De Bem com a Vida: Os jovens que encontram nas redes sociais ‘válvula de escape’ para luta contra o câncer

0
543

Em agosto passado, Guilherme Pagnoncelli, de 28 anos, descobriu que o câncer, iniciado no estômago, havia avançado e atingido outros órgãos. O jovem foi informado de que teria pouco tempo de vida. Logo que deixou o hospital, publicou, em seu Instagram, vídeos desabafando a respeito do diagnóstico. Pouco mais de 4 mil pessoas o acompanhavam na rede social. Em menos de 24 horas após o relato, seu perfil ultrapassou a marca de 260 mil seguidores.

Gui, como é conhecido nas redes sociais, descobriu a doença em julho de 2012, aos 22 anos. Ele foi diagnosticado com câncer no estômago, do tipo adenocarcinoma, uma das formas mais raras e agressivas. O jovem passou por cirurgias e sessões de quimioterapia. Meses após encerrar os procedimentos, descobriu que o câncer havia atingido também o pulmão.

Em 2016, ainda em tratamento, os médicos informaram que o esôfago do jovem também havia sido atacado pela doença. Em agosto de 2017, Gui recebeu a notícia de que os tratamentos não davam mais os resultados esperados. “Disseram que eu teria apenas mais alguns meses de vida”, diz.

O rapaz, que até então costumava ser discreto em relação à doença, falou abertamente sobre o tema. “Quando saí da consulta médica, no calor do momento, gravei alguns Stories (ferramenta de vídeos curtos e fotos do Instagram) contando o que havia acabado de saber.”

A repercussão do relato fez com que o rapaz passasse a fazer diversas postagens sobre a doença, seu tratamento e o seu cotidiano. “Eu acredito que seja preciso divulgar a doença para que as pessoas se cuidem. O câncer é silencioso e é necessário falar mais a respeito. Imagino que mostrando o meu tratamento, a pessoa vai se interessar em saber como anda a própria saúde. A minha maior intenção é alertar”, conta à BBC News Brasil.

O rapaz é um dos diversos jovens que enfrentam o câncer e compartilham a luta contra a doença nas redes sociais. Os relatos sobre os diagnósticos e tratamentos têm se tornado comum na internet.

Para a chefe da seção de psicologia do Instituto Nacional de Câncer (Inca), Monica Marchese, a interação nas redes sociais faz com que os jovens que enfrentam a doença se sintam menos solitários.

“Eles sentem que estão fazendo alguma coisa com esse momento da vida. Saem de uma posição passiva diante da doença e das perdas que ela traz. Por isso, tornou-se comum os jovens criarem redes, blogs, publicarem vídeos etc. Assim, não ficam simplesmente reféns da doença e do tratamento.”

Segundo o Inca, não há dados sobre jovens que enfrentam o câncer no Brasil, apenas uma expectativa de quantos brasileiros em geral devem ser diagnosticados com a doença neste ano: 600 mil, sendo cerca de 170 mil casos relacionados ao câncer de pele. A análise não especifica as idades dos pacientes.

Redes sociais como ‘válvula de escape’

O caso mais famoso entre os jovens que compartilharam a luta contra o câncer nas redes é o da modelo Nara Almeida, de 24 anos.

Durante nove meses, ela travou uma dura batalha contra um câncer no estômago. Antes, publicava dicas de beleza, registrava treinos na academia e falava sobre dietas. A jovem tinha cerca de 400 mil seguidores no Instagram. Após o diagnóstico e os relatos sobre a luta contra a doença, o número de pessoas que a acompanhavam cresceu para 4,4 milhões, registrados em maio.

Para a jovem, as redes sociais eram a forma que havia encontrado para lidar melhor com a doença e os tratamentos. Em seu perfil, ela comemorava cada melhora em seu quadro clínico e lamentava quando seu estado de saúde piorava. “Deus, mais uma vez segura em minha mão, minha alma aflita pede tua atenção. Cheguei ao nível mais difícil até aqui. Me ajude a concluir”, escreveu Nara, em uma de suas últimas publicações, feita pouco antes de iniciar tratamento com imunoterapia.

Nara Almeida em fotos ao longo do tratamento contra o câncer
O caso mais famoso entre os jovens que compartilharam a luta contra o câncer nas redes é o da modelo Nara Almeida, de 24 anos. Direito de imagem REPRODUÇÃO INSTAGRAM

Nara morreu em 21 de maio. Ela não resistiu às complicações da doença e os tratamentos disponíveis não surtiam mais efeitos.

