Carlota Queiroz a primeira deputada federal do Brasil. Antonieta de Barros a primeira deputada negra do Brasil é reconhecida como doutora

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Há 130 anos nascia Carlota Pereira de Queiroz, que assumiu uma cadeira no parlamento em 1934. Apesar de seu perfil conservador, tendo mais tarde apoiado o golpe de 1964, sua eleição foi simbólica para as mulheres.

Que ela desbravou um espaço antes reservado apenas aos homens, ninguém pode contestar. Há 130 anos, nascia a paulistana Carlota Pereira de Queiroz (1892-1982), aquela que garantiu seu lugar na história brasileira ao se tornar a primeira mulher eleita deputada federal — escolhida na eleição de 1933, ela assumiu o cargo em 1934.

“Ela foi a primeira mulher eleita deputada federal, não apenas no Brasil, mas na América Latina. Isso é muita coisa e deu visibilidade às mulheres dentro da política nacional”, afirma o pesquisador Paulo Rezzutti, que a biografou em seu livro Mulheres do Brasil: A História Não Contada.

Carlota era de uma família tradicional de São Paulo. Seu avô, Manuel Elpídio Pereira de Queiroz (1826-1915), foi um rico latifundiário, membro do Partido Republicano Paulista e um dos fundadores do jornal A Província de São Paulo — atual O Estado de S. Paulo.

“Ela teve uma vida extremamente vasta em termos de prestígio político e profissional”, comenta o historiador Victor Missiato, pesquisador do Grupo Intelectuais e Política nas Américas, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré.

Magistério, medicina e política

Carlota teve acesso aos estudos e, em 1909, tornou-se professora, formada pela então Escola Normal da Praça da República. Começou a trabalhar como inspetora primária e, a partir de 1912, tornou-se professora.

Segundo informações biográficas do próprio arquivo da Câmara dos Deputados, a “guinada em sua vida pessoal e profissional” ocorreu, em 1920, porque Carlota estava “desiludida com o magistério”. Então, decidiu estudar medicina. Primeiro na Faculdade de Medicina de São Paulo e depois, mediante transferência, no Rio de Janeiro.

Formou-se em 1926. Sua tese de conclusão de curso, Estudos Sobre o Câncer, foi bastante elogiada e acabou rendendo a ela um prêmio acadêmico. “Nesse mesmo ano, assumiu a direção do laboratório da clínica pediátrica da Faculdade de Medicina de São Paulo”, afirma o texto da Câmara. “Em 1928, comissionada pelo governo paulista, viajou à Suíça, onde estudou sobre dietética infantil.”

A deputada Carlota Pereira de Queiroz (1892-1982) em meio a apenas deputados homens na Câmara
Carlota experimentou tratamento pouco respeitoso por parte de colegas na Câmara, aponta historiadoraFoto: Câmara dos Deputados

O engajamento político de Carlota começou há 90 anos, quando o estado de São Paulo se ergueu contra o governo federal, no episódio que acabaria conhecido como Revolução Constitucionalista de 1932. Carlota se destacou não apenas como médica na linha de frente, mas principalmente por seu papel na organização de um departamento de assistência aos feridos, mobilizando cerca de 700 outras mulheres voluntárias.

Tal trabalhou despertou atenção da sociedade. Quando houve a convocação de eleições para a elaboração de uma nova Constituinte, na esteira do reconhecimento do direito eleitoral feminino, seu nome surgiu com força, apoiado pela Associação Comercial de São Paulo, pela Associação Cívica Feminina e pela Federação dos Voluntários — grupo de participantes do movimento revolucionário paulista.

“Com o apoio da elite a que pertencia, e de nomes de vulto, como [a quatrocentona e ativista pelo voto feminino] Olívia Guedes Penteado e [a filantropa e ativista social] Pérola Byington, ela lançou a Mensagem da Mulher Paulista na imprensa, pedindo apoio das mulheres de São Paulo”, conta Rezzutti.

Uma mulher deputada

“Contando com o apoio da elite local e do segmento feminino, Carlota Pereira de Queiroz foi eleita com 5.311 votos no primeiro turno e 176.916 no segundo, tornando-se a primeira deputada federal da história nacional”, registra a Câmara dos Deputados.

Terminada a Constituinte, Carlota foi reeleita em 1934 para um mandato pelo Partido Constitucionalista de São Paulo. Recebeu 1.899 votos no primeiro turno e 228.190 no segundo — o que fez dela a segunda mais votada dentre todos. Ocupou uma das 34 cadeiras da bancada paulista.

“Em termos simbólicos, a presença de Carlota no Parlamento, em duas votações expressivas, recompensou seus esforços em favor da mobilização militar de São Paulo em julho de 1932”, analisa a historiadora Teresa Cristina de Novaes Marques, professora na Universidade de Brasília e autora do livro O Voto Feminino no Brasil. “Sim, uma mulher havia sido eleita deputada.”

