Ditadura: um passado sombrio que bate à porta na esteira da crise

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2008
Historiadores destacam que anos de chumbo deixaram legado de corrupção, inflação e desigualdade.

O historiador Pedro Henrique Campos afirma que muitas das grandes empreiteiras – envolvidas em escândalos da Lava Jato hoje – se beneficiaram de relações especiais com o Estado desde seu surgimento entre as décadas de 30 e 50. O pagamento de propinas, entretanto, se consolidou durante a ditadura.

Ele pesquisou a fundo os laços dessas empresas com o regime militar em sua tese de doutorado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), que deu origem ao livro Estranhas Catedrais.

“Temos menos exposição pública da corrupção naquele período. Os mecanismos de fiscalização e controle sobre isso não funcionavam bem ou alguns nem existiam, como o próprio Ministério Público. Além disso, os movimentos sociais eram reprimidos e a mídia estava sob mordaça. O serviço de espionagem verificava e acompanhava casos de corrupção, mas não trazia à tona. Era um ambiente muito mais propício do que os dias atuais. As ilegalidades e irregularidades eram muito maiores naquele período”, disse Campos.

O historiador explica que os escândalos da época têm a ver, em grande parte, com a disputa empresarial, exatamente como acontece hoje.

“A ditadura foi um governo que alimentou muito alguns setores privados. Não foi conduzido apenas pelos militares, foi empresarial-militar. O empresário favorecido por ela cresceu muito ao longo daquele período no acesso ao Estado e poder econômico e político”, completou Campos, lembrando que logo após o golpe houve uma série de medidas impopulares que retiravam os direitos dos trabalhadores, a fim de favorecer empresários.

“Essa ordem defendida por uma parcela da população era, na verdade, mediante uma repressão muito violenta aos trabalhadores, em benefício desses autores que eram os principais articuladores da ditadura”, finalizou.

A polêmica do general Mourão

“Até chegar o momento em que ou as instituições solucionam o problema político, pela ação do Judiciário, retirando da vida pública esses elementos envolvidos em todos os ilícitos, ou então nós teremos que impor isso. E essa imposição ela não será fácil, ela trará problemas, podem ter certeza disso aí”, declarou o general da ativa no Exército Antonio Hamilton Mourão, secretário de economia e finanças das Forças Armadas.

A declaração polêmica do general ativou um alerta em diversos segmentos da sociedade e trouxe à tona o debate em torno da ditadura civil-militar deflagrada em 1964 no Brasil. Em entrevista ao jornalista Pedro Bial, entretanto, o Comandante do Exército, general Villas Boas, afirmou que não haveria punição e elogiou Mourão: “Um grande soldado. Uma pessoa fantástica”.

 

O comandante do Exército, general Eduardo Dias da Costa Villas Boas
O comandante do Exército, general Eduardo Dias da Costa Villas Boas
O comandante do Exército, general Eduardo Dias da Costa Villas Boas

Natural de Porto Alegre (RS) e no Exército desde 1972, o general é o mesmo que, em outubro de 2015, foi exonerado do Comando Militar do Sul por Villas Bôas, e transferido para Brasília para um cargo burocrático sem comando sobre tropas armadas, após fazer críticas ao governo de Dilma Rousseff (PT).

“É sintomático que não tenha havido nenhuma sanção do Exército ou de superiores como o ministro da Defesa e o Presidente da República. O Mourão está vocalizando algo que é uma cultura compartilhada. E o comandante do Exército não só não o repreende como o elogia”, criticou Lucas Pedretti, ex-pesquisador da Comissão Estadual do Rio.

Criada em 2012, pela Lei 12528/2011, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) tinha por finalidade apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988 no Brasil. Em dezembro de 2013, o mandato da CNV foi prorrogado até dezembro de 2014 pela medida provisória nº 632, mas após a data, nada se fez com relação as medidas recomendadas pelo grupo.

Sob o comando de Mourão no Sul, uma homenagem póstuma prestada pelo Exército ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, em Santa Maria, gerou indignação e diversas manifestações de repúdio. Ustra, que também já foi homenageado pelo deputado federal e pré-candidato à Presidência em 2018, Jair Bolsonaro (PSC), foi chefe do Destacamento de Operações Internas (DOI-Codi) de São Paulo no período de 1970 a 1974. Em 2008, tornou-se o primeiro militar a ser reconhecido, pela Justiça, como torturador durante a ditadura, por envolvimento em crimes como o assassinato do militante Carlos Nicolau Danielli, sequestrado e torturado nas dependências do órgão.

