Cinco perguntas diretas e respostas claras sobre o que é “terrorismo”

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2009

Estudiosa das Relações Internacionais analisa o uso e os significados dessa palavra cada vez mais presente na boca de autoridades e da mídia brasileira

O anúncio do governo brasileiro de que, na quinta-feira (21), havia desbaratado uma célula do Estado Islâmico que planejava cometer um atentado durante a Olimpíada aproximou o Brasil do debate sobre um tema que é cada vez mais mencionado no mundo: o terrorismo.

As ações do grupo radical Estado Islâmico no exterior reforçam o argumento de quem vê o Ocidente como vítima de uma campanha orquestrada pelo “extremismo islâmico”. Esse discurso, que associa uma das maiores religiões do mundo a um ato de violência específico, cometido por pequenas organizações, corrobora a tese do enfrentamento entre o Ocidente e Oriente, tão ao gosto de extremistas islâmicos quanto de alguns políticos ocidentais – sendo talvez o maior expoente dessa corrente o candidato republicano à Casa Branca, Donald Trump.

O Nexo recolheu cinco perguntas recorrentes nesse debate para que uma especialista abordasse o tema. A francesa Cecilia Baeza é professora de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da PUC em São Paulo e fez doutorado no Instituto de Estudos Políticos (Science Po), em Paris. Há mais de dez anos ela pesquisa precisamente os fluxos migratórios do Oriente Médio

O que é terrorismo? Quem define se um ato é terrorista ou não?

CECILIA BAEZA O terrorismo é um dos conceitos mais controversos desde o século 19. Deixando de lado o fato de que envolve atos de violência, não existem critérios objetivos que permitam estabelecer uma definição de consenso. Há décadas que as Nações Unidas tentam estabelecer essa definição, sem sucesso. Até o momento, cada Estado ou organismo internacional adota sua própria definição em função das suas problemáticas de segurança interna e externa.

O principal problema é que a palavra ‘terrorismo’ tem sido usada por poderes opressores para deslegitimar as ações dos que os combatem. A resistência francesa contra a ocupação nazista durante a Segunda Guerra Mundial, a luta anticolonial durante a Guerra da Argélia, a resistência palestina contra a ocupação militar israelense, ou a oposição na Síria contra o regime autoritário de Bashar al Assad: todas foram rotuladas de ‘terroristas’. Esses exemplos mostram de que maneira o conceito de ‘terrorismo’ pode constituir uma arma retórica muito poderosa para criminalizar internacionalmente os atores não estatais que lutam contra um Estado em uma guerra assimétrica.

Mesmo aqui no Brasil, a aprovação da lei antiterrorista provocou muitos debates. Sempre existe a possibilidade de instrumentalizar uma ameaça para criminalizar amplas categorias de atores sociais que se contrapõem aos interesses do Estado. Muitas ONGs de direitos humanos denunciaram assim o projeto de lei antiterrorismo, por criminalizar os movimentos sociais.

Em geral, eu diria que um dos principais problemas do conceito de ‘terrorismo’ é que ele se aplica unicamente a atores não estatais, deixando de lado a possibilidade de que o próprio Estado se comporte de forma terrorista. Durante os anos 1980, alguns cientistas políticos usaram o conceito de ‘terrorismo de Estado’ para falar das práticas de repressão e de terror das ditaduras argentina e chilena. Porém, essa caracterização tem, até hoje, pouco impacto nos debates das organizações internacionais, já que os Estados protegem suas prerrogativas em nome da segurança.

Existe um ‘extremismo islâmico’?

CECILIA BAEZA Existe no Islã, como em todas as grandes religiões, correntes fundamentalistas que pregam um ‘retorno às origens’ da religião, como ela era vivida na época do Profeta. Trata-se de uma leitura literal do Alcorão, que envolve um discurso ultraconservador e rigoroso do ponto de vista da moral e do estilo de vida. Esse fundamentalismo, chamado no Islã de salafista ou neo-salafista em referência aos Salaf – os anciãos piedosos de uma comunidade idealizada dos primeiros dias do Islã -, existe também no cristianismo com certas correntes evangélicas, e no judaísmo, com os ultraortodoxos.

Além disso, existem também no Islã os movimentos jihadistas, que justificam o uso da violência em certos contextos para alcançar objetivos políticos. Os contextos de guerra ou de opressão favorecem nos países com maioria muçulmana a emergência de grupos que recorrem a essa retórica religiosa da jihad para legitimar a revolta armada.

O salafismo jihadista é aquele que usa a violência para impor sua leitura rigorosa, ultraconservadora e antiocidental sobre a sociedade. Grupos como o Estado Islâmico (ou Daesh) ou o Boko Haram proclamam essa ideologia.