Por outro lado, ela ressalta que a integração das mulheres na política institucional não ocorreu sem atritos e de forma tranquila.

“A própria Carlota experimentou o tratamento pouco respeitoso por parte dos colegas quando integrou a Comissão de Saúde da Câmara, a partir de 1936. A certa altura das atas da comissão, registra-se o protesto solitário de Carlota, porque, alegava, não tinha tempo para examinar o processo com o cuidado necessário e suas opiniões não estavam sendo consideradas”, aponta a historiadora.

Pioneira, mas não feminista

Mas se teve Carlota o mérito de ter sido a primeira mulher a ocupar uma cadeira no Parlamento federal, a pauta feminista não era algo que a preocupava. “Carlota tornou-se deputada muito mais para defender os interesses do seu estado, São Paulo, do que os interesses das mulheres”, ressalta Marques.

“Sua visão sobre os papéis sociais das mulheres era ainda bastante conservadora, o que se refletiu no seu mandato. Pensava que cabia às mulheres de classe média a liderança no assistencialismo aos pobres”, comenta ela. “Também propôs que as mulheres prestassem juramento à bandeira nacional, uma forma de compromisso com a pátria equivalente ao serviço militar destinado aos homens.”

Conforme contextualiza a historiadora, tal proposta sofreu “forte reação”, uma vez que foi entendida como “uma militarização da cidadania e uma restrição ao seu exercício”.

Seu mandato foi interrompido em 1937, com o golpe do Estado Novo. Carlota tentaria voltar a ocupar um dos assentos da casa. “Mesmo experimentando atritos com colegas parlamentares, fosse porque era novata no exercício de mandato eletivo, fosse por ser mulher, Carlota tentou voltar à política em 1945, apresentando-se candidata à Câmara dos Deputado”, relata a historiadora Marques. “Não logrou êxito no projeto.”

Seguiu exercendo a medicina. Mas sua vida ainda teria um posicionamento político — carregado de polêmica. “Ela teve um papel de apoio, participou do golpe de 64 [que instaurou a ditadura militar no Brasil entre 1964 e 1985], assim como muitas forças políticas que apoiaram o golpe naquela época. Essa foi uma das últimas participações políticas representativas dela”, afirma o historiador Missiato.

O historiador acredita que esse posicionamento conservador de Carlota seja o responsável por ela ser muitas vezes esquecida na historiografia.

“Durante muito tempo, seu nome ficou escanteado, até mesmo de livros didáticos e de debates sobre a participação da mulher na sociedade brasileira. O que é lamentável”, avalia ele. “Ela teve uma atuação simbólica nas conquistas femininas no Brasil pelo simples fato de ter sido a primeira mulher a ingressar na Câmara dos Deputados, a primeira mulher a se colocar como representante do povo nessa instância.”

Prêmio em sua homenagem

“É fundamental resgatar essa personagem histórica, até mesmo para mostrar o multifacetado da mulher, em um momento em que muitas histórias de mulheres são trazidas à tona. Para não parecer que a figura da mulher protagonista é sempre pensada e projetada a partir de um pensamento considerado progressista”, atenta Missiato. “Mulheres ligadas ao pensamento conservador também tiveram destaque.”

A Câmara dos Deputados busca eternizar sua memória com um prêmio. Instituído em 2003, o diploma Mulher-Cidadã Carlota Pereira de Queiroz é conferido, anualmente, a cinco mulheres que tenham se destacado em contribuições para a defesa dos direitos da mulher e para a luta pela igualdade de gênero.

No ano passado, foram condecoradas a secretária nacional de Políticas para as Mulheres, Cristiane Britto; a desembargadora Salete Sommariva, coordenadora Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar de Santa Catarina; a fundadora do projeto Costurando Sonhos, Suéli do Socorro Feio; a ativista pelos direitos das empregadas domésticas Lenira Maria de Carvalho (1932-2021), postumamente; e, também in memoriam, a médica Terezinha Ramires (1931-2021), fundadora da Associação Alagoana Pró-Mulher.

Como memorialista e escritora, Carlota deixou dois livros. Um Fazendeiro Paulista no Século XIX conta a saga de seu avô paterno. Já Vida e Morte de Um Capitão-Mor é um mergulho nos arquivos de sua família materna.


Primeira deputada negra do Brasil é reconhecida como doutora

Quase 70 anos após sua morte, educadora Antonieta de Barros é homenageada em Santa Catarina. Para pesquisadora, lembrar seu legado é importante num contexto “racista, sexista e conservador”.

Há reconhecimentos que custam a chegar. No caso de Antonieta de Barros (1901-1952), o título universitário foi concedido quase 70 anos após a sua morte — para ativistas, uma reparação histórica. Em dezembro, a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) passou a considerá-la doutora honoris causa, in memoriam.