O engenheiro Pedro Rocha, seu marido, diz que as redes sociais foram fundamentais durante a luta dela contra o câncer. “A Nara usava as redes como válvula de escape. Ela podia desabafar, conhecer gente que passava pelo mesmo problema, pedir ajuda e auxiliar outras pessoas. Ela também usava esse meio de comunicação para não se sentir sozinha, quando não podia sair nem receber visitas”, conta.

Por meio das redes sociais, o jogador de futebol Alexandre Pato, atualmente no Tianjin Quanjian, conheceu o caso de Nara. No fim de abril, ele se ofereceu para pagar seis meses de tratamento de imunoterapia para a jovem. Antes da ajuda do jogador, a modelo chegou a gravar um vídeo pedindo que fosse contratada para trabalhos como influenciadora digital, para que pudesse arcar com os remédios – que custam R$ 18 mil a dose, a ser tomada a cada 21 dias. “Ela teve tempo de tomar somente duas doses (pagas por Pato)”, comenta Rocha.

Além das mensagens de apoio, Nara também recebia críticas por expor a doença. “Todos que optam por abrir suas vidas em uma rede social precisam saber lidar com a rejeição e com as opiniões diferentes. Mas é importante saber a hora de se reservar um pouco”, diz o marido de Nara.

O engenheiro acredita que a modelo conseguiu ajudar outras pessoas. “A Nara mostrou que não é preciso ter vergonha de passar por uma situação assim, porque essa doença é mais comum do que gostaríamos. Conheci muita gente que foi procurar saber mais sobre a própria saúde depois de conhecer a história dela.”

Invasão de privacidade

As redes sociais são consideradas ferramentas importantes para Gui Pagnoncelli. Por meio de uma “vaquinha virtual”, ele arrecadou R$ 350 mil para realizar futuramente, nos Estados Unidos, um transplante múltiplo de órgãos – estômago, intestino, pâncreas e fígado.

Enquanto lidava com a doença e compartilhava o cotidiano nas redes, ele batalhava para manter os planos que tinha para si. Um dos sonhos foi realizado no fim do ano passado: a conclusão da faculdade de Fisioterapia. Gui iniciou o curso pouco após terminar a primeira fase do tratamento contra o câncer. “Em certos momentos, não me imaginava concluindo minha graduação. Meu TCC foi preparado entre uma quimioterapia e outra.”

Nara fazendo registros no hospital
Nara recebeu críticas de quem considerou que ela fazia exposição excessiva de sua rotina hospitalar. Direito de imagem REPRODUÇÃO INSTAGRAM

O jovem mostra-se grato com o apoio que recebe nas redes. Porém, afirma que a exposição tem deixado de ser tão positiva como no início. “Hoje, as pessoas pensam que a minha vida é uma novela, em que eu preciso colocar mais um capítulo todos os dias. Se eu resolvo me desligar e ficar um pouco sozinho, logo recebo inúmeras mensagens questionando onde estou e até ofensas de amigos e familiares por não ter dado notícias. Me sinto um pouco invadido.”

Ele, que atualmente tem mais de 245 mil seguidores no Instagram, relata que uma das situações que mais o incomodaram aconteceu quando estava internado em razão da quimioterapia. “Duas pessoas entraram no leito em que eu estava e pediram para tirar uma selfie comigo. Aquilo foi muito estranho e novo para mim. Começaram a me tratar como se eu fosse famoso. Isso me assustou”, conta.

Apesar de lamentar a falta de privacidade, Gui mantém as publicações diárias nas redes sociais. Compartilha o tratamento e detalha cada dificuldade. O jovem comenta com frequência sobre as constantes dores, em razão de os remédios não surtirem mais efeitos como antes. Em muitos momentos, Gui precisa ser sedado com anestésicos.

Recentemente, o rapaz iniciou novo tratamento com quimioterapia por tempo indeterminado, em razão do estágio avançado da doença. “Mesmo com tudo o tenho passado, sempre tive o emocional bastante centrado. Dificilmente choro ou passo o dia triste, busco sempre sorrir e levar a vida como posso, dentro de minhas limitações”, diz.

Câncer de mama aos 20

A vontade de levar a vida da melhor maneira possível em meio ao tratamento contra o câncer também é um dos objetivos da universitária Isabel Costa, 21. Em julho do ano passado, ela descobriu um nódulo no seio esquerdo, que viria a ser um câncer de mama em estágio intermediário. “Ninguém espera ouvir uma notícia dessas aos 20 anos. Não foi nada fácil.”