Todas essas definições são importantes. Não são todos os salafistas que concordam com a violência: pelo contrário, os imans [autoridades religiosas do Islã] recusam completamente o terrorismo, e pregam uma forma de isolamento em relação ao resto do mundo moderno. Da mesma maneira, não são todos os grupos armados islâmicos que reivindicam a legitimidade da jihad em certos contextos que podem ser assemelhados ao Estado Islâmico. O Hamas, na Palestina, ou brigadas da rebelião contra o regime de Bashar al-Assad, na Síria, por exemplo, são totalmente contrários à ideologia totalitária do Estado Islâmico. Na Síria, existem até hoje combates muito duros entre a rebelião e o Estado Islâmico.

Para a esmagadora maioria dos muçulmanos, mesmo para os mais conservadores, a crueldade com que o salafismo jihadista tem operado  faz com que eles sejam considerados como se tivessem saído do próprio marco do Islã. O fato de ver jovens serem envolvidos nesses grupos, sem que eles tenham o mínimo conhecimento do Alcorão ou sem que sequer tenham praticado e refletido sobre o sentido do Islã, mostra uma forma de desprezo pela religião. A fascinação pela violência pura e o uso intensivo das novas tecnologias globais os aproxima mais de um neofascismo pós-moderno do que de uma corrente islâmica.

É possível falar numa guerra entre Ocidente e Oriente, entre cristianismo e islamismo, ou entre laicismo e islamismo? É disso que se trata?

CEILIA BAEZA Essa guerra existe apenas no imaginário dos racistas e dos fundamentalistas de ambos os lados. Tanto o ‘Oriente’ quanto o ‘Ocidente’, enquanto espaços civilizatórios homogêneos e excludentes, não existem; tratam-se de categorias culturais socialmente construídas. O que tem, na realidade, nesses espaços geográficos, são sociedades plurais e complexas, entre as quais conexões e intercâmbios culturais existem desde sempre.

A filosofia grega, que consideramos como um patrimônio constitutivo do Ocidente, foi redescoberta na Europa unicamente porque filósofos árabes haviam continuado estudando e traduzindo os gregos. Isso me parece ser uma boa ilustração dessa interconexão histórica entre essas regiões. Hoje, com as migrações, a internet, as redes sociais globais e a intensificação do transporte aéreo, falar de um Ocidente e de um Oriente como duas entidades separadas me parece um absurdo. Qualquer um que tem a chance de visitar hoje Paris e Beirute, Bagdá ou Ramallah percebe imediatamente as influências recíprocas.

O problema é que, desde os atentados de 11 de setembro de 2001, algumas pessoas insistem na ideia de ‘choque das civilizações’, introduzida pelo intelectual conservador americano Samuel Huntington em 1996. Essa narrativa serve de propaganda política, e encontra muita repercussão na mídia global. O risco é que termine sendo uma profecia autorrealizável. Grupos como o Estado Islâmico têm, como estratégia, usar da violência para provocar essa fratura entre Ocidente e Oriente, entre cristianismo e islamismo, ou entre laicismo e islamismo. O discurso da extrema direita na Europa e nos Estados Unidos tem um objetivo muito semelhante.

Por isso considero fundamental continuar desconstruindo e combatendo constantemente essas ideias, a partir de um ponto de vista tanto intelectual quanto político.

A imigração aumenta o risco de ataques terroristas na Europa e nos EUA?

CECILIA BAEZA A imigração, em si, não constitui uma ameaça! Muitas vezes os imigrantes e os refugiados fogem, eles mesmos, da violência exercida por grupos terroristas. Não podem ser ao mesmo tempo vítimas e carrascos.

O que aumenta o risco de ataques terroristas é, por um lado, a intolerância religiosa e a superposição das discriminações étnico-raciais e das desigualdades sociais nas sociedades ocidentais; e por outro, a violência política, as injustiças, e a violação da dignidade humana impostas por contextos autoritários e opressores – muitas vezes apoiados pela Europa e pelos EUA – no mundo árabe e muçulmano.

São problemas complexos que demorarão para serem resolvidos, mas, pelo menos, precisamos identificar essas verdadeiras causas, porque senão corremos o risco de cair nessa narrativa do ‘choque de civilizações’ que grupos como o Estado Islâmico ou a extrema direita querem provocar com sua propaganda.

Como combater o terrorismo?

CECILIA BAEZA Como eu disse, as causas da violência terrorista são estruturais, e não temos remédio milagroso para acabar com elas no curto prazo. Existem grupos que instrumentalizam essas razões para impor uma agenda política baseada na negação da dignidade do outro.

Essa ideologia não pode ser combatida militarmente. Claro, vencer uma organização terrorista por meios militares pode dar uma satisfação momentânea de ter acabado com o mal. Mas como a ‘Guerra ao Terror’ liderada pelos Estados Unidos nos tem demostrado ao longo da última década, a superioridade militar não basta para acabar com o terrorismo. Muito pelo contrário, o terrorismo prospera nas situações de caos e de violência, porque se beneficia do desespero das populações civis.

Combater o terrorismo implica deixar de lado os bodes expiatórios, e começar a lutar de verdade contra as injustiças que legitimam as ideologias da intolerância.

Crédito:  Nexo Jornal  – disponível na web 25/07/2016

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