Mulher negra atuante em um contexto de segregação racial e pouco espaço para o ativismo feminino, Antonieta de Barros não se limitou a uma só atividade. Foi jornalista, escritora, educadora, militante política.

“Trazer o legado de uma mulher negra como Antonieta e torná-la doutora honoris causa na UFSC significa recontar parte da luta das mulheres negras neste estado ainda tão racista, sexista e conservador”, afirma a educadora Joana Célia dos Passos, professora na universidade. “Significa questionar a narrativa de que Santa Catarina se fez hegemonicamente pelo trabalho dos imigrantes europeus.”

“Antonieta de Barros tem importância fundamental na memória política, cultural e histórica de Santa Catarina”, avalia Eliane Debus, professora no Departamento de Metodologia de Ensino do Centro de Educação da UFSC e autora do livro infantil Antonieta, que conta a trajetória da educadora. “Não estamos falando de resgate [histórico]. Aqui vale a palavra ‘construção’. Construção de uma história para não se perder na memória.”

Militante pela educação

Nascida em Florianópolis, Antonieta era filha de uma lavadeira, escrava liberta, com um homem sobre quem pouco se sabe — pode ter sido funcionário dos correios e músico, conforme diz a pesquisadora Jeruse Romão em seu livro Antonieta de Barros: professora, escritora, jornalista, primeira deputada catarinense e negra do Brasil.

Viúva quando a menina ainda era criança, sua mãe alugava cômodos para estudantes para garantir o sustento. E foi assim que Antonieta acabou se alfabetizando. De acordo com o dossiê apresentado à UFSC como justificativa para a homenagem recém-realizada, ela “sentiu em sua infância e juventude o que significava ser mulher negra e pobre, num estado do sul do Brasil, majoritariamente branco e com forte adesão à eugenia como política social”.

A professora Eliane Debus em frente ao mural em homenagem a Antonieta, em Florianópolis, segurando seu livro infantil sobre a educadora
A professora Eliane Debus em frente ao mural em homenagem a Antonieta, em Florianópolis, segurando seu livro infantil sobre a educadoraFoto: privat

Logo, tornou-se ela própria uma militante pela educação, entendendo que só com acesso aos estudos as minorias poderiam experimentar alguma ascensão social.

No início dos anos 1920, fundou o Curso Particular Antonieta de Barros, destinado a alfabetizar marginalizados. Foi diretora do jornal A Semana e do periódico Vida Ilhoa — seus artigos se pautavam pela crítica ao racismo e a defesa do empoderamento feminino.

Em 1934, no primeiro processo eleitoral brasileiro em que mulheres puderam votar e serem votadas, ela concorreu a uma cadeira na Assembleia Legislativa do estado pelo Partido Liberal Catarinense. Acabou como suplente.

Entre 1935 e 1937 assumiu o cargo. Tornou-se então a primeira mulher negra brasileira a ocupar um mandato eletivo, sendo a primeira deputada estadual no Brasil e também a primeira negra no parlamento catarinense, também conforme texto apresentado pela UFSC.

Ela voltaria a ser suplente na década seguinte, desta vez pelo Partido Social Democrático (PSD), assumindo novamente a vaga na assembleia estadual em 1948 — mais uma vez, uma presença feminina solitária no parlamento.

Seus mandatos no Legislativo foram pautados por questões referentes à educação. Ela apresentou um projeto de lei para criar um concurso para o magistério, foi autora de projeto buscando a criação de um dia em comemoração ao professor e, em plenário, defendeu uma maior estruturação da carreira de docência no estado, regulamentando cargos como os de diretor e inspetor escolar.

Também apresentou projeto de lei prevendo mais acesso das mulheres a conteúdos curriculares e defendeu a criação de ginásios, como política pública, para ampliar os anos escolares das populações mais pobres.

Valorização do legado

“Antonieta foi uma mulher negra, filha de pais que haviam sido escravizados. Professora, escritora, primeira mulher em Santa Catarina e primeira mulher negra no país a assumir um cargo público, era alguém de força e coragem”, avalia Debus.

“Acreditamos que o silêncio sobre as narrativas a respeito de mulheres negras precisa ser quebrado. Devemos fazer muito som e reverberar as histórias do protagonismo negro em Santa Catarina.”

É nesse contexto que a própria Debus lançou o livro Antonieta, com a biografia da educadora contada de uma maneira atrativa para o público infantil. “[A obra] se configura como uma possibilidade alargada de desenvolver práticas de leituras literárias antirracistas”, diz.

Diversos esforços vêm sendo colocados em prática nos últimos anos para promover uma valorização da história e do legado de Antonieta. Em 2019, por exemplo, o centro de Florianópolis ganhou um mural imenso com o retrato da personalidade.

A obra, assinada pelos artistas Thiago Valdi, Tuane Ferreira e Gugie, mede 32 metros de altura e 9 metros de largura.

Crédito: Edison Veiga / Deutsche Welle – @disponível na internet 15/02/2022

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