“Adriana, tu sabes o que está acontecendo?” Ao ouvir essas palavras, ditas por uma vizinha, na tarde de 23 de outubro, Adriana Machado Klein, 44 anos, não poderia antever o turbilhão que varreria sua vida.
Moradora do bairro Granja Esperança, no município gaúcho de Cachoeirinha, a técnica em enfermagem tinha acabado de estacionar na garagem de casa o Chevrolet Meriva branco que utilizara para levar a filha caçula, de 13 anos, a uma consulta médica.
Adriana mal pôde compreender quando ouviu que estava sendo alvo de uma suspeita macabra disseminada pelas redes sociais na cidade-dormitório de cerca de 120 mil habitantes da Região Metropolitana de Porto Alegre.
“Esse é o Casal da Meriva e não tem nada a Ver Com Religião como Disseram Ontem e Sim Tráfico d Órgãos já Foi Encontrado uma Criança Morta e Vazia Sem Nada Dentro”, dizia um texto distribuído pelo WhatsApp, abaixo de uma foto de Adriana e do namorado, Robson Martins, de 41 anos.
A mensagem fazia referência à morte de Eduarda Herrera de Melo, de 9 anos, que havia desaparecido na noite do dia 21, enquanto brincava diante da residência da família, no bairro Rubem Berta, na capital. O corpo de Eduarda tinha sido encontrado na segunda-feira no Rio Gravataí, junto à RS-118, no município de Alvorada, também na Região Metropolitana. A polícia informou que a causa da morte havia sido afogamento.
Radicada há cerca de 20 anos no bairro, Adriana é conhecida pela dedicação aos necessitados. Foi catequista e fez parte do conselho econômico da Paróquia Divino Espírito Santo. Em 2016, sua existência havia sofrido um baque com a morte, por infarto, do marido, Paulo Klein, representante comercial, então com 47 anos. Dona de casa e viúva, subitamente encarregada de sustentar sozinha as duas filhas (a mais velha tem hoje 19 anos), Adriana teve de procurar trabalho.
Em dezembro daquele ano, concluiu o curso de Técnica em Enfermagem na Escola Técnica Universitária, em Cachoeirinha. Passou a trabalhar como cuidadora de idosos e portadores de necessidades especiais, ao mesmo tempo em que se somou, como voluntária, ao grupo de resgate Grave, que presta assistência a vítimas de acidentes e violência na região, em parceria com as polícias, o Corpo de Bombeiros e a Defesa Civil.
Acusações falsas
A postagem que não se limitava a acusá-la, juntamente com o namorado, de um crime sórdido. Fornecia os nomes, as placas do carro e o endereço do casal. Em poucas horas, a mensagem já havia circulado em grupos de pais de alunos de escolinha de futebol e de condomínios fechados, entre outros.
“Entrei em choque. Quando perdi o marido, tive apoio da família e dos amigos. Desta vez, ao mesmo tempo que as pessoas recebiam a mensagem nos grupos, já tomavam a iniciativa de desmenti-la. O que machuca é que a gente sempre tenta fazer o bem e não entende o que leva alguém a fazer isso”, afirma Adriana, por telefone, à BBC News Brasil.
A conselho de um amigo que trabalha na Defesa Civil, Adriana buscou refúgio na casa de familiares em um município vizinho. Na delegacia de polícia local, registrou um boletim de ocorrência por calúnia e difamação contra os responsáveis pela disseminação da mentira.
Durante duas semanas, permaneceu longe de casa. Um dia depois de viajar, pediu a um parente que a acompanhasse de carro até a residência para buscar roupas. Ao desembarcar do carro, percebeu que pedras haviam sido arremessadas na varanda e no pátio. “Nem entrei na casa, pedi para ele voltar”, relembra.
Adriana diz que as acusações não têm fundamento. Revela que, em uma parte das mensagens, foi acusada de ter matado o marido para ficar com os bens. “A família dele me ligou para prestar solidariedade”, afirma.
Dois dias depois do incidente, o grupo Grave postou em sua página no Facebook uma mensagem de solidariedade a Adriana. “No Grave não existem pessoas de má índole. Todos os nossos voluntários apresentam uma série de documentos e todos têm os antecedentes pesquisados”, diz o texto.
O vice-presidente e coordenador operacional do grupo, Maikel Douglas Vasconcellos, informa que Adriana atua como voluntária há cerca de um ano e que o namorado, Robson, fez curso de atendimento pré-hospitalar (APH) a fim de apoiar sua atuação. “Adriana e Robson são inocentes. Queremos conscientizar as pessoas para que não distribuam informações falsas nas redes”, diz o coordenador à BBC News Brasil.
O retorno para casa ocorreu somente no dia 4 de novembro. O choque, porém, ainda produz efeitos. O namorado teve de se ausentar do trabalho por dois dias em razão do episódio. A família foi privada do uso do automóvel, que tivera a identificação exposta.
A filha caçula fica nervosa quando a mãe precisa sair de casa. “Não consegui voltar para minha vida normal. Acima de tudo, estou muito magoada. As pessoas que me conhecem sabem o que eu sou. Nunca fiz mal a ninguém. Nunca tive inimizade com ninguém, nem briga de escola”, desabafa, com a voz embargada.
A técnica em enfermagem diz que os usuários de redes sociais deveriam ter mais cuidado com os conteúdos que compartilham. “Sempre tive cuidado de não repassar nada. Recebo várias mensagens durante o dia, mas não sei se são verdadeiras. Hoje, é muito fácil a pessoa se esconder atrás das redes sociais. Muitas vezes, um inocente paga por isso”, afirma.
A polícia investiga pelo menos dois suspeitos, um deles próximo de Adriana, pela disseminação das mensagens. A motivação, segundo Eduardo da Cunha Corrêa, advogado da técnica em enfermagem, seria vingança. Além de calúnia e difamação, afirma Corrêa, os suspeitos podem vir a responder por crimes virtuais e de ameaça em inquérito já instaurado pela Polícia Civil.