo mundo a se adaptar ao trabalho à distância e pegou todos de surpresa.
“As empresas e funcionários foram seguindo o dia a dia conforme as novidades surgiam: fornecer ou não equipamentos, dar ou não algum tipo de reembolso de despesa, formalizar a mudança de contrato, entre outras decisões foram tomadas no calor do momento e conforme a empresa tinha fôlego financeiro e organização para colocar tudo em prática”, diz. Porém, em 2021, passado quase um ano da pandemia, todas as decisões ganham um ponto a mais de atenção, segundo ele.
“Hoje não temos mais a MP 927 para flexibilizar algumas regras, nem o reconhecimento do Estado de Calamidade, que acabou no fim de dezembro. Então, a empresa que não tiver feito um aditivo ou formalizado de alguma forma a mudança do presencial para o home office, por exemplo, pode ter problemas. E não só isso: precisa formalizar a ajuda de custo, se tiver. É importante dar orientações sobre segurança de trabalho e ergonomia e confirmar com o empregado o recebimento das orientações”, afirma.
Ele complementa. “Muitas empresas deixaram de lado as formalidades jurídicas porque na prática o home office vem dando certo. Mas atualmente não temos nenhuma medida provisória que abra algum tipo de exceção, e ao mesmo tempo o modelo híbrido não é regulamentado. Por isso, a recomendação é seguir a CLT e o consenso consolidado até aqui”, diz.