Ela demorou a aceitar o diagnóstico: “Todos os dias acordava e pensava que tinha sido um pesadelo”.

Só depois de iniciar o tratamento com quimioterapia, duas semanas depois, Isabel entendeu que sua vida estava passando por mudanças. “Foi um susto muito grande.”

Uma das postagens de Isabel Costa sobre a batalha contra o câncer de mama

Ao todo, foram 16 sessões de quimioterapia. Ela estava no quinto semestre de Direito, mas trancou a faculdade temporariamente e retomou os estudos no início deste ano. A jovem planejava um intercâmbio para Portugal, em janeiro, porém teve de desistir. “A minha vida mudou completamente. Tive que parar com todas as atividades que fazia.”

Um mês após iniciar a luta contra o câncer, Isabel decidiu falar sobre o assunto em suas redes sociais e criou um blog sobre o tema. “Os meus amigos já sabiam, porque eu tinha avisado para eles pouco depois de descobrir. Mas decidi criar o blog porque queria que todos soubessem da minha história por mim, não por boatos. Não queria que ficassem pensando que eu estava morrendo ou coisa assim”, explica.

Sua primeira publicação repercutiu entre amigos e desconhecidos. Ela, que atualmente possui pouco mais de 6 mil seguidores no Instagram, passou a receber diversas mensagens. “Nunca recebi nenhum tipo de crítica, apenas mensagens de pessoas, conhecidas ou desconhecidas, que queriam demonstrar apoio ou dizer que minhas publicações as inspiravam”, comenta.

Nas redes, ela compartilhou publicações motivacionais e também os momentos mais complicados do tratamento. Para a jovem, as partes mais difíceis foram o inchaço causado pelos medicamentos – ela chegou a engordar 18 quilos -, a queda do cabelo e a cirurgia de retirada das mamas. “A mastectomia foi o que mais me afetou, porque meus seios foram retirados totalmente. Ficou um esvaziamento. Fiz reconstrução imediata, mas ficaram cicatrizes, mesmo com as próteses. Isso foi muito duro”, lamenta.

Atualmente, Isabel faz quimioterapia oral, na qual toma seis comprimidos diariamente durante 14 dias. Posteriormente, por sete dias, pausa os remédios e depois volta. A parte inicial do tratamento da universitária deve ser finalizada em agosto. Depois, por cinco anos, ela estará em fase de remissão – período em que não há sinais do câncer, mas ainda não se pode dizer que ele não regressará. Por meio de consultas mensais, o médico avaliará a saúde da jovem.

Para Isabel, apesar das dificuldades, a luta contra o câncer teve um lado positivo. “Conheci muita gente bacana e aprendi muito, principalmente por meio das redes sociais. Tenho participado de vários eventos, para conhecer mais sobre o tema. Além disso, eu criei, junto com uma amiga que também teve a doença, um grupo de apoio a pacientes com câncer.”

Período de remissão

Nas redes sociais, há também histórias de jovens que lutaram contra o câncer, finalizaram o tratamento e agora estão em fase de remissão. É o caso da analista de comunicação Anna Narita, de 25 anos. Em dezembro de 2011, descobriu um câncer no timo, glândula localizada entre os pulmões. Na época, ela fez tratamento com quimioterapia, passou por cirurgias, ficou careca e teve depressão. “A minha maior batalha foi a aceitação da doença.”

Na primeira vez em que teve o câncer, ela chegou a fazer publicações sobre o assunto nas redes sociais, porém não deu continuidade aos relatos. “Eu não estava psicologicamente bem. Foi muito complicado. Eu publiquei e me senti mais exposta do que aliviada e acabei desistindo”, revela.

Anna Narita em fase de remissão do câncer
Anna Narita concluiu o tratamento e está em fase de remissão da doença. Direito de imagem VITOR MANON/ ARQUIVO PESSOAL

Anna terminou a primeira fase do tratamento e passou a fazer acompanhamentos mensais. No ano passado, quatro anos depois de finalizar as sessões de quimioterapia, a doença retornou, agora na cavidade abdominal. “Foi um susto, porque eu não tinha mais nenhum sinal do câncer e ele se refez, ainda mais agressivo. Desta vez, eu estava mais forte, apesar do medo ainda existir.”