Em seu discurso de quase uma hora na palestra promovida pela maçonaria em Brasília na última sexta-feira (15), o general Mourão também criticou a Constituição de 1988, que segundo ele garante muitos direitos para os cidadãos e poucos deveres, e atacou a classe política. “Sociedade carente de coesão cívica. A sociedade brasileira está anêmica. Ela mal e porcamente se robustece para torcer pela Seleção brasileira ou então sai brigando entre si em qualquer jogo de time de futebol. Crescimento insuficiente e o Estado é partidarizado.”

“O discurso dele é a expressão de um sentimento muito grave na sociedade, ou de parcelas cada vez mais significativas da sociedade: que de fato um golpe poderia ser a solução. As pessoas que legitimam essa fala têm duas razões: a primeira é o desconhecimento, não saber o que de fato aconteceu naquele período. E aí tem a ver com a falta de discussão a respeito disso nas escolas e na sociedade como todo. Por outro lado, existem pessoas que conhecem os fatos e legitimam mesmo assim. Isso é ainda mais grave. E aí tem a ver com uma ausência de políticas que revelem a verdade e de justiça, que pudessem ajudar a criar uma memória em torno do passado e colocá-lo como algo negativo”, completou Lucas Pedretti.

Punição

Michel Temer em Cerimônia de Imposição da Medalha Militar de Platina

O historiador explica que o presidente da Argentina Maurício Macri evita um desgaste com representantes dos Direitos Humanos no país, pois sofre forte retaliação por parte da sociedade em toda tentativa de retrocesso em direitos conquistados pós-ditadura, “a mais sanguinária da América Latina”.

“Ele não ataca as políticas de direitos humanos, porque a sociedade Argentina conseguiu consolidar essa memória em torno do passado deles, de que aquilo não deveria acontecer novamente. Nós não temos isso aqui”, lamentou Pedretti, acrescentando: “E tem a ver também com a qualidade da nossa democracia. Nós não conseguimos construir uma democracia que garantisse direitos humanos e justiça social, e isso faz com que as pessoas questionem: se a democracia é isso, então por que defendê-la?”

Dentre os países latino-americanos que passaram por períodos de ditadura militar, a Argentina foi o que respondeu mais energicamente aos crimes cometidos. O país condenou mais de 200 militares e civis por envolvimento em prisões, torturas, desaparecimentos e mortes.

Findo o regime, a tortura foi justificada pelos ex-presidentes ditadores como um mal necessário. Entretanto, no Brasil, nenhum torturador foi preso ou punido por seus atos, todos foram beneficiados pela lei da Anistia, que em 1979 perdoou os presos políticos, os exilados e os torturadores.

“Não podemos deixar de considerar que as Forças Armadas, e todas as Forças de Segurança Pública do Brasil não passaram por reformas institucionais depois desse período. Não passaram por um processo de reflexão interna daquele momento. Jamais houve um reconhecimento aberto das forças, ou sequer um pedido de desculpa oficial. O Mourão coloca às claras uma situação que a gente deixou de enfrentar nas últimas três décadas”, comentou Pedretti.

Capa do Jornal do Brasil de 17 de janeiro de 1969
Capa do Jornal do Brasil de 17 de janeiro de 1969

Durante aquele período, o povo brasileiro foi excluído do direito de participar da vida nacional. Através da tortura, criou-se o medo na população, instrumento fundamental para assegurar o controle e o domínio das Forças Armadas, justificados como necessários numa época de “perigo à segurança nacional” e “em nome da democracia”. Mas a ditadura não matou somente os opositores engajados, os chamados comunistas, guerrilheiros e revolucionários, vários cidadãos comuns foram os que enfrentaram os anos de chumbo.

“Avançamos o suficiente para dizer que a ditadura queria implantar um projeto político e econômico. E esse projeto gera um número gigantesco de pessoas atingidas por ele, para além dos opositores políticos na luta organizada. Estamos falando de mais de 8 mil indígenas que foram assassinados por causa da Transamazônica. Estamos falando de dezenas de milhares de moradores de favela do Rio que foram removidos de suas casas em detrimento do mercado imobiliário. A visão de que a ditadura brasileira não foi dura e sim branda é mais do que equivocada”, explicou Pedretti.

General Mourão volta a cena e fala em intervenção militar

Memória e ditadura: lei que reduz pena de repressores na Argentina causa alerta na América Latina

Crédito: Rebeca Letieri/Jornal do Brasil – disponível na internet 09/10/2017

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