Procuradores dizem que inquérito do STJ contra Lava Jato ‘legitima sistema jurídico de exceção’

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Associação Nacional dos Procuradores da República afirma que abertura de investigação sobre suposta atuação ilegal da força-tarefa contra ministros da Corte afronta garantia de imparcialidade do Poder Judiciário e é um ‘total desrespeito à Constituição’

Horas após o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Humberto Martins, abrir inquérito contra a Lava Jato por suposta investigação ilegal e intimidação de integrantes da Corte, a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) afirmou estar ‘incrédula’ com a proporção do caso. Para os procuradores, a decisão de Martins é legitima um ‘sistema jurídico de exceção’ e afronta a garantia de imparcialidade do Poder Judiciário.

Martins instaurou o inquérito de ofício – por iniciativa própria – após conversas hackeadas entre o procurador Deltan Dallagnol, então coordenador da Lava Jato, e Diogo Castor de Mattos apontarem suposta intenção da força-tarefa em investigar, sem autorização, a movimentação patrimonial de ministros do STJ.

Na conversa, Deltan escreve: “A RF [Receita Federal] pode, com base na lista, fazer uma análise patrimonial, que tal? Basta estar em EPROC [processo judicial eletrônico] público. Combinamos com a RF”, escreveu Deltan para, em seguida, emendar: “Furacão 2”. O procurador Diogo Castor de Mattos, que integrava a força-tarefa na ocasião, respondeu Deltan: “Felix Fischer eu duvido. Eh um cara serio (sic)”.

 

‘Furacão 2’ seria uma referência à operação Furacão, deflagrada em abril de 2007 e que atingiu o então ministro do STJ Paulo Medina, denunciado por integrar um esquema de venda de sentenças judiciais.

Ao abrir um inquérito o ministro Humberto Martins se baseou no regimento interno da Corte que prevê a atribuição do presidente para velar pelas prerrogativas do tribunal e que busca ‘apurar os fatos e as infrações, em tese delituosos, relacionados às tentativas de violação da independência jurisdicional e de intimidação de ministros do Superior Tribunal de Justiça, bem como de outros do mesmo gênero eventualmente cometidos e cujas práticas sejam reveladas no curso da investigação’.

Para a ANPR, a instauração do inquérito por ofício ‘afronta a titularidade da apuração do Ministério Público’, visto que caberia à Procuradoria-Geral da República solicitar a investigação contra os procuradores. Além disso, a entidade aponta que a apuração do STJ foi aberta com base em ‘em provas manifestamente ilícitas, obtidas por meios criminosos, por meio de hackers já identificados e processados’.

“Os limites para a atuação do Poder Judiciário são essenciais para a harmonia entre os Poderes e a estabilidade das instituições. Desrespeitar esses limites significa contribuir para o enfraquecimento do Estado Democrático de Direito, dos órgãos de controle e da própria Justiça brasileira”, frisou a ANPR. “Ao adotar o referido procedimento de investigação, acaba-se por buscar legitimar um sistema jurídico de exceção no ordenamento jurídico brasileiro”.

Além do inquérito no STJ, Humberto Martins também enviou ofício à PGR cobrando a abertura de uma investigação sobre o mesmo caso, além de uma apuração interna no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) a respeito da conduta de Deltan Dallagnol e do procurador Diogo Castor de Mattos.

No ofício enviado a Augusto Aras, Martins afirmou que as informações trazidas pela divulgação da conversa são ‘graves’. “Solicito a Vossa Excelência que tome as necessárias providências para a apuração de condutas penais, bem como administrativas ou desvio ético dos procuradores nominados e de outros procuradores da República eventualmente envolvidos na questão, perante o Conselho Nacional do Ministério Público”, frisou o ministro.

Aras encaminhou o pedido para o corregedor do CNMP, Rinaldo Reis, a quem caberá avaliar se há elementos suficientes no caso para justificar a abertura de um procedimento interno contra Deltan e Castor de Mattos. Em nota, a Corregedoria Nacional do Ministério Público afirmou que está analisando a representação movida por Humberto Martins e que ainda não há manifestação sobre o caso.

Os procuradores da Lava Jato enviaram ofício ao STJ no início do mês informando que as mensagens divulgadas não seriam autênticas e que a divulgação delas busca ‘criar factóides’ para ‘criar artificialmente um ambiente de irregularidades e ilegalidades’ com fim ‘sensacionalista’. “Se fossem verdadeiras as alegações de supostas ilegalidades, seriam facilmente constatáveis nos respectivos autos”, argumentam.

Os procuradores dizem ainda que uma investigação nesses termos seria ‘ilógica’, ‘pois esvazia a justiça que se busca, além de inútil, pois constituiria um mau emprego de tempo e recursos investigativos escassos. Além, claro, de sujeitar os seus autores às consequências legais’.

LEIA A ÍNTEGRA DA NOTA DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROCURADORES DA REPÚBLICA:

A Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) recebeu com incredulidade a notícia de abertura, no dia de hoje, pelo presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Humberto Martins, de inquérito, em total desrespeito à Constituição e às leis brasileiras, para apurar fatos criminosos que supostamente teriam sido praticados em detrimento de ministros daquela Corte.

A iniciativa afronta a titularidade de apuração do Ministério Público e solapa, também, a própria garantia de imparcialidade do Poder Judiciário. Para tanto, vigora no país e nas demais democracias modernas o sistema acusatório, conquista civilizatória que separa os atores do sistema judicial que possuem as missões de investigar-acusar e julgar.

Se a intenção é apurar a atuação de procuradores da República, a investigação desrespeita, ainda, frontalmente, a Lei Complementar 75/1993 e usurpa função do procurador-geral da República. Segundo o disposto no artigo 18 da referida lei, é prerrogativa do PGR conduzir a apuração de práticas de infração penal por parte de membros do Ministério Público da União.

Nesse sentido, a própria autoridade que instaurou a apuração no âmbito do STJ reconhece que já encaminhou ao procurador-geral da República e ao Conselho Nacional do Ministério Público representação para a investigação das referidas irregularidades.

Também importa destacar que os elementos de prova utilizados como base para a abertura da investigação em tela se constituem em provas manifestamente ilícitas, obtidas por meios criminosos, por meio de hackers já identificados e processados, as quais se encontram desprovidas, ainda, de perícia que ateste a sua integridade-autenticidade e da indispensável cadeia de custódia.

Ao adotar o referido procedimento de investigação, acaba-se por buscar legitimar um sistema jurídico de exceção no ordenamento jurídico brasileiro.

Os limites para a atuação do Poder Judiciário são essenciais para a harmonia entre os Poderes e a estabilidade das instituições. Desrespeitar esses limites significa contribuir para o enfraquecimento do Estado Democrático de Direito, dos órgãos de controle e da própria Justiça brasileira.

O Ministério Público, conforme disposição constitucional, é instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado. Vulnerar as garantias dos seus membros aniquila a Constituição e, por consequência, deixa sem proteção a própria sociedade brasileira.

Diretoria da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR)

Crédito: Paulo Roberto Netto/ O Estado de São Paulo – @internet 20/02/2021

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