A PEC 38/2025 foi apresentada com assinaturas suficientes para tramitação e, desde logo, carrega um enunciado político sedutor: “acabar com privilégios”. O problema não é o slogan, mas o método. No artigo 37 da Constituição, a chamada reforma administrativa pretende inserir o inciso XXIII, que não disciplina; suprime. Não especifica os abusos; extingue a própria categoria normativa que permitiria distingui-los — automaticamente e sem transição. A técnica é esta: deslocar para o texto constitucional proibições absolutas que incidem sobre garantias funcionais e sobre parcelas remuneratórias já estabilizadas no serviço público por legislação válida e confirmada pela jurisprudência, sem espaço para transação, equivalência ou compensação. Em termos jurídicos: transformar “moralização” em proibição constitucional de regimes funcionais inteiros — em vez de punição dirigida a arranjos específicos.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal construiu um núcleo duro de estabilidade remuneratória no serviço público. Esse núcleo não impede reestruturações, convergências de rubricas ou extinção de parcelas; o que impede é decesso nominal sobre aquilo que o servidor já vinha legitimamente percebendo (artigo 37, XV). Não se trata de congelar modelos — trata-se de não autorizar que o custo da mudança recaia integralmente sobre o indivíduo.
Esse é o eixo comum a dezenas de precedentes: a irredutibilidade impede a diminuição do valor nominal que já integra o patrimônio jurídico do servidor (ADI 2.075-MC; ADI 2.238); a garantia não é absoluta, mas as derrogações constitucionalmente previstas são taxativas — contribuição previdenciária, por exemplo (ADC 8-MC); e a extinção ou absorção de parcelas só é compatível quando não produz perda nominal, sendo legítima a criação de vantagem pessoal de transição (RE 561.836; RE 597.396; MS 25.072). Também está assentado que não há direito adquirido a aumentos que não chegaram a produzir efeitos financeiros (ADI 5.606), mas está igualmente assentado que o teto tem eficácia imediata e não protege pagamentos acima dele (RE 609.381), e que expedientes laterais contra o nominal — como aumento de jornada sem contraprestação proporcional — configuram violação à irredutibilidade (ARE 660.010). Esse mosaico não é instabilidade — é doutrina constitucional consolidada.
É contra esse núcleo — reconhecido e reiterado pela Suprema Corte — que o novo inciso XXIII se volta. O que a PEC faz não é disciplinar o futuro: é desconstituir o passado. A reforma opera como se o servidor não tivesse patrimônio jurídico nenhum. Como se absolutamente tudo fosse expectativa e nada fosse situação constituída. A gramática da PEC é esta: proibição, absolutização e ausência de transição. É nesse ponto que deixa de ser reforma e se torna aniquilação normativa. É por isso que o problema não é de política remuneratória; o problema é o artigo 60, § 4º, IV, da Constituição.
Expropriação e supressão de garantias
Apenas para ilustrar — não para esgotar — o alcance dessa guinada: as alíneas d, f e g do novo inciso XXIII vedam, em nível constitucional, adicionais e vantagens baseadas em tempo de serviço e até mesmo progressão exclusivamente temporal. Mais do que proibir abusos, bloqueiam a própria dimensão temporal como variável de carreira. Isso não é moralização: é expropriação do espaço de conformação legislativa (artigo 39, § 1º) e supressão sem compensação de situações consolidadas ao longo de décadas. Há carreiras — também na União, além de estados e municípios — cujo desenho foi edificado com o tempo de serviço como variável moderada de estabilidade e de retenção institucional. A PEC trata tudo como se fosse privilégio, sem distinção. Sob a jurisprudência do STF — ao contrário — o critério é simples: extinguir pode; extinguir com decesso não pode.
A alínea e parece, num primeiro olhar, alinhada à Constituição — porque o sistema não estimula aumentos retroativos, pois a fixação da remuneração dos servidores depende de lei prévia e de prévia dotação orçamentária (artigos 37, X, e 169). Mas é só aparência. O STF bloqueia o uso oportunista de efeitos ex tunc para saltos artificiais; não proíbe a retroação técnica que serve para corrigir defasagens, por exemplo, na hipótese de revisão geral na mesma data — cuja correção ou omissão exigem retroação. A PEC — ao proibir retroativos em absoluto — produz o inverso do que a jurisprudência protege: premia o atraso. Quanto mais o Estado demora em reestruturar ou corrigir, maior o ganho fiscal da inércia.
A alínea i, ao exigir perícia individual para adicionais de insalubridade e periculosidade, subverte técnica admitida pela Constituição (artigo 7º, XXII e XXIII, via artigo 39, § 3º). O texto constitucional não presume que todo risco seja episódico; admite a categorização prévia de ambientes e atividades. A PEC transforma prova em regra, e a regra em negação: basta não periciar para não pagar. Não reduz privilégio; reduz proteção sanitária.
A alínea j é ainda mais grave. A conversão em pecúnia de férias e licenças não é prêmio; é remédio. A jurisprudência reiterada reconhece o dever de indenizar quando o Estado criou ou tolerou a impossibilidade de fruição (ARE 721.001; MS 31.371; RE 1.416.513; MS 39.602). A PEC constitucionaliza o oposto: se o Estado inviabilizar o gozo, a perda será do servidor — e a economia será pública. O ilícito da omissão se torna mérito fiscal.
Por fim, a alínea m converte aposentadoria em marco de descontinuidade remuneratória, ainda que o regime seja de paridade. A PEC proíbe — de saída — a extensão de parcelas de desempenho a aposentados, mesmo quando a própria arquitetura legislativa tenha integrado essas parcelas ao padrão de carreira. O efeito é transformar o ato de aposentadoria em gatilho constitucional de perda — não por opção do legislador, mas por interdito abstrato.
Considerações finais

é advogado especializado em Direito do Servidor, é sócio do Cassel Ruzzarin Santos Rodrigues Advogados. / Linkedin
Esses exemplos bastam para demonstrar o vetor. O inciso XXIII não é uma política pública; é um método de erosão. Não é combate a abusos; é supressão sem compensação. Não é moralização; é eliminação do conteúdo jurídico mínimo das garantias. O constituinte derivado não está autorizado a isso. Porque não se trata de “remuneração de servidor”: trata-se de direito adquirido, confiança legítima, segurança jurídica e equivalência material. E isso não é negociável. Esse é o núcleo de direitos individuais que o artigo 60, § 4º, IV protege. A PEC não reforma: a PEC atinge exatamente o que o STF protegeu expressamente. Por isso, o inciso XXIII é incompatível com a cláusula de limitação ao poder de reforma.