A jovem retomou o tratamento em julho de 2017. Ela conta que o amadurecimento fez com que conseguisse comentar sobre a doença nas redes sociais. “Comecei a fazer anotações nos momentos em que estava mais introspectiva. Essas notas viraram texto e alguns deles, como alternativa de alívio, foram postados nas minhas redes sociais. Neles, eu falava sobre os sentimentos que me agoniavam”, diz Anna, que possui pouco mais de 1,7 mil seguidores no Instagram.

Ela preferiu não retratar o cotidiano do tratamento e só fazer publicações sobre as crises que tinha após superá-las. “Isso ajudou a diminuir a minha própria cobrança em estar bem o tempo todo. Isso também reduziu a cobrança das pessoas que estavam de fora, que passaram a lidar melhor comigo e com a minha doença.”

Em dezembro passado, Anna encerrou o segundo tratamento. Ela está, novamente, em período de remissão e faz exames para assegurar que o câncer não retornou. “Não gosto de romantizar a minha doença dizendo que tudo deu certo no final. Eu me lembro de todos os meus sofrimentos e não seria justo comigo esquecê-los, mas saio dessas experiências sendo a melhor versão de mim mesma. Creio que tudo isso foi necessário”, afirma.

Registro de Anna Narita no último dia no hospital
Anna Narita comemorando o fim do tratamento contra o câncer. Direito de imagem REPRODUÇÃO INSTAGRAM

A universitária Lívia Oliveira, de 19 anos, também superou o câncer. Durante o tratamento, ela detalhou, nas redes sociais, a luta contra a doença. A jovem teve um linfoma não-Hodgkin, que surge no sistema linfático e atinge as células de defesa do corpo. Recebeu o diagnóstico aos 18 anos, em novembro passado. “Foi chocante, porque eu estava iniciando a vida, tinha acabado de começar a cursar Direito e não esperava uma notícia dessas.”

No dia seguinte à descoberta da doença, ela iniciou o tratamento, pois o câncer foi considerado em estágio avançado. “Foi tudo muito pesado. Eu fazia 100 horas de quimioterapia sem parar, a cada 21 dias”, detalha. Ela passou por quatro cirurgias, ficou internada na UTI, teve uma parada cardiorrespiratória de 12 minutos e chegou a ficar três dias em coma induzido.

Lívia se recuperou e em dezembro teve a primeira alta hospitalar. Ela raspou o pouco cabelo que lhe restava, após grande parte ter caído durante o tratamento. Em seguida, fez uma publicação no Instagram. “Eu senti que precisava compartilhar com todo mundo sobre o milagre que Deus faria em minha vida”, afirma. Lívia possui, atualmente, 10,4 mil seguidores no Instagram, sendo que grande parte deles veio após ela começar a falar sobre a doença.

Um dos momentos mais especiais para ela foi uma publicação feita em 13 de abril, quando anunciou o fim do tratamento. “Hoje eu só sinto vontade de gritar para todo mundo que Deus é maravilhoso e me curou”, escreveu na postagem. Nos comentários, diversos seguidores comemoraram junto com a jovem.

Atualmente, Lívia está em remissão e faz acompanhamento mensal para garantir que não há mais sinais da doença em seu organismo. “Eu não deixo que o medo do câncer voltar me impeça de viver.”

O apoio durante a luta contra a doença

Para a psicóloga Monica Marchese, ainda há bastante desinformação sobre como lidar com pessoas com câncer, o que leva muita gente a ter pena daqueles que enfrentam a doença. “As informações pelas redes devem contribuir para minimizar o estigma em torno disso”, opina.

De acordo com Marchese, um dos motivos para que os relatos dos jovens atraiam as pessoas é o fato de a situação fazer com que muitos reflitam sobre o tema. “Esse interesse acontece pela história de vida do paciente. Pode ter um efeito do tipo ‘poderia ser comigo ou com meu filho'”, diz.

Por meio da experiência adquirida nas duas vezes em que enfrentou a doença, Anna Narita orienta que parentes, amigos e pessoas que acompanham pacientes nas redes exerçam a empatia.

“Não existe dor maior ou menor que a de ninguém nessa luta. Cada paciente sabe o que vem passando. Respeitar isso é legitimar a luta do outro. É importante oferecer um abraço, companhia no tratamento ou, até mesmo, enviar uma música. A parte principal é não cobrar nada daquela pessoa.”

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui